Epistemología e Historia de la Ciencia. Córdoba, v.4, n.2, 2020.

Epistemología e Historia de la Ciencia

Artículos

Reseñas

Publicado: 2020-05-28

De rochedo a arquipélago: a emergência de São Pedro e São Paulo na pesquisa científica brasileira | Raimundo Arrais

Raimundo Arrais nos traz à tona um lado da história de uma das ilhas oceânicas brasileiras pouco conhecida da maioria. A sua obra retrata a importância de se analisar, do ponto de vista historiográfico, de como se deu a ocupação e permanência do Brasil neste ponto tão distante do continente.

A extensa área marítima brasileira de importância inquestionável para o desenvolvimento de uma nação já se tornou amplamente conhecida pelo conceito de Amazônia Azul, pois possui uma área equivalente a 52% do espaço terrestre, com dimensões e biodiversidades semelhantes à já tradicional Amazônia Verde. Ciente desta importância iniciou-se no País o despertar para as pesquisas científicas nas ilhas oceânicas, a saber: Ilha da Trindade e o Arquipélago de São Pedro e São Paulo. Cada uma dessas ilhas possui mais de 1.000 km de distância do continente. No entanto, o desenvolvimento de pesquisas e atividades in loco nestas regiões tem sido propiciado pelo apoio logístico da Marinha do Brasil, proporcionando uma abordagem multidisciplinar dos diversos campos da ciência e, no caso desta obra, sobre a história, importância e ocupação do Arquipélago de São Pedro e São Paulo. Leia Mais

Navigator. Rio de Janeiro, v.15, n.30 2019.

Revista Navigator – Dossiê Construção, Design e arquitetura naval: o navio, o construtor, teoria e práticas

Apresentação

Publicado: 2020-05-24

Museologia & Interdisciplinaridade. Brasília, v.9, n.17, 2020.

Museus e Museologia: aportes teóricos na contemporaneidade

Tiriyó-Kaxuyana beadwork ”“ Acervo do Memorial dos Povos Indígenas (MPI) ”“ Brasília/DF

Foto: Daderot

Editorial

  • Editorial
  • Ana Lúcia de Abreu Gomes, Clovis Carvalho Britto
  • PDF

Dossiê Museus e Museologia: aportes teóricos na contemporaneidade

Artigos

Publicado: 2020-05-22

Das Amazônias. Rio Branco, v.3, n.1, 2020.

Entre a sala de aula, pesquisas e historiografias: trajetórias na construção dos profissionais de História

Capa: Wálisson Clister Martins

Editorial

Artigos

Resenha

Publicado: 2020-05-20

Revista TEL. Irati, v 11, n.2, 2020.

Dossiê: Imagens: Arte, História e Cultura Visual

Expediente | Editorial Board | Cuerpo Editorial

Editorial | Editor’s Note | Presentación

  • Apresentação
  • Maristela Carneiro (UFMT), Jaqueline Aparecida Martins Zarbato (UFMS)
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Dossiê | Special Issue | Dossier

Artigos | Articles | Artículos

Ensaios | Essays | Ensayos

Projetos de Pesquisa | Research’s Note | Proyecto de Investigación

Entrevista | Interview | Entrevista

Publicado: 2021-05-18

EmRede – Revista de Educação a Distância. Porto Alegre, v. 7, n. 1, 2020.

Responsabilidades e Desafios para a consolidação da EaD

Expediente

Editorial

Artigos convidados

Artigos

Relatos

Ensaios

Publicado: 2020-05-15

Interfaces da arte no universo da história marítima e militar: estética, linguagens e representações |  Navigator | 2019

De longa data a arte relaciona-se ao universo militar. No Brasil, a guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai proporcionou aos artistas plásticos o engajamento na história presente. Foram chamados a produzirem a crônica cotidiana dos acontecimentos do front, ilustrando periódicos com suas gravuras, ou a construírem decorações efêmeras em homenagem à volta dos soldados. Pinturas monumentais, a exemplo do Combate Naval do Riachuelo, de Victor Meirelles, ou da Batalha do Avahy, de Pedro Américo, foram encomendadas, visando perpetuar a glória dos vencedores, reafirmando a força do Império brasileiro. Monumentos aos heróis foram construídos, enquanto algumas poucas pinturas e fotografias insistiram em apontar o custo humano do conflito. As Primeira e Segunda Guerras Mundiais, domínio já do fotojornalismo, não engendraram pinturas grandiloquentes no Brasil, mas alguns jovens soldados registraram em cadernos desenhos reveladores de suas emoções. Além dos conflitos, o cotidiano da vida marítima e militar foram igualmente representados.

Neste dossiê, várias linguagens se cruzam. Pinturas, desenhos, gravuras, cartões-postais, projetos arquitetônicos e canções foram analisados. São pesquisas desenvolvidas a partir de variadas fontes, mostrando forte interesse pela representação da História Militar, em seus múltiplos aspectos. Leia Mais

Fênix. Uberlândia, v.17, n.1, 2020.

DOSSIÊ “PRÁTICAS E PROCESSOS SOCIOCULTURAIS NA AMAZÔNIA”

Editorial

Dossiê

Artigos

Resenhas

Publicado: 2020-06-14

O Pensamento de Pierre Lévy – comunicação e tecnologia | Guaracy Carlos da Silveira

Há algumas décadas, muito se tem refletido e discutido sobre a importância e as aplicabilidades da comunicação e sua simbiose com a tecnologia, principalmente em tempos de disseminação das redes de comunicação digital. Porém, o que vinha sendo debatido de forma parcimoniosa, numa tentativa de compreender de forma mais profunda, ganhou certa notoriedade nos últimos dias, visto a urgência de atender as demandas sociais.

Almejando reflexionar as reivindicações da sociedade sobre essa temática que se insere a obra: O Pensamento de Pierre Lévy – comunicação e tecnologia, de Guaracy Carlos da Silveira, publicada em 2019 pela Editora Appris. A presente composição, tem como escopo, apresentar a evolução das ideias de Pierre Lévy a uma recente geração de leitores que já nasceram imersos em um cenário de constantes mudanças tecnológicas, cotejando a pertinência do seu pensamento no contexto atual. Leia Mais

A construção da memória da Revolução Cubana: a legitimação do poder nas tribunas políticas e nos tribunais revolucionários | Giliard da Silva Prado

“Vá pra Cuba! Vá estudar História!”, assim que o Prof. Dr. Jaime de Almeida inicia seu Prefácio para a obra do historiador Giliard da Silva Prado, A construção da memória da Revolução Cubana: a legitimação do poder nas tribunas políticas e nos tribunais revolucionários. Tal comentário e o tema do trabalho de Prado são profundamente atuais no contexto político em que vivemos. Numa intensa e fixa polarização da esquerda e da direita políticas os brasileiros estão cada vez mais sujeitos a optarem por um desses parâmetros. Uma das funções da historiografia, nesse debate, é apresentar que necessitamos avaliar cuidadosamente os elementos históricos que estão a nossa frente, construindo nosso pensamento crítico. A Revolução Cubana é um caso emblemático nesse debate, primeiro por conta do que sugere o comentário de Almeida no início, muito utilizado pelos que se reconhecem à direita ao clamarem o imperativo a qualquer indivíduo identificado como de “esquerda”. Segundo, pelo fato de que alguns historiadores julgarem que não podemos olhar criticamente os feitos da Revolução e do regime socialista que se implementou posteriormente a 1961, defendendo a ferro e fogo o governo e fazendo vista grossa para seus erros e tensões. Leia Mais

Ney Matogrosso…para além do bustiê: performances da contraviolência na obra de Bandido (1976 – 1977) | Robson Pereira da Silva

As sensibilidades se apresentam, portanto, como operações imaginárias de sentido e de representação do mundo, que conseguem tornar presente uma ausência e produzir, pela força do pensamento, uma experiência sensível do acontecido. O sentimento faz perdurar a sensação e reproduz esta interação com a realidade. A força da imaginação, em sua capacidade tanto mimética como criativa, está presente no processo de tradução da experiência humana.

SANDRA JATAHY PESAVENTO.

Tão importante quanto analisar as letras dos compositores da Música Popular Brasileira (MPB) e contextualizá-las historicamente, se faz extremamente necessário não perder de vista o trabalho dos intérpretes que além de ressignificar as canções, ainda possuem um árduo trabalho criativo e corporal que corrobora para que essas canções ganhem sentidos que são intrínsecos as questões do seu próprio tempo. Leia Mais

Práticas e processos socioculturais na Amazônia | Fênix – Revista de História e Estudos Culturais | 2020

O dossiê “Práticas e processos socioculturais na Amazônia” é uma iniciativa do Grupo de Pesquisa em Estudos Interdisciplinares em Cultura e Políticas Públicas da Universidade Federal do Amapá e do Grupo de Pesquisa em Comunicação e Cidade da Universidade Federal de Mato Grosso.

O objetivo da proposta foi apresentar resultados de investigação, no âmbito de programas de pós-graduação stricto sensu e de grupos de pesquisa, no país e no exterior, que se propõem a descrever, analisar e refletir sobre fenômenos, práticas e processos sociais que atravessam ou são atravessados pelo campo cultural. A proposta considera a apropriação de dispositivos e artefatos tecnológicos/comunicacionais, artísticos e literários em suas mais diversas linguagens para produção, circulação e reconhecimento de sentidos sobre e a partir da Amazônia. Leia Mais

Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930) | Ana Beatriz D. Barel e Wilma P. Costa

livro Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930), organizado pelas historiadoras Ana Beatriz Demarchi Barel e Wilma Peres Costa, é uma coletânea de trabalhos que pesquisadores de diferentes instituições do país apresentaram durante o “Seminário Internacional de Estado, cultura e elites (1822-1930)”, na Fundação Casa de Rui Barbosa, em 2014. A obra tem como recorte cronológico o chamado “longo século XIX” no Brasil, que, segundo as próprias organizadoras, foi marcado pela “intensidade das transformações que atravessaram a experiência humana no Velho e no Novo Mundo” (p. 7).

Através da análise de objetos variados e trajetórias individuais, o livro apresenta as disputas travadas no interior do processo de definição da identidade nacional brasileira, um itinerário complexo marcado pela construção do Estado e pela consolidação da nação. Para a elite letrada brasileira, o desafio consistia em estabelecer símbolos que fossem importantes para o público interno letrado do país e para os leitores do velho continente. Seu objetivo era integrar o Brasil no sistema cultural das nações europeias, ao mesmo tempo que era necessário distingui-lo das demais nações do Novo Mundo.

Os projetos nacionais para o Brasil, a fundação de instituições culturais, a composição da sociedade letrada, a relação entre Estado e cultura, tudo isso está presente ao longo dos doze capítulos que compõem as duas partes da obra. Os da primeira parte abordam especialmente a propagação da cultura escrita no país, destacando-se algumas figuras importantes que conduziram os debates sobre a nação através da produção de obras, organizações literárias e disputas dentro das próprias instituições do país. Na segunda parte do livro, observamos a importância e o impacto da difusão da imagem, em particular dos retratos e da fotografia nas décadas que compreendem a segunda metade do século oitocentista até o início da república brasileira. Em ambas as partes, as disputas pela construção de narrativas para o país, bem como a relação tensa entre cultura e poder, constituem o eixo de análise dos capítulos.

O primeiro capítulo da obra, “Espaço público, homens de letras e revolução da leitura”, do historiador Roger Chartier, fornece a chave para compreender as tensões entre o Estado, as elites e a constituição da cultura nacional exploradas em diferentes momentos do livro. Chartier desenvolve aí a genealogia de três noções, a de espaço público, a de circulação de impressos e a de constituição do conceito de intelectual. Desenvolvidas durante o movimento iluminista, essas noções apresentaram variações no desenrolar do mundo contemporâneo e influíram decisivamente nas nações a surgir nas Américas, entre elas o Brasil.

A construção de um imaginário para a nação a partir do olhar estrangeiro do viajante, tema clássico mas sempre atual nas discussões sobre o Novo Mundo, é apresentado no segundo capítulo do livro, de Luiz Barros Montez Barros. O texto analisa os objetivos da produção dos relatos do alemão Johann Natterer a respeito de sua viagem ao Brasil entre os anos de 1817 a 1835. Como sugere Barros, conhecer novas terras possibilitava a elaboração reflexiva sobre a cultura dos países de origem dos próprios viajantes. Essa produção, além de prezar pela objetividade científica das informações, resultava em avaliações eurocêntricas que ressaltavam a “afirmação da supremacia do modelo civilizacional e técnico” dos países capitalistas emergentes (p. 49).

O estudo de Wilma Peres Costa sobre a figura de um dos intelectuais mais importantes do século XIX brasileiro, Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899), também explora a temática da construção da identidade nacional brasileira em sua complexa relação com o Velho Mundo. A autora observa a complexidade de um personagem que pertencia à linhagem francesa e vivenciava o contexto desafiador de criação de um campo literário e artístico no Brasil oitocentista. Através da análise do processo de mudança do próprio nome do literato, aponta que Taunay, em oposição à maioria dos intelectuais brasileiros, buscava se distanciar das referências francesas e se aproximar das de Portugal e do nativismo brasileiro. Assumindo a condição de uma “dupla cidadania intelectual”, o letrado revelava em suas obras, com destaque para A Floresta da Tijuca, o projeto de construção de uma memória e história vinculadas ao poder do Imperador e da monarquia no Brasil.

O esforço pela construção do Estado e pela busca da estabilidade política monárquica no Brasil também se materializou na fundação das instituições literárias na primeira metade do século XIX, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838. Naquele momento, a elite letrada do Brasil se inspirava nas instituições francesas – o Instituto Histórico de Paris havia sido fundado alguns anos antes (1834) e contava com a presença de representantes do Império brasileiro em suas sessões iniciais. A preocupação do homem do século XIX, dos dois lados do Atlântico, era com o registro histórico para a composição e conformação da memória nacional.

Dois capítulos do livro se ocupam dos temas relacionados à composição social dos membros do IHGB e às escolhas de temas nas publicações de sua Revista, na primeira metade do século XIX. A historiadora Lucia Maria Paschoal Guimarães analisa como a seleção de acontecimentos históricos e suas respectivas narrativas, junto à composição social dos membros do IHGB desde a sua fundação até o ano de 1850, apontam para o esforço considerável de construir um passado nacional legitimador do Estado monárquico. A defesa da monarquia e da figura do Imperador era necessária diante das conturbações e pressões vividas naquele momento. “O passado acabaria então por converter-se em ferramenta para legitimar as ações do presente.” (p. 62).

Tamanho esforço também poderia ser observado na busca pelo estabelecimento dos cânones literários brasileiros na Revista do IHGB, dado que os escritores nacionais a figurar entre as referências literárias também foram definidos no interior do próprio Instituto. Conforme nos indica Ana Beatriz Demarchi Barel, a seção da revista intitulada “Biographia dos Brasileiros Distintos por Letras, Armas, Virtudes, &” tinha a finalidade de apresentar ao público os nomes de personalidades nacionais (escritores, advogados, diplomatas, navegadores, inquisidores) dignas de elogios, e dentre elas é possível observar a indicação de quais nomes deveriam pertencer ao panteão dos escritores da literatura nacional, em diálogo com as referências europeias. Assim, “a RIHGB conforma-se como instrumento de propaganda da política alavancada pelas elites e do poder de um monarca ilustrado nos trópicos” (p. 83).

O historiador Avelino Romero Pereira abordou a música no Império como um campo de prospecção e definição de um projeto cultural nacional. Propondo refletir sobre suas características “aproximando-a da literatura e das artes visuais” (p. 100), o autor destaca que, a exemplo dos gêneros literários, a produção, a circulação e o consumo musical estiveram permeados de tensões. O mecenato exercido pelo imperador nessa área não reduziu a música a um caráter meramente oficialista do Império, como se os artistas fossem “marionetes a serviço do poder pessoal do Imperador e da construção de um projeto exótico de Império nos trópicos”. (p. 93) Araújo Porto Alegre seria um dos representantes da multiplicidade de ideias contrapostas à visão de unicidade nacional.

As trajetórias individuais iluminam as contradições, oposições e alianças estabelecidas no processo de formação de campos discursivos culturais no Brasil, como se pode ver no capítulo de Letícia Squeff. A autora nos apresenta o caso do pintor Estevão Silva, negro, que se indignou ao receber a medalha de prata como artista das mãos do Imperador, em 1879, Academia Imperial de Belas Artes. Squeff aponta a tensão que esse episódio gerou, intensificando, inclusive, o momento de crise vivido dentro da instituição e, também, acentuando ainda mais o descrédito público da figura do Imperador. “Foi percebido como atitude potencialmente revolucionária, numa monarquia que já vinha sendo sacudida por debates e discursos republicanos” (p. 294).

Ricardo Souza de Carvalho também traz à tona uma importante trajetória individual ao analisar a atuação do abolicionista e monarquista Joaquim Nabuco em duas instituições de peso, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Academia Brasileira de Letras. Como dito, o IHGB se vinculou, durante todo o período do Império, à figura do Imperador e à Monarquia, enquanto a Academia Brasileira de Letras, fundada na última década do século XIX, marcou as necessidades relacionadas aos dilemas da construção do início da República no Brasil. Carvalho estuda a presença de Nabuco nessas instituições para mapear as relações tensas entre instituições culturais e política no fim do Império.

A relevância social das imagens na segunda metade do século XIX aparece no capítulo de Heloisa Barbuy, dedicado à organização de uma galeria de retratos na Faculdade de Direito de São Paulo no século XIX. O retrato ganhava ares de prestígio no momento em que a fotografia ainda não era tão glorificada. Retratar significava eternizar uma memória, dando início a uma “cultura de exposições” na segunda metade do século XIX que se ligava à construção de narrativas nacionais e, também, ao estabelecimento de personalidades como figuras de referência. Barbuy indica a relação entre a formação do Estado Nacional, em particular o seu sistema jurídico, e a escolha de determinadas trajetórias de “homens públicos-estadistas e governantes” para figurar uma sala de retratos. “Homenagear alguém com o seu retrato em pintura, em telas de grandes dimensões, era a expressão máxima da admiração reverencial que se desejava marcar.” (p. 223).

O capítulo de Ana Luiza Martins aborda a importância da iconografia para demarcar a preponderância do café na economia imperial brasileira. A ideia de que o “café dava para tudo” é problematizada através da análise de inventários e das obras literárias sobre os cafeicultores do Vale do Paraíba. As dificuldades encontradas com o declínio do tráfico negreiro e as oscilações do mercado ficaram, durante muito tempo, submersas na imagem do poder que a economia cafeeira proporcionava, imagem construída em grande medida pela iconografia. Os casarões dos proprietários das fazendas de café estavam retratados em telas pintadas por artistas de renomes da corte, o que representava o “poderio econômico e político” dos cafeicultores mesmo no momento em que a produção da região já não estava em seu auge.

Analisando a arquitetura do Vale do Paraíba, Carlos Lemos aponta para as transformações da cultura material nas residências da região. Lemos salienta que o material para construção das residências não variava e que o Estado não teve influência na constituição de suas características. As questões estéticas das casas, ao longo do Paraíba no século XIX, não eram primordiais. O tamanho das casas era o fator que diferenciava a classe social e econômica e é nesse aspecto que podemos perceber o esforço de diferenciação social que ocorreu através da monumentalidade dos casarões dos cafeicultores. “O que interessava aos ricaços era unicamente o tamanho de suas casas de dezenas de janelas” (p. 168).

O simbolismo de poder existente nas construções grandiosas, nas imagens e em suas exposições também ganharam aspectos novos com o advento e difusão da fotografia no Brasil. A chegada de fotógrafos europeus, a partir da segunda metade do século, possibilitou que aspectos da nossa sociedade fossem retratados com base em uma nova materialidade. Ao analisar a trajetória do fotógrafo alemão judeu Alberto Henschel, Cláudia Heynemann observa que, no momento em que o retrato a óleo ainda se restringia a uma minoria economicamente favorecida, a fotografia, através do desenvolvimento do formato carte de visite, possibilitou que outros setores da sociedade também tivessem acesso ao consumo de suas próprias imagens. O álbum privado, que trazia imagens de “famílias brasileiras, abastadas, das camadas médias em ascensão, de libertos, de escravizados, gente de todas as origens”, se tornou uma febre social (p. 258). A respeito de Alberto Henschel, a autora ainda destaca a diversidade de seus trabalhos, inclusive inúmeras fotografias que retratava os negros brasileiros, marcando um novo momento da história visual do Império e da sociedade escravista.

A diversidade de abordagens apresentada nos capítulos que compõe Cultura e poder entre o Império e a República nos permite compreender, com mais acuidade, o panorama múltiplo das relações entre as elites brasileiras e o Estado Nacional ao longo de mais de cem anos. A leitura de cada capítulo dá densidade a esse relevante tema de investigação. À medida que nos detemos em um determinado personagem ou em algum contexto mais específico, nos aproximamos das mais variadas formas de produção e circulação de ideias que fizeram parte da construção do imaginário nacional de um país monárquico cercado de repúblicas e profundamente marcado pela herança da escravidão.

Referência

BAREL, Ana Beatriz Demarchi; COSTA, Wilma Peres. (Orgs). Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2018.

Lilian M. Silva – Universidade Federal de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil.


BAREL, Ana Beatriz Demarchi; COSTA, Wilma Peres. (Orgs). Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2018. Resenha de: SILVA, Lilian M. Relações de poder na cultura escrita e visual no “longo século XIX” brasileiro. Almanack, Guarulhos, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

O urucungo de Cassange: um ensaio sobre o arco musical no espaço atlântico (Angola e Brasil) | Josivaldo Pires de Oliveira

Ao escrever as palavras urucungo e Cassange no programa de edição de textos, o corretor ortográfico as sinaliza como grafadas de forma errada. O mesmo não ocorre quando escrevemos violoncelo ou Paris usando o mesmo editor de textos. O erro deve estar justamente aí, na programação dos computadores e na nossa formatação como historiadores. Palavras de origem africana soam estranhas no português no Brasil, no português dos intelectuais do Brasil, mas a outros estrangeirismos estamos acostumados e os naturalizamos.

O professor da Universidade do Estado da Bahia e mestre de capoeira Josivaldo Pires de Oliveira escreveu um ensaio intitulado O urucungo de Cassange. O livro decorre justamente de sua experiência como intelectual acadêmico e profundo conhecedor do corpo, da musicalidade e dos instrumentos como fontes para a historiografia e como objetos do interesse do historiador. Josivaldo tem clareza sobre como desempenhar uma das funções que poucas vezes cumprimos a contento neste ofício: dialogar com públicos mais amplos e oferecer materiais de qualidade para uso nas escolas por estudantes e professores atuantes na rede de ensino básico. Quando endereçamos publicações a esses leitores, nem por isso o rigor deve ser deixado de lado – e, neste caso, o rigor foi conjugado a uma linguagem apropriada. Esse é o primeiro ponto do livro que quero destacar.

Urucungo ou barimbau é o arco musical usado na capoeira. Josivaldo encontra evidências do uso desse instrumento antes da sua popularização, graças às rodas de capoeira. O último quartel do século XIX e a primeira metade do século XX são os marcos temporais da obra e o Cassange do título não é exatamente a região da Angola atual de onde vieram milhares de escravizados pelo Atlântico até o Brasil, mas sim um tocador de berimbau e personagem do folhetim oitocentista Ataliba, o vaqueiro, do diplomata e escritor piauiense Francisco Gil Castelo Branco. O formato em arco e a referência à África e ao Brasil funcionam como metáforas da diáspora africana em suas múltiplas expressões.

O ensaio divide-se em três capítulos. No primeiro, intitulado “Cassange e seu arco musical”, a epígrafe recupera a descrição da personagem do folhetim (mais tarde republicado em livro) e, em meio a uma fisionomia eivada dos preconceitos comuns no século XIX, informa-se que Cassange, homem nessa altura já encanecido, “fora importado da África ainda moleque e conservava o nome de sua terra natal”. A terra e o homem, unidos em um mesmo nome, já nos alertam para a tentativa de transformar seres humanos em simples elementos da natureza. Essa era uma leitura de sabor oitocentista que incluía, entre outras coisas, nomear os africanos escravizados conforme a região ou o porto de origem, inventando etnônimos que pouco definiam as origens e a cultura. Tendo por guia o homem chamado Cassange, Josivaldo vai em busca de uma história do arco musical no Brasil.

Para isso, ele percorre o interior e o litoral da África Centro-Ocidental, o Atlântico e a província do Piauí, tradicionalmente ocupada desde a colonização pela pecuária extensiva no sentido sertão-litoral. Vaqueiro inseparável do arco musical que carregou consigo desde os tempos de liberdade na terra natal até ter por volta de oitenta anos de idade, Cassange é o representante dos tocadores desse instrumento no Brasil. Imbangala, como outros em sua terra, o africano dominava o arco de uma corda só usado no pastoreio e que os viajantes que conheceram aquela região africana denominaram “violam”, por analogia, como faziam todos os viajantes para aproximar os lugares exóticos e as coisas estranhas aos leitores brancos e europeus que pretendiam alcançar. No Brasil e no Congo/Zaire dos séculos XIX e XX, outros literatos, estudiosos e folcloristas foram unânimes ao apontar a origem bantu do berimbau, que não deve ser confundido com marimbau, e a importância dele para a música e a dança brasileiras. Berimbauurucungohungorucumbo ou mbulumbumba são sinônimos encontrados por Josivaldo em fontes dos dois lados do oceano para designar esse instrumento feito de corda metálica, vara de madeira e cabaça. A circulação das palavras, do instrumento e das personagens literárias simbólicas pelas margens atlânticas leva a pensar que ficção e História têm vários pontos de intersecção. O nome disso é verossimilhança.

No capítulo 2, “Os parentes de Cassange ou os arcos musicais em Angola”, somos levados ao outro lado do oceano: estamos na Angola que nos civilizou, nas palavras recuperadas por Luiz Filipe de Alencastro. O ensaio de Josivaldo dá mais lastro à ideia de civilização, na medida em que, além da força de trabalho, agrega o saber musical ao rol dos inúmeros saberes que os brasileiros receberam como herança dos povos africanos trazidos compulsoriamente para a América portuguesa e o Brasil imperial. Mas ver no urucungo apenas um legado aos brasileiros seria uma apropriação simplista e incompleta: o instrumento tem uma história que antecede sua vinda ao Brasil na bagagem literal e cultural dos escravizados e que continuou a existir na Lunda, terra dos imbangala que mantiveram trajetórias históricas em seu próprio continente. A se fiar nas narrativas dos viajantes europeus do século XIX que por ali passaram, o uso do instrumento era recreativo – “tocam-no quando passeiam e também quando estão deitados nas cubatas”, afirmou Henrique Dias de Carvalho em 1890 – e suas formas eram idênticas às que já se conhecia no Brasil, ou seja, a cabaça como caixa de ressonância e o contato com a pele nua na criação da musicalidade. Todavia, nos relatos dos viajantes, o urucungo não aparecia compassar o movimento dos corpos. Pequenas variações e especificidades, como o berimbau de boca e o toque por mulheres, também foram registradas lá e cá, em Angola e no Brasil.

O arco musical espalhou-se por arcos territoriais amplos, em lugares de cultura bantu para além do nordeste de Angola. As fontes de Josivaldo, neste capítulo, são basicamente os registros de viagens e a etnografia feita por portugueses, no afã de construir conhecimentos acerca das regiões sobre as quais se pretendia legitimar a conquista, nos termos acordados na Conferência de Berlim. Não por acaso, são escritos do último quartel do século XIX – indício seguro de que o urucungo existia desde antes disso e que a ausência do registro não deve ser lida como inexistência do objeto descrito. Afinal, como Josivaldo revela, saiu da pena do padre Fernão Cardim, no século XVI, a primeira menção ao termo “berimbau”.

O capítulo 3 faz o percurso de volta. “Do outro lado do Atlântico: tocadores de urucungo no Brasil” é um exercício de boas práticas em História Social. Mesmo quando a fonte não é de próprio punho e não se pode nomear os sujeitos, como nas histórias de viés político mais tradicionais, o coletivo e os indivíduos ganham corpo e voz (som, no caso). Artes plásticas, jornais e outras fontes dos séculos XIX e XX são visitadas em busca da a(tua)ção dos tocadores. As confusões de significado em crônicas e anúncios de jornais desde fins do século XIX, que faziam a gaita ser definida como berimbau, são esclarecidas neste capítulo. Não por acaso, Edison Carneiro já anotava a expressão “berimbau não é gaita”, usada de norte a sul do país, com o sentido de alertar o ouvinte para uma situação absurda e, assim, satirizá-la.

O binômio “origem africana como atraso” e “origem europeia como civilidade” não é novo nos estudos sobre a cultura brasileira, especialmente no que se refere ao início do século XX e às pretensões modernizantes da recém-instaurada República. Soaria divertido, se não fosse um sintoma do preconceito, o esforço em europeizar o berimbau como corruptela do francês “berimbele”, ainda que se tratasse de instrumentos diferentes (o barimbau de corda e o de sopro).

Fazer desaparecer a Pequena África no Rio de Janeiro planejado como cartão postal era um ideal republicano. Nesse processo, o arco musical tinha seu lugar, manuseado como era por negros presentes na cena musical popular das ruas da capital federal. Mas o urucungo não estava só ali nem só naquele momento: José de Alencar em seus romances rurais, Luiz Gama em sua obra poética, Antônio Ferrigno em óleo sobre tela e as páginas de jornais de diferentes províncias do Império exemplificaram a dispersão territorial do instrumento, como que unificando o Brasil de matriz africana.

A partir da vasta gama de fontes compilada para a escrita do ensaio, Josivaldo Oliveira encerra o terceiro capítulo em coautoria com Gabriel Ferreira, artista plástico que transformou em dez desenhos as descrições contidas nas evidências históricas. O resultado são páginas com representações iconográficas contemporâneas e legendas-textos informativas, tudo composto com grande liberdade criativa. A Bahia, como é justo, dá o desfecho à história do urucungo/berimbau. Folcloristas de meados do século XX afirmavam que o instrumento era quase desconhecido fora daquele estado, dando corpo à hipótese de que foi o uso do berimbau na capoeira que garantiu sua permanência. O livro aqui resenhado deixado claro que a história é bem mais complexa.

Áfricas transplantadas, ressignificadas, perseguidas e persistentes. Áfricas que ainda são o nosso outro, mesmo que sejam tão fortemente parte de nós. É dessa história que trata Josivaldo, por meio de um indício da cultura material e imaterial, ao mesmo tempo um objeto de madeira biriba, corda e cabaça e um saber-fazer transmitido corporal e musicalmente ao longo de gerações.

O livro traz ainda dois anexos. O primeiro reproduz um texto de Edison Carneiro sobre o berimbau, originalmente publicado em 1968. O segundo cumpre, de forma competente, o que determina a legislação conquistada pelos movimentos negros e que se refere ao ensino de História da África e da Cultura africana e afro-brasileira. Ali, são sugeridas formas de trabalhar O urucungo de Cassange com estudantes do ensino básico.

Terminada a leitura deste ensaio, não será mais possível adotar a postura do assistente passivo de uma roda de capoeira apenas pelo fascínio do movimento dos corpos ou por contemplação desinteressada do conjunto de sons e gentes ali reunidos. Sem perder isso de vista, o assistente verá o arco vertical se horizontalizar, ligando os dois lados do Atlântico numa história única, secular, sul-sul e do tempo presente. A sugestão do berimbau como ponte entre dois continentes foi feita por Enrique Abranches e, mesmo não sendo original, funciona bem para exprimir a sensação de leigos diante de práticas que, embora admire, não deve praticar sem iniciação correta. Por isso, a condução pelo historiador e mestre Josivaldo Oliveira traz uma sensação de segurança na narrativa sobre o percurso de um instrumento tão emblemático.

Referência

OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. O urucungo de Cassange: um ensaio sobre o arco musical no espaço atlântico (Angola e Brasil). Itabuna: Mondrongo, 2019.

Jaime Rodrigues – Universidade Federal de São Paulo. São Paulo – São Paulo – Brasil.


OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. O urucungo de Cassange: um ensaio sobre o arco musical no espaço atlântico (Angola e Brasil). Itabuna: Mondrongo, 2019. Resenha de: RODRIGUES, Jaime. Ancestralidade na história e na música: o berimbau/urucungo nos séculos XIX e XX no Brasil e em Angola. Almanack, Guarulhos, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

Reinventando a autonomia: Liberdade – propriedade – autogoverno e novas identidades na capitania do Espirito Santo 1535-1822 | Vania M. L. Moreira

A recopilação Legislação indigenista no século XIX, publicada por Manuela Carneiro da Cunha em 1992, ofereceu um importante quadro referencial de onde partir para estudar a problemática indígena durante o século de consolidação da independência política brasileira. A partir de então, os comentários da autora abriram duas importantes linhas de frente, e de crítica, para os estudos indigenistas relativos ao período. A primeira delas – a afirmação de que a política indigenista passou, durante o século XIX, de uma política de mão de obra para uma política de terras – vem sendo contestada por inúmeros autores que destacam a dimensão do trabalho compulsório e o apagamento da identidade indígena durante o período em questão. A segunda, por sua vez, refere-se ao escopo temporal, anotando que a revogação do Diretório pombalino em 1798 abriu um período de vazio legislativo durante o qual o Diretório teria sido aplicado, de maneira oficiosa, até a aprovação do Regulamento das Missões em 1845.

Sem gastar tempo refutando essas afirmações, Vânia Moreira aborda em Reinventado a Autonomia (2019) todos os temas centrais das observações de Carneiro da Cunha: a identidade indígena, as questões de terras e mão de obra, as particularidades do período pombalino e as mudanças ocorridas durante o século XIX, passando, ademais, por questões de gênero e família e conectando-as de forma convincente com as demais temáticas tratadas. Ainda que o foco geográfico seja o território específico do Espírito Santo, a autora trata de vincular as suas conclusões com as de outros autores que estudaram diferentes regiões brasileiras, oferecendo uma visão mais ampla do contexto no qual se inserem.

Apesar de enunciar uma temporalidade muito mais ampla (1535-1822), a maior riqueza documental do trabalho encontra-se precisamente no estudo do período pombalino em diante (capítulos 3 a 6), foco de pesquisa da autora durante os últimos anos. Quem está familiarizado com o trabalho de Vânia Moreira pode experimentar uma sensação de déjà vu ao ler o livro. De fato, a obra recolhe o conteúdo tratado nos seus principais artigos sobre os indígenas no território do atual Espírito Santo, organizados de forma mais temática que cronológica, voltando e avançando as datas para contextualizar devidamente cada um dos temas tratados. Porém, não se trata de mera coletânea de artigos publicados. A autora estabelece um diálogo entre seus próprios textos, devidamente referenciados para aqueles que queiram aprofundar em questões específicas, o que acaba convertendo o livro numa espécie de quadro geral de parte da sua produção acadêmica dos últimos quinze anos. Acrescente-se, finalmente, o cuidado em anexar fotografias, mapas e gráficos ao longo da obra, elementos normalmente mais limitados no espaço dos artigos científicos, e que contribuem para reforçar esse caráter estrutural da obra.

No primeiro capítulo, intitulado “Tupis, tapuias e índios”, a autora se vale de uma extensa bibliografia para abordar os caracteres da população que habitava a costa leste do continente antes da chegada dos europeus. Os vestígios das suas etnias, troncos linguísticos, organizações políticas, cultura material e demografia são abordados de forma probabilista, valendo-se de forma convincente dos trabalhos sobre as fontes disponíveis a respeito. No mesmo capítulo, a autora também reconstrói os impactos dos primeiros conflitos com os europeus, ressaltando que a escravização dos prisioneiros de guerra afetou significativamente os valores que presidiam a guerra ameríndia, dando lugar a uma perspectiva promissora para os colonos da região no final do século XVI. Não obstante, a autora enumera uma série de razões pelas quais em meados do século seguinte a escravidão de africanos teria substituído, na capitania, a aposta pelos “negros da terra”. Apesar da perda de protagonismo econômico da região a partir desse momento, a autora anota a sua importância geopolítica, dado que se configurava como fronteira tanto para o mar como para o interior do continente, especialmente a partir da descoberta do ouro na região das Minas. Essa importância se traduziu em diferentes tensões entre indígenas, moradores e jesuítas, relatadas com detalhe por Moreira. Finalmente, o capítulo encerra adentrando-se em questões jurídicas. A autora define a posição jurídica indígena, nomeadamente dos aldeados, como status específico no contexto do Antigo Regime, status que se traduzia na obrigação de prestar serviços, tendo como principal contraprestação a garantia de permanência em terras coletivas (p. 89). Para falar do status no Antigo Regime, não obstante, a autora referencia o conhecido livro de António Manuel Hespanha (2010) dedicado ao estatuto jurídico de coletivos atípicos no Antigo Regime. Nesse espaço, sente-se falta de uma citação direta ao trabalho de Bartolomé Clavero (autor citado, não obstante, ao falar da estrutura de poder do Antigo Regime ibérico, nas páginas 275-276), pois, pertencendo ambos a uma mesma corrente historiográfica, o trabalho do autor espanhol é muito mais incisivo que o de Hespanha no relativo à posição específica atribuída à humanidade indígena na cultura jurídica do Antigo Regime (CLAVERO, 1994, 11-19).

O capítulo seguinte trata sobre os processos históricos que pouco a pouco foram desembocando na consolidação territorial de certos grupos indígenas e sua conversão em aldeamentos. A autora repassa as guerras e migrações mais significativas, assim como dinâmicas particulares que surgiram nesse processo (por exemplo, o curioso fato de que grandes guerreiros aldeados recebessem nomes portugueses idênticos aos dos principais líderes portugueses da terra, fato que exige portanto uma especial atenção dos historiadores na análise das fontes). À continuação, são descritos os principais aldeamentos da capitania, as etnias que os compunham e a importância do trabalho jesuítico na fixação desses grupos ao território. Moreira define três tipos de aldeias administradas pelos jesuítas: (1) as aldeias de serviço do Colégio, (2) as aldeias do serviço Real e (3) as aldeias de repartição (130-131). Por outro lado, destaca-se a importância paramilitar dos indígenas aldeados, que protegiam o território dos ataques de outros povos guerreiros (europeus ou americanos). Os inacianos são descritos como destacados mediadores entre a Coroa e os povos indígenas, encarregando-se da evangelização como fase sucessiva e necessária da conquista mediante a guerra. Por outro lado, a autora destaca o trabalho dos religiosos em aprender as línguas locais e interpretar a cultura dos indígenas, dando a entender que, nesse processo de contato, “escolhiam determinados códigos em detrimento de outros e procuravam neutralizar o processo de conquista e subordinação” (113). Para a autora, isso caracterizaria a presença de uma verdadeira relação intercultural entre os indígenas e os inacianos das aldeias do Espírito Santo.

Do terceiro capítulo em diante, a autora entra definitivamente na cronologia pós-Pombal, tratando as diversas vicissitudes inauguradas com a legislação indigenista aprovada a partir de 1750. O capítulo terceiro trata de uma das principais consequências políticas do Diretório dos Índios – a capacidade de autonomia e autogoverno – ilustradas na conversão das duas maiores aldeias da capitania (Nossa Senhora da Assunção de Reritiba e Santo Inácio e Reis Magos) em Vilas (Nova Benevente e Nova Almeida). Vânia Moreira repassa os debates da Segunda Escolástica relativos à liberdade das pessoas e bens dos aborígenes e, analisando as leis pombalinas, considera que “o que a legislação efetivamente reconheceu e prometia garantir aos índios era a posse e o domínio das terras de seus aldeamentos” (144). A Lei de 6 de junho de 1755 teria especialmente assegurado sua liberdade, propriedade e autogoverno mediante sua equiparação aos demais vassalos da Coroa. Essas medidas foram limitadas pela restituição da tutela mediante o Diretório dos Índios, analisado pela autora neste capítulo (151-158). Em seguida, é explicado o processo de implantação do Diretório no território do Espírito Santo, destacando aspectos como a relação econômica das novas vilas indígenas com o resto de vilas da capitania, os processos eletivos que garantiam a preeminência indígena nas Câmaras, os atos de gestão local do patrimônio e as medidas de controle dos costumes levadas a cabo pelas autoridades – especialmente em relação com as mulheres indígenas.

O capítulo 4 recupera a Lei de 4 de abril de 1755, que incentivava o casamento entre indígenas e brancos como forma de assimilar aqueles à sociedade colonial. A autora destaca o assimilacionismo das políticas pombalinas, interpretando como eminentemente cultural a discriminação no período, e adotando, portanto, as posições que preferem reservar o termo “racismo” para os processos de racismo biologicamente fundamentado (210). Recuperando a argumentação dos inícios da colonização, que caracterizou os indígenas como sujeitos que viviam no “estado natural”, a autora percebe uma continuidade entre essa concepção e as ideias que presidem a abertura do século XIX, onde os indígenas eram acusados de carecer de “vida civil”, continuidade que só seria quebrada com a irrupção do racismo biologicista na segunda metade do século XIX. Para falar sobre políticas matrimoniais, a autora retorna uma vez mais aos relatos dos primeiros missionários no continente, tratando de reconstruir os costumes dos indígenas no relativo às práticas sexuais, alianças afetivas, vestimenta etc. A autora recorda o papel histórico da instituição do matrimônio para a consolidação do poder da Igreja desde as reformas gregorianas, destacando que também na América essa intervenção na organização familiar indígena foi uma política de longa duração (236). Na última seção do capítulo, a autora recupera os seus trabalhos sobre a interpretação que os indígenas da vila de Benevente fizeram das políticas matrimoniais e territoriais contidas no Diretório pombalino. Através de um estudo específico de caso, ela mostra que esses índios interpretaram que o aforamento de terras a moradores brancos, permitido no artigo 80 do Diretório, estava condicionado à sua união em matrimônio com alguma índia da aldeia.

Vânia Moreira volta a tratado desse tema no capítulo seguinte, dedicado às questões de luta pela terra coletiva. A autora destaca que durante a vigência do Diretório os ouvidores de comarca se encarregavam da administração dos bens dos índios, enquanto os diretores eram os responsáveis pela administração das suas pessoas. Para Moreira, as críticas da historiografia à figura dos diretores devem ser tomadas com cautela, pois ela observa que nas duas vilas de índios do Espírito Santo os conflitos entre índios e diretores eram habituais, e que na prática estes acabavam tendo um poder de mando relativo (271). Ela destaca, além do mais, que durante esse período os indígenas foram efetivamente preferidos para os cargos de governo municipal, o que inclusive propiciou a consolidação de uma elite indígena muito ativa na cena política local. Essa situação começou a mudar no fim do século XVIII, com o aumento das intrusões de brancos e pardos nas terras indígenas, garantidas pelo aval das autoridades chamadas, em princípio, a proteger os interesses indígenas (neste caso, os ouvidores de comarca). Assim, ao mesmo tempo que os indígenas eram cada vez menos preferidos para os cargos municipais, as terras eram cada vez mais aforadas a brancos e pardos pelos mesmos poderes municipais. Segundo a autora, essa situação se manteve até o século XIX, pois ela documenta um conflito ocorrido na vila de Nova Almeida em 1847, no qual a Câmara municipal argumentara que levava ao menos 79 anos aforando as terras indígenas a brancos. Em alguns momentos, essas incursões em períodos muito anteriores ou muito posteriores aos fatos narrados podem conduzir a interpretações por vezes anacrônicas, que não tomam em conta o contexto do momento de produção do documento. Em relação ao documento de 1847, por exemplo, Moreira critica a afirmação da Câmara de que os índios eram somente usufrutuários das terras, e não os seus donos. Para a autora, a afirmação é criticável porque as terras não pertenciam ao município, mas sim aos índios, e deveriam ser protegidas segundo as leis específicas que regulavam o patrimônio indígena. Não obstante, segundo o Regulamento das Missões, aprovado dois anos antes do conflito, os índios aldeados eram somente usufrutuários das terras que ocupavam, ainda que contassem com a garantia de não ser expulsos e com a possibilidade de converter-se em proprietários após 12 anos de cultivo ininterrupto (BRASIL, 1845, art. 1.15º). O capítulo conclui, em qualquer caso, retornando ao final do século XVIII e sugerindo que esses episódios de traição por parte das autoridades chamadas a protegê-los permaneceram na memória coletiva dos moradores indígenas. Mais de vinte anos depois dos episódios, os nativos continuavam narrando aos viajantes a pouca confiança que depositavam na justiça institucional.

O último capítulo adentra no processo de subalternização dos indígenas que se abriu com o século XIX e a chegada da família real ao Brasil. Para a autora, um dos fatores que contribuiu para a progressiva exclusão dos índios dos cargos municipais foi a revogação do Diretório em 1798, porque implicou a eliminação dos privilégios dos índios e a sua equiparação jurídica ao status dos brancos. A autora conta que, ao mesmo tempo, essa equiparação só foi efetiva naqueles pontos prejudiciais à autonomia indígena, pois na prática o cargo de Diretor foi recriado, por exemplo, na vila de Nova Almeida em 1806, com o adendo de que esses novos Diretores exerciam funções mais restritas e coercitivas do que os antigos escrivães-diretores, e respondiam a uma configuração diversa do poder. Moreira conta como o sistema de trabalho compulsório foi se tornando muito mais pesado, marcado pela violência e validado pela “escola severa” do período joanino. Nesse sentido, a autora sugere que as Cartas Régias de 1808 que voltavam a permitir a “guerra justa” tinham também como objetivo reencenar a potência da monarquia, que se encontrava num contexto de crise após a fuga da Casa Real sob a ameaça de invasão napoleônica (318). No processo, reforça-se a noção de menoridade jurídica do indígena, e a subsequente submissão à tutela. Moreira conta que no Espírito Santo essa tutela foi exercida especialmente por particulares que eram encarregados de educá-los, cristianizá-los e civilizá-los. Outra faceta da menoridade jurídica era a tutela pública, que se traduzia em uma série de mecanismos que em última instância visavam ao controle social e ao trabalho coercitivo. Assim, muitos indígenas foram recrutados para o serviço militar, especialmente quando mantinham meios de vida diferenciados da cultura do trabalho nos termos europeus. Destarte, os índios que viviam da caça, pesca, roça e atividade madeireira eram os mais vulneráveis a recrutamentos forçados. Este caráter forçoso do recrutamento foi especialmente evidente porque a prestação de serviços militares à Coroa deixou de ter como contraprestação as tradicionais garantias de direito à terra, proteção e direitos específicos. O resultado, segundo Moreira, foi um significativo movimento diaspórico de indígenas aos sertões cada vez mais distantes do controle institucional, muitas vezes com as trágicas consequências de perda de laços com as suas antigas comunidades de origem, além da perda dos privilégios jurídicos reconhecidos aos índios aldeados.

Ao narrar os acontecimentos ao longo do livro, Vânia Moreira se esforça por destacar as estratégias dos indígenas para conseguir manter suas posições no contexto da conquista, esforço que se inserta numa agenda indigenista que vem buscando identificar o seu agenciamento e protagonismo como sujeitos da história. É uma tarefa que durante os últimos vinte anos vem rendendo prolíficos resultados, ainda que sejam insuficientes para situar os indígenas como agentes nos relatos não-indigenistas da história brasileira, como destacou a própria autora alguns anos atrás (MOREIRA, 2012). Por outro lado, talvez seja necessária certa cautela ao referir-se à relação entre indígenas e missionários como uma relação intercultural. Especialmente porque dentro dos estudos culturalistas a noção de diálogo intercultural vem sendo criticada por partir de um pressuposto de igualdade entre as partes que não leva em consideração a problemática da violência intrínseca à noção de universal que a cristandade e a modernidade europeia carregam, o que torna essa noção, portanto, inaplicável nos casos de identidades culturais ou reivindicações particularistas que desafiam os pressupostos do liberalismo econômico e do capitalismo mundializado – como ocorre, atualmente, com as demandas territoriais dos diferentes povos indígenas brasileiros (ÁLVAREZ, 2010).

Por momentos fica a sensação de que os jesuítas eram um mal menor no contexto da colonização, já que com eles era possível o diálogo, enquanto que com os poderes locais só imperava a força. A mesma autora, porém, frisa que a evangelização era um braço necessário da conquista violenta, que serviu para legitimá-la num momento no qual a Coroa não exercia nenhum tipo de controle efetivo sobre o território. Também é perigoso, nesse sentido, afirmar que a expulsão jesuítica acarreou uma política laica de civilização (88), já que no Diretório dos Índios o Reino reclamava para si a jurisdição temporal sobre os aldeados, mas continuava a encarregar a tarefa de evangelização e jurisdição espiritual aos representantes da igreja católica.

Tudo indica, portanto, que se existiu algum nível de diálogo prolífico entre jesuítas e indígenas, esse só foi possível pela existência de uma conjuntura em que também havia outros interesses em disputa, como os dos moradores e representantes do poder régio. Como a própria autora mostra em seu trabalho, a expulsão dos jesuítas abriu um período em que os indígenas conseguiram conservar e inclusive reforçar uma efetiva dimensão de autogoverno, que começou a desmoronar definitivamente com a mudança drástica de conjuntura aberta pelas revoluções liberais na Europa e a necessidade de reafirmação e consolidação do poder por parte das Coroas portuguesa e, posteriormente, brasileira.

Referências

ALVAREZ, Luciana. Mas alla del multiculturalismo: Critica de la universalidad (concreta) abstracta. Filosofia Unisinos n. 11, v. 2, p. 176-95, setembro 2010.

BRASIL. Decreto n. 426 – de 24 de julho de 1845 que contem o Regulamento acerca das Missoes de catechese, e civilisacao dos Indios. In Colleccao das leis do Imperio do Brasil de 1845. Tomo VIII, parte II, p. 86-96. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1846.

CLAVERO, Bartolome. Derecho indigena y cultura constitucional en America. Mexico: Siglo Veintiuno Editores, 1994.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Legislacao Indigenista no Seculo XIX. Sao Paulo: Edusp, 1992.

HESPANHA, Antonio Manuel. Imbecillitas. As bem-aventurancas da inferioridade nas sociedades do Antigo Regime. Sao Paulo: Annablume, 2010.

MOREIRA, Vania Maria Losada. Reinventando a autonomia: Liberdade, propriedade, autogoverno e novas identidades na capitania do Espirito Santo, 1535-1822. São Paulo: Humanitas, 2019.

MOREIRA, Vania Maria Losada. Os indios na historia politica do Imperio: avancos, resistencias e tropecos. Revista Historia Hoje n. 1, v. 2, p. 269-74, 2012.

Camilla de Freitas Macedo – Universidad del País Vasco. Bilbao – País Vasco – España.


MOREIRA, Vania Maria Losada. Reinventando a autonomia: Liberdade, propriedade, autogoverno e novas identidades na capitania do Espirito Santo, 1535-1822. São Paulo: Humanitas, 2019. Resenha de: MACEDO, Camilla de Freitas. Autonomia como agência: o caráter polifacetado da história de luta indígena no Espírito Santo. Almanack, Guarulhos, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

Quinto Sol – Revista de História. Santa Rosa, v.24, n.2, 2020.

mayo / agosto

Fotografía de tapa: Ernesto Padilla durante la campaña electoral de 1938 en Tucumán. Colección Ernesto Padilla, carpeta 11, folio 143. Archivo Histórico de la Provincia de Tucumán. Gentileza de Leandro Lichtmajer.

ARTÍCULOS

RESEÑAS

PUBLICADO: 2020-05-11

Revista Escrita da História. [?], v.8, n.12, jul./dez. 2019.

Marxismo na América Latina

EDIÇÃO COMPLETA

EDITORIAL

APRESENTAÇÃO

HOMENAGEM

DOSSIÊ: MARXISMO NA AMÉRICA LATINA

ARTIGOS LIVRES

PUBLICADO: 10.05.2020

Paideia – Revista de Educación. Concepción, n. 63, 2018.

En el número 63 de la revista Paideia comenzamos con un tema bastante actual en la comunidad docente como es la proliferación de neuromitos en educación. Los neuromitos se refieren a una concepción errónea que nace de una mala interpretación sobre resultados científicos asociados al cerebro, que se debe principalmente a la divulgación de información en redes sin asidero científico. Este tema lo abordan Paulo Barraza e Ivo Leiva, ambos investigadores del Centro de Investigación Avanzada en Educación (CIAE) de la Universidad de Chile en el primer artículo de esta edición.

Editorial

Publicado: 2020-05-08

La educación superior entre el reclamo localista y la ofensiva derechista. El movimiento pro-Universidad del Norte de Salto (1968-1973) | María Eugenia Jung GAribaldi

Los trabajos académicos son productivos cuando se apartan de los lugares comunes. En este aspecto, la investigación de María Eugenia Jung Garibaldi no es la excepción. El libro aborda el itinerario del Movimiento pro-Universidad del Norte (MUN), entre fines de los 60 y principios de los 70, e indaga su proyecto de instalar en el interior de Uruguay una casa de estudio que acabara con el monopolio de la Universidad de la República (Udelar). El objetivo es sintomático, dado que prescinde de dos perspectivas recurrentes en la bibliografía sobre la historia reciente de las universidades, los movimientos estudiantiles y los intelectuales en América Latina. La primera es la que asocia generalmente estas experiencias con vertientes políticas de izquierda. A lo que se suma el tradicional sesgo de los estudios de caso que muchas veces quedan anclados en las ciudades capitales y en las universidades más grandes de cada nación. De esta manera, frente al reduccionismo político y geográfico, Jung propone un relato historiográfico de un movimiento complejo que surge a fines de 1968 en la ciudad de Salto, lejos de Montevideo, y que termina asumiendo posiciones de las derechas más radicalizadas en el transcurso del período. Leia Mais

¿Reconocimiento o redistribución? Un debate entre marxismo y feminismo | Judith Butler e Nancy Fraser

Introducción

La presente reseña tiene como objetivo problematizar el debate Fraser-Butler, no a través del análisis de los dos postulados principales, sino a través de la crítica de los mismos y de las posibilidades que en ellos se encierran. Este ejercicio lo que pretende problematizar es la relación entre genitalia-sexo-género, con el capitalismo y la disolución de las certezas ontológicas con la pérdida de vigencia de lo denominado como moderno.

Tanto el debate Fraser-Butler, surgido en la New Left Review en el año 2000 y convertido en libro en 2017, como el debate filosófico en torno a la modernidad, aparecido en las primeras décadas del siglo XX, no son nuevos. Sin embargo, las problemáticas que abordan siguen estando vigentes, sobre todo, ahora, que los feminismos autodenominados radicales están en plena ofensiva reaccionaria poniendo en riesgo las vidas de las personas trans y lanzándose a una aventura colonizadora sobre aquellos cuerpos que consideran abyectos. Esto hace necesario señalar cómo determinadas articulaciones feministas pueden constituirse como represivas, donde una interpretación falaz de la relación entre género y sexo puede llegar a funcionar como vehículos de la dominación. Esto permitiría a grupos feministas enrocarse en el biologicismo y el etnocentrismo para instrumentalizar la lucha por la liberación y convertirla en su monopolio. De este modo, garantizarían, a través de la defensa de una feminidad cis y blanca, la invisibilización, persecución y represión de los colectivos más desfavorecidos. Es esta labor represiva de determinadas articulaciones feministas con vocación universalista y eurocéntrica, que se amparan en interpretaciones falaces de la realidad, la que constituye el objetivo de crítica de esta reseña. El texto de Fraser nos serán muy útiles para comprender este tipo de posiciones reaccionarias, sin que esto suponga que acusemos a Fraser en el presente por las afirmaciones teóricas mantenidas hace veinte años. Leia Mais

Revista Outrora. Rio de Janeiro, v.3, n.1, jan./jun. 2020.

Capa: Anna Clara L. Ferreira

Editorial

Desalinho

Entrevista

Artigos Livres

Resenhas

Publicada em: 07/05/2020

 

Projeto História. São Paulo, v.67, 2020.

JAN/ABR Intolerância Religiosa, Laicidade e Política

Artigos

Resenhas

Entrevistas

Publicado: 2020-05-07

Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 19 n. 2, 2020.

Capa: Batalhão da Escola Estadual Honório Guimarães (Arquivo João Quituba do CDHIS/UFU, JQ 189).

Editorial

Dossiê: Foucault, a genealogia, a história da educação

Artigos

Resenhas

Publicado: 2020-05-07

Devastación. Violencia civilizada contra los indios de las llanuras del Plata y del Sur de Chile (Siglos XVI a XIX) | Sebastián Alioto e Juan Francisco Jiménez

La historiografía argentina sobre los estudios indígenas y fronterizos puede datar su completa renovación con respecto a las miradas tradicionales a inicios de la década de 1980. Varios trabajos se han referido a las temáticas y aportes que fueron surgiendo a lo largo de las décadas siguientes, por lo tanto me limitaré aquí a señalar solo algunos datos que considero pueden contribuir a una mejor contextualización del libro que se reseña. En esos primeros momentos, las investigaciones históricas y antropológicas siguieron muy de cerca los avances que se producían en Chile y confluyeron en revisar el carácter esencialmente violento de la relación interétnica y, de manera paralela, a redefinir la frontera como un lugar de encuentro de diversos grupos sociales. En la década siguiente, las investigaciones comenzaron a tomar como referencia a otros espacios fronterizos y a incorporar nuevos conceptos y modelos historiográficos, fundamentalmente los desarrollados en torno a la expansión fronteriza del oeste norteamericano, del norte de México y la expansión imperialista en África. Sin duda, este período que se prolonga aproximadamente hasta inicios del siglo XXI, fue el más fructífero en cuanto a la diversidad de temáticas y de metodologías innovadores utilizadas en la investigación y, asimismo, en la aparición de revistas centradas casi exclusivamente en la historia indígena y en la proliferación de espacios de discusión y de mesas temáticas en las jornadas más relevantes de la disciplina histórica. Destaco como puntos principales de esta etapa, el predominio de una perspectiva microanalítica en los estudios y los esfuerzos por integrar la historia indígena a la historia nacional. Ambos puntos se aplicaron fundamentalmente al estudio de ejes que se complementan: la conformación de liderazgos étnicos mediante el análisis de las trayectorias de los caciques como experiencias políticas localizadas, y los estudios puntuales sobre algunos espacios fronterizos que ahondaban en la variedad de relaciones que se anudaban en ellos. Los compiladores de este libro fueron protagonistas, con distinta intensidad, de este momento de auge e innovación.

Lo que puede observarse desde hace casi una década es una escasa renovación en los temas trabajados, primando profundizaciones de enfoques ya conocidos. Lo que puede señalarse como novedad en esta “meseta” historiográfica es el debate en torno a la pertinencia de utilizar el concepto de genocidio/prácticas genocidas para los procesos de ocupación del espacio indígena a finales del siglo XIX, restableciéndose de algún modo la centralidad de la violencia fronteriza para explicar procesos pasados. En general, estos enfoques se encuentran muy vinculados y son interpelados por los movimientos indigenistas que están cobrado más visibilidad en la esfera política. La creación en 2004 de la Red de Investigadores sobre Genocidio y Política Indígena en Argentina en la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires es un reflejo de esta posición y en ella se nuclean gran parte de los investigadores que sostienen esta postura. El uso académico del concepto de genocidio está apoyado en una extensa bibliografía producida por historiadores y sociólogos nucleados en el grupo de Genocide Studies. Recientemente, dos publicaciones en revistas de amplia circulación reflejan la vitalidad de esta problemática: un debate en Corpus (2011) y un dossier en Memoria Americana (2019). Leia Mais

Democracia, federalismo e centralização no Brasil – ARRETCHE (TES)

ARRETCHE, Marta. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGV/Editora Fiocruz, 2012, 232 p. Resenha de: LOBO NETO, Francisco José da Silveira. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.12, n.2, maio/ago. 2014.

O livro de Marta Arretche trata da democracia, do federalismo e da centralização. Temas fundamentais na sociedade radicada neste país continental que, desde 15 de novembro de 1889 se constituiu, pelo decreto n. 1 do Governo Provisório, como Federação.

A autora, ao trabalhar seu objeto, prioriza o aprofundamento da ordem constitucional atual, no qual revela sua trajetória de cientista social e cientista política, recorrendo às referências que lhe oferecem a História e o Direito, na elucidação dos fatos e na construção de sua análise interpretativa.

Importante mencionar, desde já, o rigor metodológico da organização da obra composta de cinco capítulos, cada um deles com sua especificidade e todos se integrando para conformar a unidade do livro, “apresentado originalmente como tese de livredocência defendida no Departamento de Ciência Política na Universidade de São Paulo” (p. 24), em 2007. A própria autora nos diz, na Introdução, que “embora cada capítulo possa ser lido separadamente, o livro tem uma unidade teórica e analítica” (p. 13), no “objetivo de examinar ‘se’ e ‘como’ Estados federativos produzem efeitos centrífugos sobre a produção de políticas públicas, tomando o caso brasileiro como objeto empírico” (p. 13).

Peça importante na interpretação do seu livro é, além da Introdução (p. 1131), o artigo de 2001 “Federalismo e democracia no Brasil: a visão da ciência política norteamericana” (Arretche, 2001, p. 30). Nele, ela analisa os estudos da ciência política nos Estados Unidos, revelando-nos rumos novos de pesquisa. Sua preocupação foi “destacar a necessidade de ampliação da agenda de pesquisas sobre a natureza das relações intergovernamentais no Brasil”, sugerindo dois caminhos: “exame dos processos decisórios em que o governo federal foi bem sucedido em implementar sua agenda de reformas” e “análise do processo decisório de políticas que envolvam relações diretas entre o Poder Executivo dos diversos níveis e/ou nas quais o Poder Judiciário funcione como árbitro dos conflitos intergovernamentais” (Arretche, 2001, p. 30).

A importância deste livro, portanto, está justamente na concretização dessa ampliação de agenda na própria produção da pesquisadora, a partir de 2001. As análises contidas nos cinco capítulos respondem a muitas questões, mas abrem, sobretudo, outras tantas indagações.

De fato, a autora menciona duas dimensões centrais no seu foco de análise: “o poder de veto das unidades constituintes nas arenas decisórias centrais (sharedrule) e a autonomia dos governos subnacionais para decidir suas próprias políticas (selfrule)” (p. 13). Assim, a estrutura do livro tem os três primeiros capítulos voltados para a primeira dimensão e os dois últimos abordando a segunda dimensão.

No primeiro capítulo, a pesquisadora examina 59 iniciativas de interesse federativo, que foram aprovadas na Câmara dos Deputados entre 1989 e 2006. Tratam de diferentes matérias que afetam interesses dos governos subnacionais, relacionadas às receitas de estados e municípios; à autonomia dos governos subnacionais na decisão sobre a arrecadação de seus impostos, o exercício de suas competências e a alocação de suas receitas. E ela o faz sempre trazendo o texto da Constituição de 1988, onde claramente é atribuída à União autoridade para legislar “sobre todas as matérias que dizem respeito às ações de Estados e municípios” (p. 70). A autora também demonstra que os constituintes de 1988 “não criaram muitas oportunidades institucionais de veto” e “não previram fortes proteções institucionais para evitar que a União tomasse iniciativas para expropriar suas receitas ou mesmo sua autoridade sobre os impostos e as políticas sob sua competência” (p. 70). Assim, com argumentação solidamente fundamentada, aborda os seguintes aspectos: a partir do federalismo comparado, analisa hipóteses do processo centralizador vivido na década de 1990; estuda amplamente as leis federais afetando interesses dos governos subnacionais, fundamentando-se na distinção entre execução de políticas e autoridade decisória; analisa – como determinantes federativos desse processo – as mudanças nas agendas da Presidência da República e o comportamento das bancadas estaduais; finalmente, identifica a influência das instituições federativas em relação aos processos decisórios. Em sua conclusão “de como 1988 facilitou 1995”, que aparece como título deste primeiro capítulo do livro, Marta nos diz que “há mais continuidade entre as mudanças na estrutura federativa da segunda metade da década de 1990 e o contrato original de 1988 do que a noção de uma ampla reestruturação das relações intergovernamentais autorizaria supor” (p. 72).

Já o segundo capítulo se volta para uma análise do comportamento das bancadas estaduais na Câmara dos Deputados em relação às matérias de interesse federativo, especificamente aquelas em que a União e os “governos territoriais” tinham interesses opostos. Foram identificadas 69 iniciativas – propostas de emenda constitucional (PECs), projetos de lei complementar (PLPs) e projetos de lei (PLs) – representando 24% de votações no período de 1989 a 2009. Este capítulo se ocupa da agenda federativa após a Constituição de 1988 cuja temática principal é a criação de impostos e contribuições não sujeitos à repartição com os estados e municípios, da análise da correlação entre a “centralização decisória nas arenas federais” e a limitação das “oportunidades institucionais de veto dos governos territoriais”. A conclusão da pesquisadora é exposta em um duplo aspecto. Primeiramente a “centralização regulatória combinada à ausência de arenas decisórias adicionais de veto” limita as oportunidades de veto dos governos subnacionais. Em segundo lugar, o comportamento das bancadas estaduais sem coesão em torno das questões estaduais, cedendo mais aos acordos partidários do que aos interesses regionais que representam (p. 112113).

No capítulo terceiro, a investigação se volta para uma análise comparada da relação entre federalismo e bicameralismo, como fundamentação argumentativa do estudo sobre o comportamento do Senado Federal brasileiro. Sobretudo estudando a tramitação de 28 emendas constitucionais, a autora constata que nossos senadores não se deixam afetar pelas pressões dos governadores, das elites econômicas ou da opinião pública dos estados ou regiões que representam. O poder de veto no Senado Federal, de fato, pertence aos partidos políticos e não aos interesses regionais. Unindo o caso brasileiro às teorias que embasam o relacionamento do federalismo ao bicameralismo, a pesquisadora assim se expressa em sua conclusão: “mesmo sob o bicameralismo simétrico em que a Câmara Alta constitua uma arena adicional de veto, o efeito inibidor de vocalização dos interesses regionais sobre a mudança institucional pode ser substancialmente reduzido se a segunda casa legislativa também for uma casa partidária, isto é, se a disciplina partidária prevalecer sobre a coesão da representação regional” (p. 141).

Se até aqui Arretche privilegiou a análise da centralização e o poder de veto das instâncias subnacionais, nos capítulos quarto e quinto seu foco será a descentralização e autonomia nas relações verticais da federação e a questão da igualdade regional.

O capítulo quarto examina as bases teóricas para a análise dos “mecanismos institucionais que permitem aos governos centrais obter a cooperação dos governos subnacionais para realizar políticas de interesse comum” (p. 27). A análise comparada permitiu minimizar uma correlação direta entre a criação destes mecanismos e a forma federalista ou unitária de organização do Estado. A distinção conceitual entre execução e autoridade decisória é mais útil do que a distinção entre estados federativos e unitários “para predizer os efeitos centrífugos da relação central-local, isto é, dos arranjos verticais dos estados nacionais” (p. 170). Isto significa, no caso brasileiro, que a “convergência em torno das regras federais é alavancada quando a) a Constituição obriga comportamentos dos governos subnacionais ou a União controla recursos fiscais e os emprega como instrumento de indução de escolhas dos governos subnacionais.” (…) “Neste sentido, efeitos centrífugos não são diretamente derivados da fórmula federativa, mas mediados pelo modo como execução local e instrumentos de regulação federal estão combinados em cada política particular” (p. 171).

O capítulo final enfrenta – inovando – a questão crucial do pseudo-confronto entre a proposta federalista e a igualdade territorial como forma de manter a unidade da União. Neste sentido, argumenta contra as interpretações de que a Constituição de 1988 criou instituições federativas comprometedoras da eficiência do Estado brasileiro, lembrando que não podem ser ignorados nem o papel das desigualdades regionais, nem as relações da União com os governos subnacionais sobre o seu funcionamento. A divisão entre unidades pobres e ricas é que está “na origem da escolha por um desenho de Estado que permita ‘manter a União’ e evitar os riscos associados à fórmula majoritária” (p. 175). Resgatando as discussões dos capítulos anteriores, Marta Arretche sintetiza: “Distinguir quem formula de quem executa permite inferir que, no caso brasileiro, embora os governos subnacionais tenham um papel importante (…) no gasto público e na provisão de serviços públicos, suas decisões de arrecadação tributária, alocação de gasto e execução de políticas públicas são largamente afetadas pela regulação federal”. Após debruçar-se sobre dados de um panorama das políticas nacionais de redução das desigualdades e seus efeitos sobre a desigualdade territorial de receita, das políticas nacionais de regulamentação e supervisão do gasto e seus efeitos, a autora afirma em sua conclusão: “A parte mais expressiva das transferências federais no Brasil tem sua origem no objetivo de reduzir desigualdades territoriais de capacidade de gasto. Essas foram (historicamente) um elemento central de construção do Estado brasileiro, similarmente a outras federações, em que a ideia de uma comunidade nacional única prevaleceu sobre as demandas por autonomia regional” (p. 201).

Como afirma a apresentadora, o livro traz “uma interpretação inovadora sobre o nosso sistema federativo”. É uma obra fundamental para os cientistas políticos e apoio à autoanálise dos políticos em seu comportamento. Sobretudo, porém, indicado para fortalecer análises de pesquisadores e profissionais da saúde e da educação, já que estes campos manifestam fundamental correlação entre os poderes central e locais.

Referências

ARRETCHE, Marta. Federalismo e democracia no Brasil: a visão da ciência política norteamericana. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 14, n. 4, p. 23-31, 2001. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/spp/v15n4/10369.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2014. [ Links ]

Francisco José da Silveira Lobo Neto – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: lobo@fiocruz.br

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Dicionário de trabalho e tecnologia – CATTANI; HOLZMANN (TES)

CATTANI, David; HOLZMANN, Lorena (Org.). Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre, Zouk, 2011, 494 p. Resenha de: LIMA, Raphael Jonathas da Costa. Revista Trabalho, Educação e Saúde, v.12, n.2, Rio de Janeiro, maio/ago. 2014.

Organizado por Antonio David Cattani e Lorena Holzmann, o Dicionário de trabalho e tecnologia, publicado em 2011, já em sua segunda edição, tem como propósito capturar e reunir inúmeros aspectos que vêm configurando o mundo do trabalho e orientando um conjunto de mudanças cuja maior profusão passou a ser verificada na fase que se estende das últimas décadas do século XX ao início de século XXI. Obra de caráter coletivo e multidisciplinar, o dicionário contou com a contribuição de 62 especialistas de diferentes áreas, os quais se desdobraram na composição de 107 verbetes dedicados a sumarizar aspectos referentes à implementação da tecnologia ao trabalho. Trata-se da evolução editorial de uma obra originalmente publicada em 1997 com apenas cinquenta verbetes e sob o título Trabalho e tecnologia: dicionário crítico, renomeada em 2002 para Dicionário crítico de trabalho e tecnologia e, finalmente, em 2006, quando ganhou o título atual, reunindo 96 verbetes e incorporando outros autores.

Conforme a caracterização feita na apresentação, os organizadores do dicionário têm como finalidade principal oferecer uma obra capaz de dimensionar as grandes transformações no mundo do trabalho (resultantes de inovações tecnológicas, gerenciais e institucionais), o aumento do não trabalho/desemprego e seus efeitos danosos, segundo eles preocupações já bastante disseminadas entre acadêmicos, trabalhadores e suas organizações. Nesse sentido é que procuram apresentar um panorama o mais completo possível acerca de conceitos específicos unificados sob a alça das macrocategorias trabalho e tecnologia. Outrossim, em sua quase totalidade, o dicionário oferece ao leitor um material com extrema coesão, podendo-se mesmo perceber uma enorme uniformidade nos argumentos e também nas avaliações feitas pelos autores acerca dos efeitos identificados nos processos tratados por cada verbete. Ponto que pesa a favor do dicionário. Em outros termos, prevalece o argumento segundo o qual da conjugação entre (novos) processos de trabalho e formas inovadoras de tecnologia decorre, o mais das vezes, a precarização que de alguma forma atinge os indivíduos em seu espaço profissional com reflexos sentidos nas demais esferas do seu cotidiano, notadamente na familiar.

A constatação acima apontada, afinal, condiz com a argumentação (trivial, é verdade, mas fundamental) segundo a qual a precarização foi o efeito negativo mais percebido e discutido pelas análises que margearam o panorama que envolveu as modificações no mundo do trabalho, sobretudo, no último quarto do século XX, potencializadas por avanços produtivos e organizacionais configurados, dentre outras formas, pela constituição de clusters e distritos industriais espalhados por Europa, Estados Unidos e, finalmente, Brasil. Isso porque, historicamente, a implantação (e manipulação) de práticas inovadoras de organização da produção industrial tem sido associada à intensificação do controle, da vigilância e da exploração do trabalho, sucedidos estes pelo enfraquecimento da ação sindical, fenômeno por sua vez acompanhado da sistemática ameaça aos direitos e às conquistas dos trabalhadores, preocupações frequentemente presentes nesse debate.

Inovações emblemáticas, como a introdução por Henry Ford da linha de montagem movida a volante magnético, em sua fábrica de Highland Park, Michigan, nos Estados Unidos, em 1913 – entendida como um avanço sem precedentes na indústria automobilística, a despeito de ter se apropriado de princípios mecânicos já conhecidos – tornaram-se emblemáticas pelo que passaram a significar em termos de ordenamento social, organização e controle das forças sociais do trabalho pelo empreendimento capitalista em expansão (Beynon, 1995). Nessa época, origina-se o conjunto de processos reunidos sob o nome de fordismo, praticamente consensuais nas práticas empresariais subsequentes, até a sua crise, nos anos 1970. O dicionário contempla o fordismo com uma caracterização extremamente fiel ao que de fato veio a representar para a indústria: uma inovação simultânea no chão de fábrica e nas dimensões macroeconômicas e institucionais. Em consonância com um conjunto de práticas (racionalização, separação entre concepção e execução do trabalho e a individualização na prescrição e execução de tarefas) reunidas sob a nomenclatura de taylorismo (concebidas por Frederick Taylor), o fordismo avançou em sua finalidade de estabelecer um novo princípio de disciplinamento fabril e um novo mecanismo de extração de maisvalor via intensificação do trabalho.

O aparato de procedimentos técnicogerenciais aglutinados a partir da combinação fordismotaylorismo aparece de forma bem sistematizada no dicionário, assim como processos como o toyotismo, o just in time eo kanban, os quais constituem a fase posterior de desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo. Essa etapa está mais relacionada à segunda metade do século XX, quando se instaura um regime de acumulação (flexível) caracterizado pelo fim do compromisso fordista e composto pelo amplo quadro de reestruturação produtiva que incluiu, além de alterações tecnológicas e na organização do trabalho, a reorganização de firmas, o estabelecimento do fluxo financeiro em rede e o deslocamento regional incessante de empresas, confirmando assim o princípio básico do capitalismo de buscar novos espaços para reinvestir seu capital excedente e reequilibrar sua taxa de lucros (Harvey, 2005).

O dicionário também caracteriza aqueles instrumentos concebidos como estratégias de resistência frente ao avanço avassalador das mudanças tecnológicas dentro das empresas. O verbete ‘ação sindical em face da automação’ mostra como o aperfeiçoamento técnico da produção visa fragilizar os trabalhadores, seja pelo seu ajuste ao princípio da polivalência, seja pela prática da redução de postos de trabalho. Em contrapartida, a ‘ação sindical em face da automação’ e a ‘greve’ se colocam como os dispositivos capazes de promover modificações nas relações de produção e, sobretudo, na estrutura de poder, usando a rigor os sindicatos como a forma institucional mais expressiva de ação coletiva com essa finalidade. E a processos particularmente problemáticos e polêmicos, como ‘degradação do trabalho’ e ‘divisão sexual do trabalho’, somam-se outros fenômenos, como ‘informalidade’, ‘tecnociência’, ‘teletrabalho’, ‘autogestão’ e ‘economia solidária’, que ajudariam a reduzir o fosso de poder que historicamente vem separando empresários e trabalhadores no seio da economia capitalista. Essas novas formulações conferem um caráter mais diversificado ao dicionário ao passo que são fortes provas de que os estudos sobre trabalho sempre se renovam pela incorporação dessas inovações gerenciais, organizacionais e tecnológicas inauguradas ano após ano.

Vale ressaltar que, logo na apresentação, os organizadores da obra destacam a centralidade da inovação tecnológica ao recordarem ser ela uma componente inquestionável do trabalho, uma vez que “produz artefatos e processos que, cada vez mais, passam a mediar o liame entre o homem e a natureza” (p. 12), não se entendendo essa relação exatamente como saudável, pois implica um progressivo sufocamento das forças sociais do trabalho. De fato, é inquestionável que, no decorrer do seu desenvolvimento histórico, o capitalismo vem procurando beneficiar o processo de trabalho (e não o trabalhador), almejando alcançar um maior grau de eficiência e de produtividade, sobretudo em detrimento do poder das organizações trabalhistas.

Portanto, cabe aqui superar a perspectiva histórica de enxergar unicamente a ruptura entre o par ciência/tecnologia e o conjunto de forças sociais e econômicas do qual faz parte. Esse entendimento de renovação na relação entre tecnologia e sociedade se manifesta no tratamento conferido pelos autores às sociologias da ciência, da tecnologia e, naturalmente, do trabalho, convergindo com a afirmação de Braverman (1987) de não se instituir um cenário de hostilidade à ciência e, por consequência, à tecnologia. Deve-se apenas questionar os seus empregos como instrumentos de criação, perpetuação e aprofundamento do fosso que separa classes sociais. Implica afirmar que a tecnologia não pode ser acusada de produzir relações sociais, em geral conflituosas e de subordinação, porque em sua essência ela é o resultado e não a causa dessas relações representadas pelo capital e que favorecem o processo de acumulação no seio da engrenagem capitalista. Pois bem, como ciência e tecnologia estão intimamente ligadas, o dicionário não poderia desconsiderar este fato e, como resultado, confere certa relevância a processos tais como ‘inovação’, ‘biopoder’ e ‘nanotecnologia’, enfatizando ainda a relação entre ‘tecnociência e trabalho’, ‘tecnologia e desenvolvimento’, de forma a evitar o determinismo tecnológico que caracteriza, em especial, a sociologia (do trabalho). Não obstante, ao lançar luz sobre a tecnologia e sua relação com processos científicos e inovadores, o dicionário não abdica de assinalar os fenômenos que, quase obrigatoriamente, surgem imbricados a essa dinâmica, a exemplo daqueles relacionados à saúde do trabalhador (‘ergonomia’, ‘ergologia’, ‘lesões por esforços repetitivos’ e ‘qualidade de vida no trabalho’).

Cabe aqui suscitar que, possivelmente, o único porém desse dicionário com cerca de 470 páginas é o fato de, em hipótese alguma, se tratar de uma obra orientada a iniciantes no assunto. Por outro lado, revela-se uma preciosíssima fonte de consulta para pesquisadores com relativa experiência e algum aprofundamento nos diversos debates colocados, o que justifica a aparente falta de didatismo que o material deixa transparecer em diversos momentos. Essa dificuldade é ligeiramente amenizada através da inclusão, ao final do manuscrito, de um índice por assuntos e verbetes, ferramenta extremamente útil à medida que permite fazer correlações entre os tópicos elencados e, comparativamente, atestar a maior ou menor ocorrência de cada um no seio do debate.

Não obstante tal constatação, esse dicionário temático, indiscutivelmente, é uma obra de grande utilidade para os estudiosos e interessados no tema e, desde já, ocupa a condição de item de consulta obrigatória em língua portuguesa. Ele permite não só compreender de forma sistematizada o percurso da degradação do trabalho no século XX como identificar os mais significativos instrumentos elaborados para mitigar seus efeitos. Igualmente, conforme salientam Cattani e Holzmann na apresentação a esta edição, almeja-se aqui oferecer uma obra capaz de transpor o caráter tradicionalista dos dicionários, satisfeitos apenas em disponibilizar ao leitor a gênese e o desenvolvimento histórico de conceitos. Conforme entendem, o que orientou a publicação foi a possibilidade de subsidiar o seu público alvo com os instrumentos capazes de qualificar as investigações que porventura estejam em curso. Nesse sentido, não se trata de um glossário repleto de definições desassociadas, mas de um preciso mapeamento a respeito das questões abordadas pelas mais renomadas publicações e evidenciadas durante os principais eventos científicos nacionais e internacionais.

Referências

BEYNON, Huw. Trabalhando para a Ford: trabalhadores e sindicalistas na indústria automobilística. 2. ed. Paz e Terra: São Paulo, 1995. [ Links ]

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX. 3. ed. LTC Editora: Rio de Janeiro, 1987. [ Links ]

HARVEY. David. A produção capitalista do espaço. 2. ed. Editora Annablume: São Paulo, 2005. [ Links ]

Raphael Jonathas da Costa Lima – Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. E-mail: raphaeljonathas@gmail.com

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História da Enfermagem. Brasília, v.10, n.2, 2019.

POSTED BY: HERE 5 DE MAIO DE 2020

EDITORIAL

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Sceller et gouverner: Pratiques et représentations du pouvoir des comtesses de Flandre et de Hainaut (XIIIe-XVe Siècles) – JARDOT (APHG)

JARDOT, Lucie. Sceller et gouverner: Pratiques et représentations du pouvoir des comtesses de Flandre et de Hainaut (XIIIe-XVe Siècles). Resenha de: PROVOU, Anne-Frédérique. Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie (APHG) 5 mai. 2020. Disponível em:.<https://www.aphg.fr/Sceller-et-gouverner-pratiques-et-representations-du-pouvoir-des-comtesses-de>Consultado em 11 jan. 2021.

L’objectif de cette riche étude, à la croisée entre histoire des pouvoirs, des genres et des représentations, est de saisir à travers leurs sceaux le pouvoir et le discours des princesses de Flandre et de Hainaut entre le XIIIe et le XVe siècle, soit en tout vingt-et-une princesses, de Marguerite de Constantinople à Marie de Bourgogne (1244-1482). Lucie Jardot a entrepris ce lourd travail, révélant les aspirations et les ambitions de ces femmes, leurs objectifs politiques et le « discours par l’image » (p. 287) qu’elles déployèrent sur leurs sceaux, l’enjeu étant de comprendre comment ces femmes se représentaient elles-mêmes et voyaient leur propre pouvoir, mais aussi qu’elle fut leur pouvoir réel, l’analyse sigillaire venant ici se coupler à une analyse diplomatique pointue, celle des actes et des chartes produits par ces femmes et auxquelles leurs sceaux furent apposés. Il s’agissait aussi de comprendre en quoi l’insertion de ces femmes dans une parentèle, dans une Maison, fut constitutive de leur identité et de leur pouvoir, une identité fluctuante et « plastique » (p. 285) comme le démontre Lucie Jardot, les princesses devenant successivement fille, épouse, mère et veuve et acquérant de facto un pouvoir et un rôle politique différents.

Une telle étude s’inscrit dans plusieurs décennies déjà de travaux sur l’histoire des genres et des femmes, le monde anglo-américain ayant inauguré la recherche en ce domaine, suivi plus tard par les historiens français [2]. Les questions sont multiples : les femmes eurent-elles un pouvoir au Moyen Âge et peut-on parler de pouvoir au féminin au Bas Moyen Âge ? Ces questions, Lucie Jardot entend y répondre en étudiant le cas précis des principautés hainuyère et flamande, où des héritières puissantes et ambitieuses comme Marguerite de Constantinople ou Jacqueline de Bavière revendiquèrent leur pouvoir, ainsi que leur droit à hériter et à gouverner, deux notions profondément liées au Moyen Âge. Un tel sujet s’inscrit donc dans le sillage des recherches sur le queenship et sur l’histoire des femmes de pouvoir, mais aussi du pouvoir des femmes, qui exprimèrent leurs revendications politiques et leur autorité à travers leurs sceaux, objets de métal chargés « d’identifier leur détenteur et de le distinguer », d’être « le support de leur personnalité juridique » (p. 25-26), ainsi que le support d’une mémoire lignagère, le pouvoir de ces femmes ne pouvant être distingué de la Maison (et même des Maisons) auxquelles elles appartenaient. En cela, l’étude proposée ici est également une étude sur l’aristocratie et la noblesse médiévale.

Si l’auteure de ce livre n’est certes pas la première à étudier le pouvoir féminin, elle est l’une des premières à l’étudier à travers les sceaux et les actes que produisirent ces femmes. Si l’histoire des femmes et des genres connaît un renouveau certain depuis une vingtaine d’années en histoire médiévale, la sigillographie elle – et plus largement l’étude des représentations iconographiques – en sont restés les parents pauvres, peu d’études mettant en parallèle ces deux champs de recherche [3]. Ce livre entend remettre à l’honneur un domaine d’étude délaissé, qui a largement souffert de son statut de « science auxiliaire », en étudiant pas moins de 62 types de sceaux et 750 empreintes différentes. Lucie Jardot insiste d’ailleurs sur la nécessité de confronter ces sceaux avec les chartes et les actes auxquels ils furent accolés, si l’on ne veut pas les couper de leur contexte historique et de leurs objectifs politiques réels. Ces sceaux et ces empreintes, dont l’auteure répertoria minutieusement la forme, la couleur et tant d’autres éléments essentiels pour comprendre les codes et les normes qui présidaient à leur création, – ce qui nous révèlent bien des choses sur les pratiques de chancellerie, en pleine évolution au Bas Moyen Âge –, furent comparés également avec leurs homologues masculins, soit les sceaux des pères et époux des princesses hainuyères et flamandes. Les sceaux féminins ne sont compréhensibles en effet que si on les étudie à travers les différents groupes dans lesquels s’insérait l’individu féminin au Moyen Âge : la famille, la « Maison » à laquelle appartenait la princesse, mais aussi le lignage de son époux, le genre féminin enfin, par opposition au genre masculin. Ces comparaisons mettent en avant des normes sigillaires qui s’appliquèrent autant aux hommes qu’aux femmes, de même que des normes plus masculines, dont certaines princesses surent user avec intelligence pour renforcer leur position et leur pouvoir politique et parler d’égal à égal avec les hommes de leur entourage. Ce fut le cas entre autres de Marie de Bourgogne, héritière de la Grande Principauté de Bourgogne qui adopta sur son premier Grand Sceau (1477) un type équestre qui était passé de mode pour les femmes depuis le XIIIe siècle et qui n’était plus guère utilisé que par les hommes. Un tel choix en faisait l’égale de son époux, Maximilien de Habsbourg, petit prince autrichien, mais aussi et surtout du roi de France Louis XI, désireux de s’emparer du large héritage de sa filleule ; il lui permettait aussi de s’affirmer comme la digne héritière des ducs de Bourgogne, en reprenant les pratiques de chancellerie et les pratiques sigillaires de ses ancêtres masculins, s’opposant là encore aux ambitions du roi de France. Les princesses hainuyères et flamandes usèrent ainsi des types et des normes sigillaires pour s’inscrire dans un groupe, tout en se réappropriant ces normes, ainsi que les emblèmes de leurs ancêtres féminins et masculins, pour affirmer un message politique propre et s’inscrire dans une lignée qui n’était pas toujours celle de l’époux, mais parfois aussi celle du père (chapitres IV et VI).

L’auteure insiste d’ailleurs sur la nécessité de ne pas distinguer trop frontalement les pratiques gouvernementales masculines et féminines, afin de cesser d’envisager le pouvoir féminin comme une « anomalie », erreur dont ont déjà trop souffert les travaux des chercheurs. Le pouvoir de ces princesses n’était certes pas la solution rêvée pour des lignées qui préféraient trouver, pour assurer leur survie, un héritier masculin, mais leur capacité à hériter et leur insertion dans une lignée assuraient à ces femmes un droit à gouverner qui restait une solution parfaitement concevable et envisageable au Moyen Âge, dans le cas où aucune autre voie n’était possible. C’était en somme, dans un monde patriarcal, une solution de dernier recours, mais une solution tout de même, d’autant plus que les mères pouvaient être amenées à jouer le rôle de médiatrices entre le père décédé et le fils, trop jeune encore pour gouverner, constat qui amène Lucie Jardot à souligner le « caractère temporaire » de ces « règnes féminins » (p. 285). Les princesses de Hainaut et de Flandre ne gouvernèrent pas uniquement donc dans l’ombre de leur époux et sous leur tutelle, l’auteure insistant sur le pouvoir effectif de ces femmes qui, en ce qu’elles surent « manipuler un certain nombre de signes » en inventant des sceaux, des gisants et d’autres outils iconographiques censés les représenter elles et leur pouvoir, ont assurément gouverné. Si les femmes d’ailleurs sont aptes à gouverner au Moyen Âge, c’est parce qu’elles sont avant tout des héritières et les princesses surent mettre en avant ce statut dans leurs sceaux, réemployant des normes sigillaires mais sachant aussi les détourner à leur avantage pour transmettre un message politique précis, comme le fit Marie de Bourgogne en 1477. Pensons aussi à Jacqueline de Bavière qui, pour revendiquer des principautés menacées par son cousin Philippe le Bon, prit soin de faire figurer sur plusieurs de ses sceaux des symboles rappelant la puissance de la lignée dont elle était issue, la famille des Wittelsbach (chapitre VI). Le caractère et la personnalité de ces femmes, ainsi que le contexte politique et dynastique dans lequel elles s’inscrivirent, permettent d’expliquer des comportements sigillaires et diplomatiques originaux, révélateurs de leurs ambitions et de leur pouvoir réel.

Quelles sont les conclusions donc de cet ouvrage ? Sans gâter le plaisir du futur lecteur, retraçons-en les grandes lignes : le passage du sceau en navette (aussi appelé sceau en pied) au sceau armorial est très révélateur selon Lucie Jardot de l’évolution du pouvoir des princesses hainuyères et flamandes, mais aussi de l’évolution de leur statut (statut d’héritière, de femme mariée, de mère ou encore de veuve). Ce passage se fit dans le courant du XIVe siècle, le décor architectural, caractéristique des sceaux en navette, se muant en un support héraldique, un constat valable pour les princesses françaises en général, mais particulièrement parlant dans le cas des princesses flamandes. Pensons notamment à Marguerite de Flandre, épouse de Louis de Male et fille de Philippe V de France : le choix des sceaux armoriaux n’était pas anodin, puisqu’ils permettaient de mettre en avant les terres et héritages des princesses flamandes, à une époque où leurs possessions ne cessèrent d’augmenter – Marguerite de Flandre acquit notamment en 1461 le comté d’Artois et le comté de Bourgogne, ainsi que la seigneurie de Salins –. Les princesses ont ainsi mis en avant, à travers cette nouvelle mode sigillaire, leur statut d’héritières, au détriment de leurs autres statuts. Les sceaux donnaient à voir l’alliance par le mariage entre deux familles, facteur de pacification, en même temps que les terres que l’union permettait de regrouper, ce qui est tout à fait révélateur dans un monde où posséder des terres, c’est être puissant. Pour Lucie Jardot, le passage au sceau armorial traduit ainsi « une essentialisation de la place des femmes considérées […] comme des vecteurs de paix », des femmes qui devaient garantir, en se mariant, la survie d’une lignée, que ce soit sur le plan dynastique ou mémoriel, les sceaux mettant en avant la memoria de la Maison et le rôle essentiel des femmes dans ce domaine.

Lucie Jardot insiste aussi, on l’a vu, sur le fait que le pouvoir féminin ne constituait pas une anomalie au Moyen Âge : désireuse de l’envisager sous un jour plus positif, l’auteure rappelle que ces femmes ont bien été des femmes de pouvoir, leurs sceaux et leurs actes le démontrant, même si ce fut souvent dans un cadre et pour un temps limité. Il ne faut pas en effet se méprendre : si certaines princesses à la personnalité forte surent s’affirmer, profitant d’un contexte politique et dynastique favorable, la plupart des princesses hainuyères et flamandes n’exercent un pouvoir que par procuration de leur époux, profitant comme dans le cas de la Grande Principauté de Bourgogne de l’immensité d’un territoire difficile à administrer pour un seul homme, le duc requérant ainsi l’aide de son épouse pour le seconder (chapitre VI). Au XVe siècle, la position des princesses hainuyères et flamandes sur l’échiquier politique devint plus complexe encore : il semble de moins en moins évident de leur confier le pouvoir, les mœurs politiques ayant changé et entrainant une forte masculinisation du pouvoir, dont témoigne l’élaboration à la même époque de la loi salique. Les sceaux, dans ce contexte particulier, ont pu se révéler une arme précieuse dont Jacqueline de Bavière et Marie de Bourgogne surent user, même si elle ne leur permit pas de remporter la bataille finale. Le caractère de plus en plus « affirmatif » des sceaux féminins laisse d’ailleurs deviner une perte de pouvoir des princesses hainuyères et flamandes. Paradoxalement donc, Jacqueline de Bavière et Marie de Bourgogne sont à la fois le témoignage de l’ambition politique que pouvaient avoir ces femmes, autant que le témoignage de leur faiblesse nouvelle, sur un échiquier politique dont les règles étaient en train de changer.

L’étude présentée ici reste encore à achever selon Lucie Jardot, l’ensemble des objets représentatifs du pouvoir féminin en Hainaut et en Flandre n’ayant pu être étudiés dans ce seul livre. Il resterait encore notamment à analyser les représentations produites par le mécénat artistique et littéraire de ces femmes, des œuvres révélatrices elles aussi de leur pouvoir, symbolique et réel.

Un lien vers le podcast Passion médiévistes

Notes

[2] Nous revenons ici sur les travaux français, même si cette liste n’a pas pour objectif d’être exhaustive. Georges Duby et Régine Le Jan figurent parmi les premiers à s’être penchés sur le sujet en France : voir G. DUBY, Mâle Moyen Âge. De l’amour et autres essais, Paris, Flammarion, 1988 et R. LE JAN, « L’épouse du comte du IXe au XIe siècle : transformation d’un modèle et idéologie du pouvoir », dans Femmes, pouvoir et société dans le Haut Moyen Âge, S. Lebecq, R. Le Jan, A. Dierkens et J. M. Sansterre (dir.), Paris, Picard, 2001, p. 65-74. Depuis ces premiers travaux, plusieurs chercheurs ont insisté sur le fait qu’on ne pouvait plus concevoir le pouvoir au Moyen Âge sans étudier celui des femmes. Voir plus particulièrement A. NAYT-DUBOIS et E. SANTINELLI (dir.), Femmes de pouvoir et pouvoir des femmes dans l’Occident médiéval et moderne, Valenciennes, Presses Universitaires de Valenciennes, 2009 et E. BOUSMAR, J. DUMONT et A. MARCHANDISSE (dir.), Femmes de pouvoir, femmes politiques durant les derniers siècles du Moyen Âge et au cours de la première Renaissance, Bruxelles, De Boeck, 2012. Nous renvoyons à l’introduction de l’ouvrage de Lucie Jardot, p. 19-23, pour un développement historiographique plus complet sur ce sujet.

[3] Brigitte Bedos-Rezak et Jean-Luc Chassel ont étudié la sigillographie féminine, mais leurs entreprises restent isolées. Voir à ce sujet B. BEDOS-REZAK, « Women, seals and power in medieval France (1150-1350) », dans Women and Power in the Middle Ages, M. Erler et M. Kovaleski (dir.), Athènes-Londres, University of Georgia Press, 1988, p. 61-82 et J. L. CHASSEL, « Le nom et les armes : la matrilinéarité dans la parenté aristocratique du second Moyen Âge », Droit et cultures, n° 64, 2012.
Disponible en ligne : https://journals.openedition.org/dr…

Anne-Frédérique Provou – Etudiante en master d’histoire du Moyen Age, Université de Lille.

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[IF]

Boletim Historiar. São Cristóvão, v.7, n.01 (2020): Jan./Abr. 2020

Artigos

Resenhas

Publicado: 2020-05-04

História Revista. Goiânia, v.24, n.2, 2019.

El pensamiento político medieval

Dossiê

Artigos

Publicado: 02-05-2020

Folia Histórica del Nordeste. Resistência, n. 38, 2020.

Artículos

Notas y documentos

Reseñas Bibliográficas

  • Reseña bibliográfica de la obra de Gabriela de la Orden (Dir.). Visita de Don Antonio Martínez Luján de Vargas. Catamarca, 1693. Transcripción y análisis. Rosario, Prohistoria ediciones, 2018.
  • María Laura Salinas
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  • Reseña bibliográfica de la obra de Gustavo Nicolás Contreras, El peronismo obrero. Consideraciones a partir del devenir político y sindical de los trabajadores de los frigoríficos, Buenos Aires, Grupo Editor Universitario – EUDEM, 2018, pp.143.
  • Florencia Gutiérrez

Gênero e História / Estudos Históricos / 2020

O presente dossiê temático sobre gênero e história oferece uma cartografia do estado atual do campo dos estudos de gênero e do feminismo ibero-americano. Para tanto, adota uma estratégia multidisciplinar, incorporando as contribuições da história cultural e social das mulheres e das relações de gênero, mas também da sociologia, da antropologia e dos estudos culturais em relação com o gênero, a sexualidade e o feminismo. Além disso, o dossiê tem uma perspectiva transnacional, incorporando pesquisadoras sobre gênero e feminismo baseadas em diversas regiões da Argentina, do Brasil, do Uruguai, dos Estados Unidos e da Espanha, que dão conta da particularidade dos estudos de gênero e da história das mulheres em cada país e região. Esse amplo panorama de pesquisas acadêmicas sobre o gênero e o feminismo na atualidade pretendeu incluir o trabalho tanto de pesquisadoras e professoras pioneiras e fundadoras do campo acadêmico dos estudos de gênero como daquelas gerações mais jovens. Repensar a história social e cultural do gênero e dos feminismos resulta central no momento presente, de profunda crise do capitalismo global, no qual o mundo se divide e se debate entre a mobilização e o caos dado pela falta de políticas públicas para enfrentar uma crise de saúde global sem precedentes. O feminismo, que já vinha enfrentando o retrocesso causado pelo ascenso em nível global de uma direita ultraconservadora, misógina e xenófoba, e suas políticas neoliberais e autoritárias, fazendo uso das ferramentas políticas marcadas pelo ativismo midiático, recrudesce sua luta e mobilização por direitos humanos fundamentais e por igualdade social, saúde, salário mínimo, serviços básicos, como abastecimento de água, informação, trabalho, educação, moradia e meio ambiente em um momento de emergência global.

O crescimento exponencial dos estudos acadêmicos sobre o gênero e o feminismo nas últimas décadas tem apresentado desafios específicos no mundo ibero-americano, com a expansão dos programas de pós-graduação e disciplinas específicas da área. O primeiro deles é a articulação, já presente em décadas passadas, mas que tem adotado modalidades renovadas e uma interpenetração cada vez mais aprofundada, entre teoria e prática feminista, estudos acadêmicos e movimentos sociais, de modo tal que se, por um lado, as pesquisas têm-se dedicado a teorizar de modos inéditos as greves internacionalistas, as mobilizações dos feminismos indígenas, negros e decoloniais na América Latina e no Caribe, por outro os movimentos sociais têm utilizado as análises e teorizações dos feminismos latino-americanos, revelando assim a intensa reflexividade que articula o âmbito acadêmico e os movimentos sociais em nível local, regional e transnacional. Nesse sentido reflexivo deve ser lida a retomada do termo feminismo, eclipsado em anos anteriores pela categoria, mais lábil e fluida, de estudos de gênero e sexualidade, como símbolo da repolitização do campo e da nova centralidade que o ativismo ocupa no estudo acadêmico.

O segundo desafio é a superação de oposições estanques entre políticas de classe e políticas da identidade, de forma tal que revele os nexos entre modalidades do trabalho pago e não pago e categorias como raça, etnicidade, nacionalidade, gênero e sexualidade, como apontaram Nancy Fraser (2003) e Nancy Fraser et al. (2019). Não é possível desconstruir o essencialismo das políticas da identidade sem reconhecer que os diferentes eixos de subordinação se combinam de modos que afetam interesses de classe e categorias como raça, etnicidade, nacionalidade, gênero e sexualidade simultaneamente, gerando marginalização, exclusão e pobreza, simbólica e material.

O terceiro desafio diz respeito ao modo pelo qual, na América Latina e no Caribe, os feminismos indígenas e negros, o feminismo decolonial, assim como os estudos da interseccionalidade, nascidos nos Estados Unidos, têm desconstruído a universalidade da noção de mulher e denunciado o compromisso histórico do feminismo, inclusive aquele feito na América Latina, com o imperialismo, o racismo e o etnocentrismo, articulando raça, etnia, classe, sexualidade e localização geopolítica. No Brasil, o pensamento feminista negro foi pioneiro em assinalar a natureza interconectada de raça, classe e gênero, recuperando a experiência das mulheres negras e indígenas e analisando práticas de opressão baseadas em hierarquias de gênero e raça (Carneiro, 2019). Sueli Carneiro (2019) ressaltou a especificidade de um feminismo negro latino-americano antirracista e a importância de uma perspectiva internacionalista que aponte para as relações entre globalização, neoliberalismo e feminização da pobreza, abrindo a possibilidade de alianças com outros países da América Latina e do Caribe.[1] O pensamento feminista brasileiro também foi pioneiro do chamado feminismo decolonial, por meio da categoria de amefricanidade, de Lélia González (1988), a qual implica a experiência e a particularidade cultural de todos os países com heranças africana e indígena nas Américas (González, 1988). O projeto feminista decolonial vem apontando para a imbricação de dominação geopolítica, sexismo, racismo e capitalismo, pela articulação com os estudos pós-coloniais e decoloniais. Esses propõem um feminismo descentrado, excêntrico, desde as margens, capaz de pensar as mulheres do chamado Terceiro Mundo fora de uma visão etnocêntrica, exótica e reificada, assinalando os limites e as estratégias das políticas da identidade e apontando para a diversidade de experiências e formas de vida (Curiel Pichardo, 2009). Central nesse projeto é a revisão dos pressupostos epistemológicos da produção de conhecimento feminista que atribui um papel hierarquicamente superior às referências de teóricas e de conceitos europeus e norte-americanos, com a premissa de que o pensamento feminista elaborado nas regiões periféricas seria capaz de desconstruir a dependência intelectual da Europa e dos Estados Unidos (Curiel Pichardo, 2009). Voltando ao primeiro ponto, poderíamos dizer que as autoras recentes revelam a articulação não dicotômica entre a participação nos movimentos sociais, como espaços do ativismo, da voz e do reconhecimento, e a produção intelectual, dado que elas são fundadoras e produtoras de conhecimento e discurso, educadoras, pesquisadoras, professoras e estudantes.

Uma reflexão que deve ser feita de modo consciente e cada vez mais urgente nos estudos de gênero e feminismo na academia e nas diversas áreas da educação refere-se aos modos pelos quais, com o gênero como emblema, articulados com a ideologia da suposta meritocracia, sobrevivem práticas de exclusão e precarização de professoras, bolsistas, estagiárias, estudantes, em sua maioria mulheres de menor renda, gays, pessoas trans, mulheres e homens de cor, indígenas, sujeitos migrantes. O feminismo na academia não pode ser indiferente ante as práticas de exclusão e precarização do trabalho material e intelectual no interior das instituições educativas. Ao contrário, deve estar cada vez mais articulado com a luta pelo reconhecimento desses trabalhadores da educação, a valorização de suas produções intelectuais e do conhecimento por eles produzido, toda vez que ele quer contribuir para uma comunidade acadêmica mais democrática e justa.

O dossiê é constituído de três partes principais. A primeira parte apresenta um simpósio ou entrevista coletiva feita a um grupo de figuras centrais, referências teóricas, vozes pioneiras e inovadoras nos estudos de gênero e feminismo na América Latina, provindas do Brasil, da Argentina, do Uruguai e dos Estados Unidos, na qual elas refletem sobre o presente e o futuro do campo.

A segunda parte conta com três colaborações especiais e traz três autoras brasileiras e uma argentina baseada nos Estados Unidos. São elas: Aparecida Fonseca Moraes, professora associada do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), quem analisa as práticas discursivas da ativista Gabriela Leite no marco do processo de construção das prostitutas como sujeitos políticos no Brasil do século XX por meio da perspectiva da sociologia do indivíduo; Mariela Méndez, professora associada no Departamento de Latin American, Latino and Iberian Studies e de Women, Gender and Sexuality Studies da University of Richmond, cujo trabalho reflete sobre o novo ativismo feminista a partir de uma intervenção do movimento social Ni Una Menos na Argentina, utilizando a noção de performance coletiva. Por seu lado, Silvia Fávero Arend, professora do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e Chirley Beatriz da Silva Vieira, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UDESC, escrevem um trabalho que analisa relações de classe e gênero nas ações de assistência social direcionadas às populações infanto-juvenis no Asilo de Órfãs São Vicente de Paulo, em Santa Catarina.

A terceira parte é composta de seis artigos selecionados entre um elevado número de artigos recebidos, após o processo de avaliação cega por pares. Trata-se de professoras, pesquisadoras, pós-doutorandas e doutorandas de universidades e instituições de pesquisa e educação da Argentina, da Espanha e do Brasil. O trabalho em coautoria de Gabriela de Lima Grecco (Departamento de Historia Contemporánea, Universidad Autónoma de Madrid) e Sara Martín Gutiérrez (Programa de Posdoctorado en Ciencias Humanas y Sociales de la Facultad de Filosofía y Letras — FFyL-CONICET) explora a censura literária no regime franquista, assim como as ações de resistência do coletivo de escritoras. Adriana Cristina Lopes Setemy (Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais — PPHPBC — da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas — CPDOC / FGV) parte de uma perspectiva de gênero para refletir sobre a violência de Estado e a violação de direitos humanos durante a ditadura militar no Brasil. Marina Vieira de Carvalho (Departamento de História da Universidade Federal do Acre — UFAC) analisa a autoria feminina em periódicos pornô-eróticos do Rio de Janeiro do início do século XX como criação de uma sensibilidade erótica moderna. María Soledad González (doutoranda em História pela Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires — UNCPBA / CONICET) faz uso de ferramentas dos estudos de gênero para analisar a trajetória de Victoria Ocampo como gerente artística e cultural que articula o público e o privado na Argentina da década de 1920. Eliza Teixeira Toledo (Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz — COC-Fiocruz) e Allister Teixeira Dias (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ) analisam casos de “crimes passionais” com o objetivo de contribuir para a historicização da violência de gênero no Rio de Janeiro na década de 1930, apontando para a reificação e a naturalização da violência contra as mulheres. Finalmente, Verônica Toste Daflon (Universidade Federal Fluminense — UFF) e Luna Ribeiro Campos (Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca — CEFET-RJ) exploram as contribuições de duas pioneiras da sociologia, Flora Tristan e Harriet Martineau. Vai o agradecimento, a propósito, às dezenas de pareceristas ad hoc que contribuíram voluntariamente com sua expertise para a composição final deste número.

Nota

1. Com foco no feminismo negro estado-unidense, a teoria interseccional afirmou que as diferentes formas de dominação e subordinação de classe, raça, gênero, sexualidade e nação se inter-relacionam, construindo sistemas específicos de poder articulados, matrizes de dominação, estruturas distintivas com múltiplos níveis que funcionam de modos paralelos e interligados (Hill Collins, 1993; Andersen; Hill Collins, 2016). A proposta é transcender as barreiras que separam as diferentes formas de opressão, superando um pensamento dicotômico que hierarquiza os modos da opressão, e assinalar sua justaposição de acordo com padrões estruturais (Hill Collins, 1993; Andersen; Hill Collins, 2016).

Referências

ANDERSEN, M. L.; HILL COLLINS, P. Race, Class & Gender: An Anthology. 9. ed. Boston: Cengage Learning, 2016.

CARNEIRO, S. Enegrecer o feminismo. A situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Org.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. p. 49-58.

CURIEL PICHARDO, R. Y. O. Descolonizando el Feminismo: una perspectiva desde América Latina y el Caribe. In: COLOQUIO LATINOAMERICANO SOBRE PRAXIS Y PENSAMIENTO FEMINISTA, 1., 2009, Buenos Aires. Anais […]. Buenos Aires, 2009.

GONZÁLEZ, L. A categoria político-cultural de Amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92-93, p. 69-82, 1988.

HILL COLLINS, P. Toward a New Vision: Race, Class and Gender as Categories of Analysis and Connection. Race, Sex & Class, v. 1, n. 1, p. 25-45, 1993.

FRASER, N. Social justice in the age of identity politics: Redistribution, recognition and participation. In: FRASER, N.; HONNETH, A. Redistribution or recognition: a political-philosophical exchange. Nova York: Verso, 2003.

FRASER, N.; ARRUZZA, C.; BHATTACHARYA, T. Feminism for the 99 Percent: a manifesto. Nova York: Verso, 2019.

Alejandra Josiowicz – Editora convidada. Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV. Pesquisadora do Instituto Interdisciplinario de Estudios de Género, da Facultad de Filosofía y Letras, da Universidade de Buenos Aires (IIEGE- FFyL- UBA), do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) e pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens Culturais (PPHPBC) da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV). E-mail: alejandra.josiowicz@fgv.br https: / / orcid.org / 0000-0002-3525-1833


JOSIOWICZ, Alejandra. Editorial. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.33, n.70, maio / ago.2020. Acessar publicação original [DR]

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Brasília, leitores e leituras. Arquitetura, história e política 1957-1973 | Luiz Gustavo Sobral Fernandes

Este livro sobre Brasília traz uma ampla visão da cidade, apresentando manifestações, relatos e materiais relativos à difusão de seu projeto, de sua construção e das narrativas de 1957 a 1973.

Todos os capítulos repousam sobre o fenômeno Brasília, apoiados em uma extensa investigação bibliográfica do citado recorte temporal. Embora na época e desde então muito se tenha publicado sobre a nova capital, várias manifestações e publicações acabaram não sendo organizadas – ou até foram esquecidas –, e este texto se propõe retomá-las. Leia Mais

No fim da infância | Arrigo Barnabé

Cinzeiros arrancados dos braços das poltronas, voando pelo teatro até o palco, objetos diversos arremessados nas vocalistas, vaias, muitas vaias mesmo. E então Itamar Assumpção, o baixista, pergunta no microfone: “Sabor de quê?”. Só para ouvir a resposta segura da plateia que exclama nervosa: “Mer-da!”.

Se o fim da infância tem a ver com frustrar as expectativas dos outros, se a juventude é marcada pela afirmação de algo particular e genuíno, distante dos projetos concebidos por aqueles que podem conduzir a vida alheia, então podemos dizer que esse episódio dos cinzeiros arremessados foi um dos que assinalaram o fim da infância de Arrigo Barnabé. A recepção agressiva no Festival da MPB da TV Tupi, em 1979, o fez conhecido por uma audiência maior e tornou pública uma escolha sem volta: a de ser uma figura dissonante, destoante, um criador avesso às expectativas. “Estava destinando a ser um novo Chico Buarque de Holanda – um compositor querido das famílias. Mas algo nele fracassa” (1). Leia Mais

Paulinho da Viola e o elogio do amor | Eliete Eça Negreiros

Paulinho da Viola e o elogio do amor (1) é uma reflexão sobre a lírica amorosa das composições de Paulinho, cujo eixo é a separação dos amantes. Neste livro, Eliete Negreiros reavê o mito fundador do amor romântico, formulado pela primeira vez no Banquete de Platão. De início, cada um era um ser por inteiro que, por uma punição divina, é dividido em duas partes. A nostalgia da fusão originária e a busca da unidade perdida constituem uma inquietação permanente, a procurar no Outro o que completa e dá vida.

Conhecido nos tratados médicos antigos como “mal de amor”, a poética de Paulinho, mostra Eliete, revela seus sintomas, suas causas, seus efeitos e remédios. Ou não: “meu mal é um mal de amor / não há remédio que cure a minha dor”. Se paixão é desejo e falta, ele é “intratável”. Tal como no amor proustiano, o amor é uma doença irremediável. Diferem o intratável e o incurável, pois se este é um mal de que ainda não se encontrou remédio e tratamento, o intratável é um mal sem medicação eficaz ou cura vislumbrada, invulnerável a tratamentos ou às luzes da razão. Leia Mais

Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero. A segregação urbana da prostituição em Campinas | Diana Helene

O livro Mulheres, direito à cidade e estigmas de gênero: a segregação urbana da prostituição em Campinas, de Diana Helene Ramos (1), é o primeiro livro escrito por uma arquiteta e urbanista brasileira discutindo a relação entre prostituição e cidade. Publicado em 2019 pela editora Annablume, esse livro é resultado de tese de doutorado da autora em Planejamento Urbano e Regional, desenvolvida no Ippur UFRJ, pela qual recebeu o Prêmio Capes de Tese 2016 da área de Planejamento Regional/Demografia (2). O livro está dividido em três partes, com um total de seis capítulos que, em linhas gerais, discutem a presença das prostitutas na cidade de Campinas e sua participação enquanto agente na produção do espaço urbano, seu cotidiano e os deslocamentos ocorridos no contexto urbano e laboral dessas trabalhadoras. Leia Mais

Aporías de la Democracia – LOLAS; RIBA (RFA)

LOLAS, R. E.; RIBA, J. (Coords). Aporías de la Democracia. Barcelona: Terra Ignota Ediciones, 2018. Resenha de: MONTOYA, Angélica Montes. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.32, n.56, p.597-606, maio/ago., 2020.

Aporías de la democracia es la primera obra colectiva de la red NosOtros y que surge del encuentro de un grupo de académicas y académicos de distintas instituciones y países de América latina y Europa. Esta red inicio el proceso de compartir y producir en colectivo con el 1er Coloquio Euro-Latinoamericano consagrado al tema que da su título a la obra. Para sus editores, esta obra propende “no solamente que con su lectura cobren sentido las dificultades que las democracias actuales poseen, sino también que se haga evidente que, para mantener un sistema democrático, aquello que se ha entendido por ‘representación’ debe ser actualizado, porque en lo esencial ya no representa a la misma ciudadanía, sino a los que ostentan el poder” (R. Espinoza Lolas & Jordi Riba).

Tras la lectura atenta de los textos podemos decir que en Aporías de la democracia se trata, entonces, de poner en común el trabajo de reflexión teórica adelantado por cada uno de los miembros de la red NosOtros, teniendo como hilos conductores unos conceptos entorno a los cuales cada autor/a desarrolla su análisis. En 2017 se trabajó entorno a los conceptos de “democracia” y “aporías”; en el 2018 “migración”, “exilio”, “refugio” y en el 2019 se trabajarán “Estado”, “nación”, “frontera”. Cada encuentro permite un cuestionamiento de dichos conceptos y la puesta en marcha de colaboraciones académicas y de escritura tendientes a pensar y cuestionar el conjunto de temas y discursos que imperan — como si fueran evidencias- en la vida política y social de nuestras sociedades contemporáneas.

Estructura de Aporías de la democracia

El libro de 263 páginas, está estructurado en cuatro partes, cada una contienen artículos cortos en los cuales se analizan los abismos, contradicciones, aciertos y desaciertos del modelo de “democracia representativa” en América Latina y en Europa. Veamos en detalle de que hablan los autores.

La primera parte titulada D e m o c r a c i a y B r e x it , contiene dos artículos que centran su estudio en lo que, política y teóricamente, ha representado el que el Reino Unido decidiera salir de la Unión Europea. Así, el primer artículo, examina el proceso de salida de Gran Bretaña de la Unión Europea (UE). Su autor pone su interés en las posturas teóricas que los filósofos Negri, Zizk y Badiou sostienen frente a este hecho histórico, para luego ponerlos frente a sus propias contradicciones, ya que, al tiempo que aquellos reclaman por el respeto de la verdadera democracia (la que se construye desde abajo), cuestionan abiertamente la decisión tomada, por una mayoría del pueblo Británico, de salir de la UE expresada en el referendo de 2016 (Timothy Appleton). A lo anterior se sigue un segundo artículo consagrado al análisis de lo que el autor llama “una democracia capturada por el capitalismo”. De la mano de Zizek se muestra en que forma “la empresa se devora al Estado y, a la vez, el “Estado es quien mantienen viable la empresa”. Ante esta situación, solo desde la Amistad y desde la cooperación en red es posible imaginar, construir y aplicar posibles cambios que nos ayuden a romper ese cinturón de dependencia (Empresa=> Estado => Empresa) que destruye toda alternativa de democracia posible (Ricardo Espinosa Lola).

La segunda parte el libro, Democracia y ciudadanía , recoge análisis situados en Chile. Aquí se exponen dos artículos, en los que se muestran algunas experiencias de la expresión del desencanto de la ciudadanía chilena y las respuestas que (frente a una tradición política de derecha, que representan las élites) se vienen gestando desde las bases de las movilizaciones sociales. El primer artículo presenta una experiencia de construcción de lo que su autora califica de “Alcaldía ciudadana como propuesta política de gobernanza” en la ciudad de Valparaíso. Esta experiencia es liderada desde el Movimiento Autonomista de Valparaíso que gana la Alcaldía de esta ciudad en 2016; y está respaldada en una coalición política autodenominada “ciudadana”. A lo largo de su análisis, se explica la existencia de una “democracia tutelar heredada de la postdictadura chilena” la cual ha de ser superada desde una concepción de la democracia como ejercicio participativo de la ciudadanía. Precisamente, la “Alcaldía ciudadana” responde a esto último, ya que desde la autoorganización política un grupo de ciudadanos de Valparaíso han puesto en marcha proyecto político como expresión y garantía de una democracia afirmativa, que cuestiona el proceso de transición democrática de los años 90’s, al tiempo que ofrece: primero, pensar lo colectivo (comune) desde la participación activa y, segundo, potenciar el vínculo entre las categorías políticas y ciudad (Pamela Soto Garcia).

En dialogo con el anterior análisis, se ofrece un segundo artículo que interroga la noción de ciudadanía en el marco del Chile contemporáneo. Se trata de un trabajo de coescritura que centra su interés en comprender por qué surgen y que aportan a la ciudadanía los más recientes movimientos sociales (movilizaciones estudiantiles de 2006; la revolución “pinguina” de 2011, las resistencias indígenas y ambientalistas de los últimos años) ocurridos en el país austral. Como lo expresan los autores “Nos interesa señalar que estos movimientos, junto con sacar a la luz pública unas demandas particulares de la ciudadanía, lograron unir a la población más allá de las formas de organización tradicionales, mostrando que otra democracia era posible y, sobre todo, necesaria”. A lo largo del artículo, de la mano de trabajos teóricos entorno a la geografía, el urbanismo y la filosofía de D. Harvey, G. Debord y F. Guatarri, los autores del articulo construyen una reflexión acerca de la ciudad, la ciudadanía y la construcción de lazos territoriales, como elemento importante para pensar y construir la existencia social colectiva del NosOtros en dialogo, también, con el arte (Patricio Landaeta &Ana Cristi C.).

La tercera parte de la obra colectiva, Democracia y política , cuenta con cinco artículos en los que sus autoras/es ofrecen al lector un zoom sobre el estado de la democracia y sus aporias, desde unas miradas situadas (territorializadas). Aquí viajaremos de Colombia a España, pasando por Brasil y Uruguay. El primero articulo brinda una lectura filosófico-histórica de la construcción de la nación en Colombia. La autora se pregunta por los dispositivos (en sentido de Foucault y Agamben) utilizados para establecer el carácter de unidad étnica-racial, territorial y cultural requerida para el “éxito” de ese proyecto de Estado-nación en el siglo XIX. De esta forma, situándose en el Colombia, la autora explica lo que ella denomina los “tres dispositivos” discursivos y legales empleados para construir la imagen de la Nación mestiza y democrática, que absorbió las otredades (minorías étnico-raciales indígenas y particularmente negras) en Colombia. Dichos dispositivos son: la ciudadanía (dispositivo jurídico), la democracia racial (dispositivo antropológico y sociohistórico) y la invisibilización (dispositivo cultural y educativo).

In fine la intención de la autora es la de mostrar que, si bien es cierto que el cambio de constitución política en Colombia -en el año 1991 (CPC 1991)- ha significado una transformación significativa en la inversión de los “tres dispositivos”, antes señalados. Generándose, así, una mayor visibilización de las minorías étnicas y raciales, gracias 1) al reconocimiento de políticas de acción afirmativa y/o la implementación de una etnoeducación, 2) a la fuerza que ganan los discursos acerca de la ciudadanía diferenciada y de la democracia inclusiva. No obstante, la Nación en Colombia (probablemente también en otros lugares de las Américas latinas) sigue pareciéndose a Macondo, la fábula del realismo mágico de García Márquez. En efecto, para la autora, la Nación (con N) se acerca en su complejidad a la metáfora de Macondo, en la que se designar y expresa, no la realidad de un lugar, sino la existencia de un âme o un soufflé (un alma o una bocanada de aire de vida). Macondo fue “el lugar de lo imposible, el lugar de todas las cosas, de los santos y de los demonios, de la condena y de la resurrección, del amor y del desamor, de la espera y de la locura”, en este sentido es tiempo de ver en la CPC de 1991la nación, no ya como un lugar sino como un âme. Explicar la nación como un conjunto de solidaridades, de convergencias complejas de identidades (en movimiento y tensión constante) que debe su existencia al plebiscito cotidiano, sin el cual ese soufflé se agota y cesa de existir (Angélica Montes Montoya).

El segundo artículo, inicia recordando que el conflicto está a la base de la sociedad democrática (Laclau y Mouuffe), por ello cualquier forma de hegemonía se opone a la «formación de buenas políticas» y a la democracia ella misma. A partir de esta premisa, los dos autores se libran a un diagnóstico de la calidad de la democracia en Brasil, cuya historia republicana -desde su independencia (1889) hasta hoy- oscila entre “breves momentos de respeto por el orden democrático y la usurpación por parte de fuerzas militares o civiles, totalitarias y hegemónicas”. El último ejemplo de esta oscilación se encuentra en la destitución de Dilma Roussef, la primera mujer presidente y la primera en ser objeto de un nuevo tipo golpe de Estado, orquestado desde el poder legislativo y judicial, con el respaldo de un sector de la clase política, las iglesias evangélicas, los medios de comunicación, el capital financiero y agrario. Ante la pregunta ¿Cómo ha sido esto posible?, los autores responden que ello es debido: primero, al presidencialismo de coalición, que se origina dado que el Brasil funciona un gobierno presidencial en medio de un sistema de fundaciones parlamentarias, esto hace que para gobernar el presidente/a brasilero debe contar con una mayoria absoluta en el Congreso y ello empuja a una necesaria búsqueda de coaliciones, cuando ello no se logra acontece el impeachment. La segunda razón, es la judicialización de la política, esta consiste “en la tendencia de los tribunales a juzgar casos que, en principio, estarían reservados al poder legislativo o ejecutivo” (Ericson Falabretti & Francisco Verardi Bocca).

El tercer artculo, aborda los efectos negativos que tienen para la democracia la perspectiva política liberal y neoliberal, la cual se ha instalado en América Latina. Apoyándose en el estudio de las obras de Friedrich A. Von Hayek, el autor mostrara que “la democracia basada en la búsqueda de la igualdad de derechos está lejos del horizonte del gobierno neoliberal”. De esta forma, afirma que, “No se puede pensar al principio de la igualdad solamente en términos de igualdad de oportunidades. Lo que la forma neoliberal echa de lado son las condiciones necesarias para alcanzar esa igualdad” (Cesar Candiotto).

En el cuarto artículo, dedicado al Uruguay, su autora adelanta un estudio de lo que ella denomina la “ciudadanía diaspórica”, entendida como “una ciudadanía extraterritorial nutrida de actos, discursos, representaciones y vivencias de exexiliada/o, emigrantes, expatriada/os” que se puede observar como un proceso de construcción de una comunidad política. Se trata de un proceso de militancia y organización que los migrantes uruguayos han construido a través de una larga lucha en “defensa de los derechos y políticos de los inmigrantes, expresada…en torno al reclamo de habilitación del voto extraterritorial” y sostenido por un movimiento social que la autora califica de no convencional. Este carácter no convencional se reflejaría (de acuerdo al trabajo de búsqueda y sistematización de datos recolectados) en una autoorganización organización, a través de sitios web, boletines electrónicos y página Facebook. Las condiciones en las cuales se organiza esta “ciudadanía diaspórica” la acerca a lo que se denomina e-diaspórica (descrito por la socióloga Dana Diminescu), es decir, “…un colectivo disperso, una identidad heterogénea cuya existencia reposa sobre la elaboración de una dirección común, una dirección…renegociada según la evolución colectiva”. Para la autora del artículo, los procesos de la “ciudadanía diaspórica” que ponen a prueba al Estado-nación tradicional, pueden verse como una aporía a la democracia y a su institucionalización, que la circunscribe a una territorialidad definida (Fernanda Mora-Canzani).

Cierra este tercer apartado del libro un quinto artículo dedicado a estudiar las experiencias de “participación ciudadana” que se inicia en España a partir del año 2011, cuando tienen lugar la ocupación de las plazas. Durante este episodio se hicieron virales muchos slogans dirigidos a cuestionar el sistema democrático representativo: “no nos representan”, “democracia real”. Desde entonces en España se han venido organizando nuevas experiencias y formas de relación entre la institución y la sociedad. Las reflexiones has sido particularmente interesantes e intensas entorno a los gobiernos municipales (municipalismo), desde donde se habla de “ayuntamientos del cambio” en ciudades como Barcelona y Madrid. La autora nos explica como han sido estas experiencias, a través de las cuales se ha “buscado un desplazamiento que permita hacer bascular las democracias representativas hacia mecanismos de democracia directa ampliando la incidencia de la ciudadanía en las políticas públicas”, esto es calificado -por la autora- de una “democracia expandida”. Esta última debe entenderse más allá del debate de la representación y la participación: basándose en los trabajos de Foucault (sobre la política como politeia y lo político como dynasteia) la “democracia expandida” debe verse más allá de los mecanismos de participación ciudadana y ser observada como la “integración de esos saberes y practicas que emergen de la experiencia como marco a partir de los que configurar y decidir las formas de enseñanza y aprendizaje, la organización de las infraestructuras …en tanto que dimensiones que vehiculan nuestros modos de relación social”. En suma, la “democracia expandida” sería una democracia que -retomando el texto de Foucault “La verdad y las formas jurídicas” de 1973- propende por una perspectiva de la democracia en la que hay una inversión de la soberanía, una reapropiación de ese principio por aquellos que, siendo gobernados a través de ella, se declararán ahora soberanos de si mismos (Ester Jordana Lluch).

Cierra la obra colectiva, una última parte Democracia y filosofía , constituida de cuatro artículos que vuelven sobre la noción misma de democracia. El primer artículo, el autor analiza las aporías de la democracia partiendo de las declaraciones (hechas en un Twitter) del ciber-militante Julian Assange quien afirma que “actualmente se está modificando la relación de la gente con el poder” y de Pierre Rosanvallon, para quién, “la democracia es la historia de un desencanto y la historia de una indeterminación y de una obstinación”. La idea central del texto es la de mostrar como las declaraciones actuales de Assange se articulan con las cautelas manifestadas por el teórico Rosanvallon. Así, las denuncias que se escuchan, primero, entorno al hecho de que el poder institucional “no nos representa” y, segundo, las exigencias de una mayor participación de los ciudadanos (democracia directa), dialogan con la forma democrática que Rosanvallon señala como formas indeterminadas y, por ello, abiertas que debe tener la democracia. Ya hace mucho tiempo Rosanvallon ha puesto el ojo en esa forma paradójica que la democracia contiene, por ello el autor del artículo declara que “Viejo pues es lo nuevo en forma de deseo y de indeterminación”.

Para ahondar en este carácter de lo “viejo nuevo” de la crítica de la democracia, el autor recurre a los trabajos de Miguel Abensour, quien en su obra “La democracia contra el Estado”, había planteado aquella como un momento emancipatorio, ya que ella (la democracia) se muestra indomable, salvaje y turbadora de los órdenes establecidos. La democracia “encuentra la fuente de su fuerza indomable, en el elemento humano, en ese foco de complicaciones, de agitaciones que entraña la articulación de vínculos múltiples”. De esta manera -de la mano de Levinas y de Abensour- en el artículo se nos recuerda que la democracia no es concebible sin el recurso a la utopía, por ello se hace indispensable indagar los vínculos entre el nuevo espíritu de la utopía (no sustancialista ni mitológicamente relacionada a la armonía) y la revolución de la democracia, entendiendo “que ninguna comunidad humana puede prescindir de la ley, que se concibe, antes que nada, como relación. Y donde el legislador sólo puede ser colectivo, plural”. In fine, se trata de una apuesta por remplazar el “sustancialismo utópico” por la intersubjetividad política, en la cual se pone como centro la humanidad indeterminada y no ya el hombre. Esto quizá ayude a salir de la doble aporía frecuentemente encontrada, a saber, la identificación de la política con el Estado (propia del hegelianismo) o la de hacer jugar (desde un anarquismo torpe) lo social contra lo político. (Jordi Riba).

El segundo artículo, ofrece un análisis que parte del binomio crisis/critica, partiendo de las raíces etimológicas de los dos temimos, la autora busca responder la pregunta ¿esta la democracia está en crisis porque subjetivamente se ha perdido la pregunta de como juzgar democráticamente? O ¿es la crisis de la democracia un síntoma causado, precisamente, por la incapacidad de criticar? La autora del articulo recuerda, primero, que etimológicamente la categoria “critica provienen del griego krion (juicio, decisión) y del verbo krino (yo decido, yo juzgo), del mismo modo la noción crisis vienen del griego Krisis (apela a la decisión) y, de igual forma, del verbo krino, designando, en este caso, el momento en que se produce un cambio. Segundo, que a partir de esta etimología se puede inferir que “el juicio crítico tiene que ver, a la base, con las condiciones ontológicas de la formación subjetiva en lo que tienen ella de “consciencia-de-si” ligada, en cierta manera, a un estatuto comprensivo en el cual la interpretación de dicha posición subjetiva se cumple en el ejercicio del juicio crítico”. Así, para salir de la “inconsciencia-de-si” -cuando hay una crisis- presupone interrogarse, juzgar y cuestionar las Verdades inscritas en el pensamiento. La propuesta, entonces, es la de observar lo que la autora del artículo llama “las metonimias” inscritas en el concepto de democracia; interrogarlas con el propósito de hacer surgir orientaciones que sean el resultado de un juicio colectivo, solo así se podría llegar -en sus propios términos- a una “economía del pensamiento distinta, cuyo movimiento racional de la misma representación de lo que se ha comprendido como democracia” creando un nuevo concepto (otro) que pueda ser revelador del uso reflexivo de la capacidad de juzgar, y en este sentido representaría, también, un acto critico (Lorena Souyris).

En cuanto al tercer artículo, de esta cuarta parte de la obra, continua en el tratamiento de las aporías de la democracia, en esta ocasión volviendo a las nociones de libertad e igualdad. Las preguntas que articulan la reflexión son dos: ¿Cómo conceptualizar la libertad en el marco político? y ¿Cómo conceptualizar la igualdad en vistas a una mayor emancipación? Para los dos autores, la primera gran tensión se revela en el término mismo democracia que engloba significaciones varias y contrarias: demos (pueblo) y kratos (potencia, fuerza, poder e incluso gobierno). El problema estriva en que entre los griegos demos podría significar, tanto la totalidad de los ciudadanos como la parte popular excluida. “Así, democracia puede significar el poder de los anteriores excluidos, pero debe ser también el poder de la totalidad”. Una situación similar ocurre con la categoría kratos, como potencia y poder, debe ser mantenida entre la totalidad del pueblo y no ser exclusiva de una cabeza o grupo. El desarrollo del concepto poder ha sufrido cambios importantes, imponiéndose la lectura moderna y liberal, que afecto las nociones políticas de libertad e igualdad.

Las dos autoras -de la mano de Rancière y Badiou- pasan revista a las teorías y explicaciones de la evolución de la noción de democracia, desde Aristotele y Platon hasta la modernidad, para señalar que el principal problema al que nos enfrentamos hoy es a la “inconmensurabilidad entre lo que la palabra democracia significa y la noción de democracia neoliberal” imperante. Para responder a este desafío las autoras proponen: primero, una crítica a la noción de política, entendida como administración del Estado, ya que así entendida la política se aleja de su componente principal, que es el conflicto. Segundo, cuestionar los axiomas de libertad e igualdad dentro de la democracia liberal.

En el desarrollo de sus análisis las autoras responderán que: 1) la principal contradicción de la democracia liberal es la de “intentar establecer una democracia apoyada en la idea del consenso y de la representatividad”. 2) el gran error ha sido el que la libertad ha sido absorbida por la concepción liberal como “espacio individual…como propiedad privada…capitalizante”. De la misma manera, la igualdad ha sido asociada a esta lectura liberal hasta verse asociada a la libertad capitalizante. Ahora bien, no debe perderse de vista nunca que la libertad no es un estatus del individuo, ella debe ser pensada como emancipación, de modo a do hacer de ella una libertad de consumidores (Teresa Montealegre Bara & Gisele Amaya Dal Bó).

Finalmente da cierre, a esta parte del libro, un cuarto artículo consagrado al estudio de la noción de autoridad. Advierte su autor que se trata de un concepto mal comprendido y poco trabajado. A menudo se le confunde con otros conceptos como poder, fuerza y totalitarismo. Además, con frecuencia la autoridad es criticada desde la izquierda acusándole de enemiga de la democracia y de la sociedad (Negri, Hardt). Entre los filósofos hay quienes no la consideran un problema filosófico, pues les resulta obvio de que se trata; mientras que otros la juzgan un tema de psicología social (Foucault). Para lograr su lectura distinta y heurística, el autor del artículo hace un recorrido por algunas de las obras de filosofas y filósofos del siglo XX (H. Arendt, M. Bakunin, P-J. Prroudhon, M. Horkheimer, J. Dewey, E. Fromm, L. Muraro, L. Cigarini, M. Reévault d’Allonnes, M. Mead y P. Friere). Con ello busca demostrar el “espejismo de la autoridad” que acompaña la ficción de una tradición que hace una lectura autoritaria de la noción de autoridad. Al final de la lectura queda al descubierto lo que sería el mayor desafío político contemporáneo que “ya no consiste tanto en suprimir la autoridad como en intentar pensarla y articularla de otro modo”. Si bien el autor no espera que el lector se reconcilie de forma definitiva con la autoridad, espera que por lo menos se pueda comprender su complejidad para así evitar las lecturas unidimensionales e ideologizadas de la misma (Edgar Straehle).

El libro Aporías de la democracia , concluye con las palabras del poeta francochileno Luis Mizon quien expresa el desgarro de ser Otro/diferente en tiempos de crisis de las democracias. Por ello declara que, al igual que la insolencia política, la insolencia poética es una forma de oponerse al exceso, a la desmesura del poder. En suma, es una forma de resistir y de construir un NosOtros en medio de sus complejidades; enriqueciéndola por la diversidad de las expresiones del ser y de sus variadas formas de resistencia.

Angélica Montes Montoya – Catedrática, Universidad Paris 13, Villetaneuse, France. Directora del Think Tank GRECOL-ALC. Doctora en Filosofía política. E-mail: angelica.angmon11@gmail.com

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Hegel and Spinoza: Substance and Negativity – MODER (RFA)

MODER, G. Hegel and Spinoza: Substance and Negativity. Illinois: Northwestern University Press, 2017. Resenha de: CRAIA, Eladio; KELLER, Arion. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.32, n.56, p.591-596, maio/ago., 2020.

Poderíamos caracterizar a obra de Gregor Moder, Hegel and Spinoza: Substance and Negativity, como uma obra não ortodoxa dos estudos tanto hegelianos quanto spinozistas, como uma tentativa quase heroica de recepcionar de forma nova e original a tão problemática relação existente entre hegelianismo e spinozismo e, também, como uma tentativa de “fazer justiça” a ambos os lados da discussão.

Tal problemática, no entanto, é tão antiga quanto o próprio texto hegeliano. Sabemos da ambiguidade de Hegel com relação a Spinoza, que oscila desde uma série de elogios e reverências ao holandês, como nas famosas passagens das Lições sobre a história da filosofia, onde afirma que quem não for spinozista não pode sequer ser filósofo, ou que além do spinozismo não há nenhuma filosofia, até o desenvolvimento de ácidas críticas com inspirações semelhantes às direcionadas a Parmênides e ao Oriente, sendo o que está em jogo é o papel desempenhado pela negatividade.

A motivação não ortodoxa que mencionamos, é a tentativa do autor de situar um “ponto pacífico” entre as duas tradições aparentemente incompatíveis. Tradicionalmente, Hegel é colocado como o fundador de um projeto ontológico que privilegia a negatividade, ou melhor, que tenta pensar uma negatividade produtiva no nível da substância, do absoluto. Por outro lado, Spinoza é lido como um autor da afirmação pura, atuando muitas vezes como o “antípoda” dos projetos ditos negativistas. Gregor Moder (2017, p.104) demarca muito bem esse panorama conflitivo no que ele chama de materialismo francês do século XX. Pelo lado hegeliano o autor menciona a psicanálise de Lacan, em que há um primado claro da negatividade, pois a categoria de Sujeito, nuclear à psicanálise lacaniana, é atravessada pela categoria de Falta. Já pelo lado spinozista, é a presença da filosofia de Deleuze que marca o “afirmacionismo” contemporâneo, em que o grande esforço é o de se pensar os processos de diferenciação ontológica sem o apelo à categoria de Negação. Entretanto, e surpreendentemente, o autor situa a filosofia de Althusser como a “própria encarnação do problema Hegel e Spinoza” (MODER, 2017, p.120), como o meio termo dessa tensão. Para Gregor Moder, é a teoria da ideologia althusseriana aquela capaz de trabalhar com os dois modelos ontológicos simultaneamente, onde ambas concepções de negatividade trabalham juntas. No entanto, vejamos como o autor chega a este ponto.

A introdução da obra é intitulada A Questão de Leitura. No decorrer deste texto, Moder situa a recepção de Spinoza na Alemanha em geral, e a recepção de Hegel em particular. Hegel, apesar dos elogios que comentamos acima, combate o spinozismo por uma razão teórica muito específica: Spinoza teria ficado preso ao início, sua substância seria rígida e imóvel, isto é, ela não teria a capacidade de transformar a si mesma, seria apenas uma afirmação pura e abstrata; o spinozismo seria um eleatismo em sua face moderna. Althusserianos, por outro lado, acusam Hegel de uma inversão do modelo neoplatônico de produção do Ser. O problema de Hegel por excelência e também o de Gregor Moder neste caso, será de pensar uma possibilidade de contradição ou movimento no nível substancial que fuja de ambas as acusações. Tudo se passa como uma questão de movimento interno no próprio absoluto.

Além disso, Moder situa em traços gerais várias das objeções da leitura hegeliana de Spinoza. O problema do autor não é, portanto, defender a leitura hegeliana de Spinoza, nem mesmo contra-atacar Hegel como um spinozista, trabalho este já feito pelos estudos de Deleuze, Gueroult, Macherey, etc., mas de pensar ambas as filosofias com o seguinte projeto: distanciar-se dos modelos emanativos de inspiração aristotélica e neoplatônica, caracterizados por sua unilateralidade e hierarquia causais. O autor defenderá que tanto Hegel quanto Spinoza, cada um à sua maneira e com aparatos conceituais muito distintos, tentarão valer-se de uma categoria de causalidade livre de hierarquias, que seja suficiente para se pensar o autodesenvolvimento interno do próprio absoluto. Eis a hipótese não ortodoxa da obra: não será a clássica oposição Hegel versus Spinoza, mas Hegel e Spinoza versus aristotelismo e neoplatonismo (MODER, 2017, p.14-15).

Os três primeiros capítulos da obra são voltados à filosofia de Hegel, com o intuito de desvinculá-la das críticas de inversão do neoplatonismo feitas por Althusser e Deleuze; no entanto, e fazendo certa justiça a Spinoza, o autor sempre desvincula o holandês das críticas equivocadas de Hegel, tirando-o também dessa linhagem aristotélica e neoplatônica. No primeiro capítulo, intitulado A Lógica Hegeliana do Puro Ser e Spinoza, o autor desenvolve a concepção hegeliana de Ser. Em linhas gerais, a problemática hegeliana diz respeito ao clássico debate grego incorporado por Parmênides e Heráclito. Pelo lado de Parmênides, temos o Ser idêntico a si mesmo, carente de negatividade e animado pelo princípio de ex nihilo nihil fit (do nada, nada provém), e por outro lado o princípio de devir puro heraclitiano, aparentemente incompatíveis. A grande virada hegeliana é de estabelecer o devir como a própria verdade/telos dos sistemas de identidade, negando o princípio de ex nihilo nihil fit e estabelecendo o motor da dialética por excelência: a identidade da identidade e da diferença. Essa descoberta de Hegel é o princípio de movimento no Ser imóvel parmenidiano. Com isso, Hegel remove a ideia de um “Ser puro” no sentido aristotélico e neoplatônico (o motor imóvel nada mais é que um princípio de causalidade unilateral, pois move sem ser movido), isto é, já estamos sempre no campo da mediação, estabelecida por uma negatividade produtiva; a igualdade de Ser e Nada propostas no início da Lógica são a própria condição necessária de movimento no absoluto. Moder assim resume esse movimento inovador de Hegel: “na medida em que a lógica do puro ser fala, ela já fala na linguagem da lógica da reflexão” (MODER, 2017, p.30).

O segundo capítulo, intitulado História é Lógica, segue o desenvolvimento do primeiro. No entanto, neste capítulo o autor enfatiza a relação de Hegel com a história da filosofia. Abordando o problema do imediatismo do puro Ser das filosofias orientais e de Parmênides, passando pela resposta de Aristóteles ao problema do movimento no nível substancial, o primeiro motor imóvel, e enfim chegando à teoria da produção de Plotino. Hegel critica todos esses modelos, pois são caracterizados por uma causalidade hierárquica, são um modelo emanativo de produção do Ser. A negatividade produtiva de Hegel, elaborada pela via do princípio de omnis determinatio est negatio, é caracterizada como a determinação do próprio Ser, visto que não há possibilidade de falar do Ser enquanto Puro e indeterminado (pois nesse nível Ser e Nada se equivalem), aparece como uma dupla negativa, instaurando o movimento próprio da Lógica, e consequentemente da História. Esse princípio é chamado pelo autor de “perda da própria perda”, a “morte da morte” (MODER, 2017, p.55 e p. 88). Por fim, o autor novamente retira Spinoza desta linhagem, retomando a leitura deleuziana da causalidade imanente de Spinoza, animada pela teoria da univocidade do Ser.

O terceiro capítulo, Telos, Teleologia e Teleiosis, talvez seja o mais inovador no que diz respeito aos estudos hegelianos. Retomando a problemática da doutrina aristotélica das quatro causas, o autor explica como deve-se entender a ideia de telos em Hegel. Longe de ser uma mera finalidade externa do processo, como por exemplo o Juízo Final da metafísica cristã, Hegel se aproximaria da postura heideggeriana com respeito à doutrina das causas, exposta nas conferências sobre a Habitação e sobre a Técnica. A causa final não pode ser compreendida fora do conjunto total das causas. Ela deve, pelo contrário, ser entendida como o desenvolvimento dinâmico do processo todo, como um telos interno (MODER, 2017, p.71). Cunhando um termo de Franz Brentano para explicar este modo de compreender a causalidade e a finalidade, Moder nomeia este telos imanente ao próprio processo causal de teleiosis. Esse paradoxal movimento em que o telos atua como fim e início ao mesmo tempo é o próprio “motor da história” (MODER, 2017, p.76). A história é teleológica, portanto, enquanto uma teleologia interna ao próprio desenvolvimento do pensar.

O quarto capítulo é intitulado Morte e Finalidade, e nele é desenvolvida uma original leitura sobre uma espécie de negatividade em Spinoza. Como o próprio autor lembra (MODER, 2017, p.123-124), e isto é central para a hipótese da obra, a negatividade não pode ser compreendida em apenas um sentido. A filosofia contemporânea tem inúmeros conceitos que desempenham este papel, tais como falta, vazio, lacuna, torção, ruptura etc. Justamente com essa busca por um princípio motor (negatividade) o autor desenvolve sua leitura de Spinoza como autor fecundo para os debates contemporâneos. E ela é surpreendente. O autor defende, contrariamente à leitura hegeliana, que a substância de Spinoza é ativa, móvel e com capacidade de autodesenvolvimento. Para Moder, a substância de Spinoza não produz sem ser afetada por sua produção (como o motor imóvel de Aristóteles ou o Uno plotiniano), ao contrário, e essa é uma grande descoberta de Spinoza, a substância é causa de si no mesmo sentido que é causa de todas as coisas. A substância não é indiferente em sua produção, ela permanece no efeito (modos finitos) tanto quando os modos permanecem nela. O que parecia, portanto, ser uma continuação da tradição neoplatônica, se mostra como uma radical teoria imanente. A substância nunca está em um estado imediato, mas sempre já modificada. A existência dos modos é a existência da própria substância (MODER, 2017, p.100). O conceito de causa de si, portanto, atua como uma curvatura (negatividade, movimento) na própria substância. É este o princípio de movimento do sistema spinozista. É o próprio Ser em sua modificação original. Por outro lado, o autor se filia a Vinciguerra e Deleuze sobre a teoria da imaginação como constituinte da experiência dos modos finitos. Nesse processo, longe de distorcer a realidade, a imaginação é constitutiva da própria realidade modal, uma aliada da razão na busca do conhecimento de terceiro gênero. Nesse sentido, a outra espécie de “negativo” em Spinoza é a capacidade do imaginário de distorcer a própria realidade (MODER, 2017, p.99).

Esta última consequência é importantíssima para o último capítulo, intitulado Ideologia e a Originalidade do Desvio, em que a filosofia de Althusser aparecerá como aquela que trabalha com ambas as concepções de negatividade, isto é, tanto com a torção spinozista, quanto com a lacuna hegeliana. Surpreendente e nada ortodoxa a postura do autor, visto que Althusser foi um crítico ferrenho da dialética hegeliana. Por um lado, Althusser assume a noção de crença, retirada da filosofia de Spinoza, como o local onde o imaginário constitui a própria existência material da ideologia; na crença religiosa a ideologia devém material. Por outro lado, a superfície material da ideologia não é o suficiente. Há sempre uma ordem real negativa que constitui a base positiva material. E nesse ponto de vista, o autor defende que Althusser tem uma forte influência hegelianalacaniana. Em Althusser, portanto, a ordem real não é a ordem material, ela é a diferença entre o real e o material (um arranjo dialético muito similar à concepção da identidade como identidade da identidade e da diferença). Por conta dessas duas posições althusserianas, Moder pode dizer que ele é a própria encarnação do problema Hegel e Spinoza.

A conclusão da obra, Substância e Negatividade: A Primazia da Negatividade, estabelece, portanto, um primado da negatividade na filosofia contemporânea. Negligenciada pela tradição desde Parmênides, passando por Aristóteles e os neoplatônicos, a negatividade ganha dignidade ontológica a partir de Hegel e se estende por toda a filosofia contemporânea. Curiosamente, mesmo Deleuze, o maior representante do “afirmacionismo”, não fica de fora desta primazia. Ora, a negatividade para Gregor Moder é tudo aquilo que funciona como um princípio motor não hierárquico ou unilateral no nível substancial ou ontológico. Seja esta chamada de negação da negação, teleiosis, diferença, modificação, torção, sujeito, curvatura etc. A originalidade do autor reside, para além de tirar Hegel desta tradição do “imediatismo ingênuo”, o que é evidente por si só, em fazer o mesmo com Spinoza! Para o autor, a única possibilidade de o spinozismo ser relevante na contemporaneidade é através dessa virada da negatividade e, no caso do spinozismo, entendida como torção, como essa autocausação da substância. Isto que o autor chama de “leitura heideggeriana de Spinoza”, ou seja, onde não há transição de substância para modos, não há transição do infinito para o finito, a única maneira de a substância se diferenciar é como suas próprias modificações, garante a continuidade recíproca de ambos. Em Spinoza, Ser só pode ser entendido dessa forma. Para Moder (2017, p.145), portanto, “a substância só pode ser sua própria torção”.

Eladio Craia – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR, Curitiba, PR, Brasil. Doutor. E-mail: eladiocraia@hotmail.com

Arion Keller – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR, Curitiba, PR, Brasil. Graduado em Filosofia. E-mail: arionkeller@hotmail.com

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Pentecostalismo e Política / Revista Brasileira de História das Religiões / 2020

A chamada temática “Pentecostalismo e política” reuniu pesquisas que analisaram o fenômeno pentecostal e sua influência na política sob diversos ângulos. Os pentecostais como grupo específico do segmento evangélico-protestante brasileiro mantiveram relações políticas de diversos matizes desde seu surgimento no Brasil em 1910 até o atual governo bolsonarista. Composto de doze artigos, sendo onze deles sobre o Brasil e um sobre a Argentina, esta chamada contribui para o debate atual sobre o impacto do fenômeno pentecostal na política desde o início do século XX.

No primeiro artigo, “Igrejas pentecostais e sua atuação política recente no Brasil”, David Mesquiati de Oliveira critica algumas categorias utilizadas para análise da relação entre pentecostalismo e política, faz um panorama da atuação pentecostal e aproximações sobre a relação entre igrejas pentecostais e a política partidária.

No segundo, “Pentecostais na Política: da Constituinte aos dias atuais”, Wanderley Rosa analisa a mudança de postura dos pentecostais, mais perceptível desde os acontecimentos que cercaram a Constituinte em meados da década de 1980, e compara essa atuação com a de setores mais progressistas do protestantismo da época, indicando haver outras agendas possíveis. “Epistemologia pentecostal e presença política”, Kenner Terra afirma que o ethos carismático-pentecostal é experiencial e místico, e não ficou isolado em uma perspectiva pessoal, pois essa nova racionalidade descobriu sua ingerência no mundo, culminando em uma participação pública mais ativa, “seja para o bem ou mal”.

Em “Deus acima de todos? A construção da teo-política na crise das democracias”, Eduardo Gusmão analisa como a crença e a ideia de um divino soberano aplicada à política afeta na construção da subjetividade de uma nação. No artigo “Pentecostais, Fundamentalismo e Laicidade no Brasil: uma análise da atuação da bancada evangélica no Congresso Nacional”, Bertone de Oliveira Souza confrontou os conceitos de fundamentalismo e laicidade e buscou analisar alguns projetos de leis propostos pela bancada evangélica a partir da redemocratização.

“Religião e política: o pentecostalismo, o sínodo para a Amazônia e a política ambiental no Brasil”, escrito por Moab César Carvalho Costa, considera como a teologia pentecostal, sob influência do dispensacionalismo pré-milenista, definiu a perspectiva dos pentecostais em relação às questões políticas e ambientais, que em muitos casos é diametralmente opostas às concepções ecológicas adotadas pela Igreja Católica no Sínodo para a Amazônia. Samuel Pereira Valério, em “Pentecostalismo, catolicismo e bolsonarismo – convergências”, busca mostrar as convergências entre os conservadores, sejam eles evangélicos ou católicos, que se tornaram a base religiosa do eleitorado bolsonarista.

No sétimo artigo, “Governo Bolsonaro e o apoio religioso como bandeira política”, Fábio Falcão Oliveira reflete sobre a base do populismo evangélico do atual presidente do Brasil. Gedeon Freire de Alencar, em “Jair Messias Bolsonaro: o ‘eleito de Deus’?”, mostra o uso instrumentalizador que o presidente Bolsonaro faz da religião, especialmente dos evangélicos e pentecostais, indicando o quanto essas ações podem ser mimetizadas como ações divinas.

Em “Revista A Seara e o debate sobre a inserção da Igreja Assembleia de Deus na política partidária (1956-1958)”, André Dioney Fonseca resgata as publicações de um importante periódico religioso pentecostal que tratou da questão político-partidária já em meados do século XX com posturas bem diferentes do que efetivamente se veio adotar posteriormente. Esse registro é importante para perceber que nunca se viveu uma curva ascendente na questão dos posicionamentos oficiais das igrejas pentecostais. Nicolás Panotto, por outro lado, contribui com um estudo sobre a realidade argentina. Em “Liderazgo, carisma y procesos de identificación en el campo evangélico. El caso de una iglesia pentecostal en Argentina”, Panotto estuda a formação do carisma das lideranças e as relações de poder no campo pentecostal argentino.

Em “‘Pela paz de Jerusalém’: a origem do sionismo cristão, sua influência na igreja protestante brasileira e sua atuação no Congresso Nacional”, Wilhelm Wachholz e André Daniel Reinke analisam o sionismo cristão e a influência das posições direitistas norte-americanas no posicionamento de alguns agentes da bancada evangélica. O número ainda conta uma resenha.

Não temos dúvidas de que os artigos compilados nesta chamada temática oferecerão novas proposições, gerando diálogos profícuos e contribuindo de maneira relevante para o fortalecimento do Estado democrático de Direito. E que todos nós, reforcemos o compromisso da pesquisa constante, da persistência e da certeza de um dos eu líricos de Mario Quintana:

Todos esses que aí estão

Atravancando meu caminho

Eles passarão…

Eu passarinho!

Adriano Lima

David Mesquiati


LIMA, Adriano Souza; OLIVEIRA, David Mesquiati. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.13, n.37, maio / ago. 2020. Acessar publicação original [DR]

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Laughter in Ancient Rome. On Joking, Tickling and Cracking up | Mary Beard

Estudiar la risa ha sido preocupación de diversos historiadores especialistas en diferentes periodos: Le Goff 1, para la Edad Media; Keith2 , para la Inglaterra de los Tudor; Halliwell3 , para los griegos; Clarke4, para el caso romano; entre otros. Así pues, aunque desde perspectivas y problemas diversos, hay una búsqueda historiográfica por preguntarse acerca de la historia cultural y social a través de la risa. Será precisamente en diálogo con los autores mencionados con los que Beard entabla una investigación histórica de la risa.

En este marco se encuadra este libro, que es, a su vez, fruto de las estancias de Beard como conferencista en Berkley en el año 2008. La importancia de esta investigación está dada, según palabras de la autora, en tanto que de los romanos hemos aprendido a reírnos y sobre qué reírnos. El libro busca establecer puntos de encuentro con lo que ella, tomando al poeta Khlebnivok, llama laughterhood de Roma, pero no pretende ser una exhaustiva búsqueda por la risa romana. El libro tampoco entra con el tema judío y el cristianismo temprano, pero le es imposible separarse de Grecia, por lo que estará en constante diálogo con el mundo helénico. Cabe añadir que la misma autora ha retomado el tema de la risa romana en otra publicación posterior5 , con el objetivo de ampliar y difundir su investigación. Leia Mais

Verdugos impunes. El franquismo y la violación sistemática de los derechos humanos | José Babiano, Gutmaro Gómez, Antonio Míguez e Javier Tébar

En España el debate académico sobre los derechos humanos y libertades ciudadanas no se produjo de forma real hasta finales de la década de 1970, el “decalaje” entre las instituciones españolas y su entorno europeo era más que evidente. La creación de un marco de investigación histórica sobre la vulneración de derechos humanos surgió en el contexto del debate de la aprobación de la (ominosa) Ley de Amnistía (46/1977, 15 de octubre). Ley por la cual se exoneraban toda la responsabilidad judicial a los crímenes de lesa humanidad cometidos durante la dictadura del general Franco. Esta publicación es una de las plataformas de lanzamiento de las corrientes de investigación comprometidas con las víctimas de la represión franquista. Verdugos impunes es una obra clave para comprender la naturaleza orgánica de la dictadura, los fundamentos ideológicos de las políticas de odio y la emanación de la jurisprudencia vulneradora de los derechos humanos más básicos.

La obra colectiva (Barcelona: Ediciones Pasado y Presente) alberga un compromiso claro con los valores del movimiento español de la Memoria Histórica. Los autores son especialistas en el campo de la historia política del siglo XX: José Babiano Mora (director del Archivo y Biblioteca de la Fundación 1º de Mayo), Gutmaro Gómez Bravo (Departamento de Historia Moderna y Contemporánea de la Universidad Complutense de Madrid), Antonio Mínguez Macho (Departamento de Historia de la Universidade de Santiago de Compostela) y Javier Tébar Hurtado (departamentos de Historia de la Universitat de Barcelona y la Universitat Autónoma de Barcelona). El cuerpo de la publicación se compone de cinco bloques temáticos y un apartado de conclusiones generales. En los epígrafes finales, destaca el índice alfabético, ya que es muy extenso y facilita mucho el rastreo de conceptos históricos, personalidades, siglas y referencias jurídico-legislativas. Leia Mais

A cruel pedagogia do vírus | Boaventura de Sousa Santos

Diante das incertezas, avanços e recuos no enfrentamento ao novo coronavírus no mundo, Boaventura de Sousa Santos elabora o livro publicado em 2020, intitulado “A cruel pedagogia do vírus”. Trata-se de um livro com poucas páginas para ler, com uma escrita simples e de fácil compreensão, onde o autor, em 32 páginas, apresenta suas opiniões sobre os ensinamentos que decorrem da pandemia do coronavírus, assim como da adaptação da sociedade diante da doença e de quem está em melhores condições para seguir as medidas de prevenção e recomendações da OMS perante a pandemia. No final da obra, o autor se permite, igualmente, a pensar o “futuro” que se apresenta vestido de uma utopia que ele chama “normalidade”.

No trabalho em questão, Boaventura de Sousa Santos não se esgota, uma vez que apresenta as entrelinhas, faz questionamentos e permite ao leitor a desenhar possíveis cenários diante da realidade que se vive atualmente. Partindo dessa premissa e da experiência vivida desde a declaração da pandemia e das distintas experiências da quarentena, “A cruel pedagogia do vírus” é uma proposta realista e hostil, uma vez que o vírus diante de vicissitudes cruéis e até fatais vai permitindo aos sobreviventes a compreender o mundo em que vivem e a pensar no tipo de sociedade que pretendem. Leia Mais

História da alimentação e do abastecimento na Amazônia | Revista do IHGPA | 2020

História da alimentação e do abastecimento na Amazônia: um presente ao IHGP

O Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), desde sua fundação, no ano de 1900, mantém um compromisso indissociável com a defesa do patrimônio cultural do Pará e da Amazônia. Isso está no DNA da instituição. A preservação e a valorização do patrimônio material e imaterial são bandeiras permanentes da ação do Instituto junto a sociedade regional.

Essa conduta está refletida na linha editorial do periódico, tanto na versão antiga, de revista impressa, como nesta versão atual eletrônica. E, ao estabelecermos uma linha do tempo da publicação, é possível observar nos textos produzidos pelos sócios e pelos autores convidados, ao longo dos anos, olhares voltados para a questão do patrimônio sob as mais diversas perspectivas. Leia Mais

Contra o juízo: Deleuze e os herdeiros de Spinoza – HEUSER (ARF)

HEUSER, E. M. D. (Org.). Contra o juízo: Deleuze e os herdeiros de Spinoza. Curitiba: Appris, 2019, 207p. Resenha de: MENEGHATTI, Douglas. Aufklärung – Revista de Filosofia, João Pessoa, v.7, n.2., p.131­-136, mai./­ago., 2020.

O livro é uma coletânea de textos escritos por 17 autores, organizados pela Prof. Ester Heuser, que se apresenta como um movimento de insurreição à doutrina do juízo. Para contrapor-se ao juízo são chamados à cena os filósofos que Deleuze nominou de “herdeiros de Spinoza”: Nietzsche, D. H. Lawrence, Kafka e Artaud. Conforme sugere o subtítulo presente na Apresentação, esses “herdeiros” podem ser considerados “cavaleiros do apocalipse ao revés”, cujo empreendimento é vencer o juízo, através de uma batalha libertadora que visa restabelecer o devir criativo, contrapondo o sistema transcendente do juízo à existência. Muitos são os tremores e temores daqueles que se opõem aos ‘castigos’ oriundos dos julgamentos sacralizados pela própria história, entretanto, como contrapartida, o livro deixa bem claro que o único caminho é resistir e lutar.

A menção ao apocalipse nos remete ao último livro do Novo Testamento da Bíblia cristã, mais especificamente a um texto de João de Patmos no qual é consumada a escatologia do juízo final da doutrina de salvação da cristandade. A profecia teleológica presente no apocalipse transforma o Cristo amoroso dos evangelhos em um Cristo vingativo, onde a justiça divina se torna preponderante sobre a misericórdia, por meio de um julgamento definitivo em que prevalece o ressentimento contra o pecado e todos os deleites de uma ‘vida profana’1. Para contrapor a visão determinista do apocalipse são apresentadas contundentes reflexões dos “cavaleiros do apocalipse ao revés”, numa perspectiva que leva o leitor desde a compreensão do livro de João de Patmos até a crítica ao mesmo, com uma visão de Deleuze-Lawrence.

Lawrence chega a duvidar que o evangelho de João e o Apocalipse tenham sido escritos pela mesma pessoa. Pois no Evangelho se encontra um Cristo afável e amoroso, enquanto no Apocalipse um Cristo rancoroso e vingativo (LAWRENCE, 1990, p. 2022).

Essa dicotomia levou Anna Lorenzoni et al, autores do capítulo: “Lawrence e Deleuze entre apocalipses: o julgamento final e o final do juízo”, a acentuar a conclusão de Lawrence: “João, o apocalíptico, trabalha imerso no terror e na destruição, fundamentando sua profecia em uma mescla infesta de ameaça e pânico; enquanto João, o evangelista, seguia de perto Jesus, trabalhando o amor humano e espiritual” (p. 117).

Teria então João de Patmos distorcido a doutrina de seu grande mestre Jesus de Nazaré? Para Lawrence, essa parece ser uma conclusão inevitável, uma vez que o “patmismo” se aproxima muito mais do antigo Judaísmo e do Paganismo do que dos Evangelhos.

Contra o juízo é um livro primoroso para quem deseja se iniciar na leitura da filosofia da imanência, haja vista que traz a tona, de forma original, uma perspectiva acerca dos herdeiros de Spinoza, numa conotação de combate ao transcendente e busca pela imanência que se revela nos encontros trazidos pelos autores do livro. No que tange a questão do juízo, ou “juízo de Deus”, como prefere Deleuze, o livro é relevante àqueles que desejam um estudo pormenorizado da questão, ou mesmo, adentrar na temática. Organizado em 4 partes, o trabalho começa com uma reflexão sobre a herança de Spinoza e uma análise da doutrina do julgamento na tragédia grega (Parte um: Juízo e Tragédia), passando por uma análise dos herdeiros de Spinoza e suas lutas contra o juízo nas partes dois e três (Os herdeiros de Spinoza e Contra o Juízo: a luta de Nietzsche, Lawrence, Kafka e Artaud, respectivamente) e finaliza com a apresentação de formas de contrapor a existência ao juízo (Parte quatro: Existências contra o Juízo) .

Presente na história desde a tragédia grega, o juízo se impõe como fundamento sagrado da praxis humana, uma vez que subjaz ontologicamente a qualquer ato. Para Deleuze, a doutrina do juízo: “nos condena a uma escravidão sem fim e anula qualquer processo liberatório” (DELEUZE, 1997, p. 195). A consciência de dívida como alerta constante que antecede a ação coloca todos os viventes sob a égide da doutrina de julgamento, ceifando o “processo liberatório” ao qual se refere Deleuze, os indivíduos se tornam prisioneiros de suas consciências, num processo em que a dívida é selada ontologicamente numa consciência pré-reflexiva.

Nesse processo, cuja ação é seguida pelo julgamento, transparece um estado constante de vigilância e culpa, que pode ser sintetizado pelas próprias palavras do Apocalipse: “Se não vigiares, virei a ti como um ladrão, e não saberás a que horas te surpreenderei”. (BÍBLIA, Ap, 3, 3).

A inspiração que fez germinar o livro Contra o juízo está no capítulo “Para dar um fim do juízo”, presente na obra Crítica e Clínica de Deleuze (1997). Nele o autor apresenta diligentemente os herdeiros de Spinoza que, justamente por terem padecido do juízo, conseguiram transpor o fardo do julgamento por meio de um combate altivo e corajoso que resultou na grandiosidade das obras destes pensadores. Ocorre que a oposição ao juízo é uma tarefa complexa, uma vez que está arraigada à psicologia do sacerdote: “a lógica do juízo se confunde com a psicologia do sacerdote como inventor da mais sombria organização: quero julgar, preciso julgar” (DELEUZE, 1997, p.144). O veredito do juízo atua como parâmetro subjacente a ação, proliferando uma realidade em que ser vítima, culpado, constrangido e pecador passa a fazer parte da “natureza” humana. A lógica do juízo, que estratifica a todos numa posição de submissão e expectativa por um polo transcende que possa servir de recompensa àqueles que se submetem a uma existência ignominiosa, não perfaz apenas o meio religioso e político em grande medida. Os próprios grandes sábios e pensadores, vulgo filósofos, se alimentaram um após o outro do socratismo e suas ramificações cristãs que ascenderam num polo transcendente em que conceitos petrificados serviram de âncora para a construção de ideais norteadores da existência. Situação que levou Nietzsche a conclusão de que “Em todos os tempos, os homens sábios fizeram o mesmo julgamento da vida: ela não vale nada” (GD/CI “O problema de Sócrates” § 1).

Vejamos, se contrapor ao juízo implica nada menos que se opor a uma ordem milenar que se arrasta desde o famoso julgamento de Orestes na antiga Grécia. Para Leandro Nunes, autor do capítulo “Spinoza: o mais feroz combatente às ordens transcendentes e ao juízo”, “O julgamento está intrincado nos modos de vida produzidos pelo homem ocidental, ao menos desde 458 a.C., quando Ésquilo apresenta sua tragédia Eumênides, em que monta o primeiro tribunal, tal como o conhecemos hoje” (p. 25). Na tragédia, Orestes é acusado de matricídio, no entanto, teria realizado este ato funesto para vingar a morte de seu pai, assassinado pela sua mãe. Como o julgamento termina empatado, a própria juíza Atena vota em prol do sentenciado, absolvendo-o.

No enredo, pesam a dor e a vingança de Orestes, a dor da perda do pai e a vingança reparativa contra a mãe, situação que constitui o que Deleuze (2005, p. 118) chamou de “processo de restituição de equilíbrio ou de compensação” renovado a cada desfecho que desencadeia novas reações de causa e efeito que tendem ao infinito.

O juízo de valor arraigado numa concepção moral da realidade nem sempre esteve presente nas tragédias gregas, porém com a construção de uma tirania da razão contra os instintos, protagonizada pela razão socrática apolínea, a espontaneidade e a embriaguez dionisíaca se esfacelaram frente a um novo poder esclarecedor da razão, que aos poucos se tornou a luz que ilumina e orienta o Olimpo – fazendo com que cada indivíduo se encolha frente ao comum, àquilo que a todos orienta e conduz ao caminho do ‘bem’2. Aliás, é praticamente inconcebível a construção de uma ética teleológica com vistas à felicidade, como pretendeu Sócrates e seus disseminadores, sem que o desregramento e a indeterminação dionisíaca sejam postas a prova. Para tanto, ascendeu a necessidade da individuação, para que cada qual possa ser julgado em seus próprios méritos e deméritos.

Associado às belas formas, Apolo é considerado o deus criador do Olimpo, através dele a existência torna-se suportável frente aos poderes titânicos da natureza.

Simbolizando as singularidades por meio do estado do sonho, Apolo traz a ordem ao caos. No entanto, no Nascimento da tragédia, Nietzsche apresentará o impulso apolínio como ilusório, uma vez que nega a multiplicidade da natureza por meio da afirmação do Principium individuationis, ou seja, transparece um estado de ofuscamento em que a realidade é representada a fim de se tornar suportável. Daí decorre a necessidade de emparelhamento dos impulsos antagônicos, de modo que o exagero e a fruição dionisíaca se descarregam sobre o equilíbrio e a moderação apolínea. Acerca desta relação, Heuser (p. 197), ao tratar da “Embriaguez e insônia” sintetiza: “[…] é a conjugação entre lucidez e a embriaguez, a união entre o apolíneo e o dionisíaco, a própria condição para que, no sentido deleuziano, o pensamento seja forçado a pensar – o que é sinônimo de criar, preocupação central da filosofia de Deleuze”.

Em Deleuze, toda a filosofia, arte e ciência se justificam na criação, que emerge da múltipla fluidez do devir. Nesse viés, não há espaço para o predomínio apolíneo ou para a exacerbação do espírito teórico em detrimento do dinamismo dionisíaco. Deleuze faz do filosofar uma atividade criativa ad infinitum, sem espaço para o SER oriundo da tradição platônica. Em sua construção filosófica, os universais não passam de criações que se escondem numa atemporalidade criada e, portanto, apolínea (ilusória). Seu pensamento rizomático é uma contundente negação do juízo: Oposto a uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos e posições, por correlações binárias entre estes pontos e relações biunívocas entre estas posições, o rizoma é feito de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindoa, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 43).

A partir desta conotação de esfacelamento dos polos opostos que se sustentam dialeticamente na metafísica, a filosofia deleuzeguattariana rompe as raízes do juízo e seus efeitos não são mais capazes de produzir causalidade no mundo da praxis, isto é, a negação do juízo implica no resgate da embriaguez dionisíaca que afasta o dever moral e abre margens para a inocência. Para Nietzsche: O fato de que ninguém mais é feito responsável, de que o modo de ser não possa ser remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade nem como sensorium nem como “espírito”, apenas isto é a grande libertação (grosse Befreiung) – somente com isso é restabelecida a inocência do viraser (Unschuld des Werdens) (GD/CI, Os quatro grandes erros, § 8).

Não havendo mais necessidade de ‘fazer culpados’ se apagam as relações de credor e devedor e, consequentemente, não faz mais sentido emitir julgamentos. Para Stefano Busellato, autor do Capítulo “Nietzsche além do limite de Deleuze: Das Gericht”: “Nietzsche desmascara e, com isso, põe fim ao juízo” (p. 67). Embora presente no mundo da vida em suas mais diversas manifestações, o juízo também é uma construção e, como tal, pode ser desterritorializado e reterritorializado. Disso depende o que Nietzsche mencionou como “grande libertação”, como caminho para o übermensch. Uma construção da realidade aquém do juízo, eis o que propõem os autores do livro em análise, obviamente não se trata da construção de um novo mundo e nem de uma utopia, talvez o seja, mas a efetividade da existência é tamanha que não caberia no espaço de um sonho.

Unificar as cores, os tamanhos, os sentimentos, as virtudes, enfim, igualar as diferenças é um dos fundamentos pelos quais o julgamento se mantém ativo entre os povos. Em prol de seres unívocos e orquestrados pelo dever operam muitas escolas, igrejas, tribunais e tantas outras espécies de instituições mantenedoras dos valores tradicionais que perpetuam o passado indiscriminadamente, como se a certeza do futuro dependesse da reprodução e vivacidade de um passado longínquo, mas ‘glamoroso e glorioso’. Hoje camuflado sobre a falácia da família tradicional, os juízos imperam e se alastram destruindo a diversidade e o poder criativo de novos indivíduos que insistem em resistir em meio a ‘ordem preestabelecida’. Impossível não lembrar a canção de Belchior (1976), que fez sucesso no mesmo ano com a contundente voz de Elis Regina, “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmo e vivemos como nossos pais”. Nosso passado por vezes nos condena a repetir e a se sujeitar aos antigos juízos, a vivermos como nossos pais, a repetir e novamente repetir os jargões que nos foram repassados, como se os constantes sonhos do passado nos impedissem de viver. O que, também Belchior, numa contunde crítica ao juízo, imortalizou na canção a premissa “Viver é melhor que sonhar”. Viver versus sonhar: um combate travado pela vida contra o juízo, onde se encontram em relação de tensão o impulso apolíneo em seu estado do sonho e o impulso dionisíaco em seu estado de embriaguez.

Ester Heuser, no Capítulo “Elogio a insônia contra o juízo” (p. 196197), expõe: Se o deus solar comanda o sonho e o tribunal, se ele nos encerra na forma orgânica e limitada, em nome da qual julgamos, Deleuze precisa do notívago Dioniso para dar um fim ao juízo. Mais propriamente da embriaguez dionisíaca que só pode se manifestar por meio do ‘sono sem sonho onde, no entanto, não se dorme, essa insônia que, todavia, arrasta o sonho até os confins da insônia’ (DELEUZE, 1997, p. 148).

O sono sem sonhos ao qual Deleuze se refere possibilita o afastamento dos tribunais, afinal o sonho continua a produzir reflexos do dia que insiste em governar e imperar imagens de domínio sobre a mente, então, mesmo durante a noite o efeito onírico não me afasta de meu ego, me tornando subserviente. A psicanálise ao dar significação aos sonhos, nos torna “outro”, um alguém passível de ser vislumbrado, decodificado e, porque não, aprisionado. Para Heuser (p. 195): “Se durmo e sonho, me aproximo da noite, Reterritorializo o sono e também a mim mesma, já não posso mais dizer ‘eu durmo’, nem mesmo dizer ‘eu’. Não sou eu nem outro, sou uma sonhante que não pode ‘verdadeiramente’ ser”. Romper o efeito onírico do sonho é ser capaz de um “autoesquecimento” derivado de uma negação do sujeito em sua individuação, esse esfacelamento do “eu” é o que Nietzsche chamou de efeito ditirâmbico oriundo da embriaguez extasiante de Dionísio. Para Gonzalo Aguirre, autor do capítulo: “Rumino, ergo cogito: para recuperar cada vez el juicio” (p. 110): “El Organismo passional proprio del Juicio nunca puede alcanzar satisfacción, y lo toma todo com esa insatisfacción persistente que, organizada por uma Gramática de la vigilia, avanza incluso sobre las potencias oníricas”.

Criar mecanismos contra o juízo, que se encontra arraigado até no subterrâneo dos sonhos é tarefa que mobilizou escritores como Kafka. Adriana Dias e Paulo Schneider, autores do capítulo: “Kafka: uma escrivida ‘para dar fim ao juízo’”, assim descrevem o estilo do escritor: “A sua escrita é, de certo modo, como um caco de vidro virado contra si, está virado contra qualquer vontade divina, contra a sua condição judaica, contra o caráter social e familiar, a profissão, a justiça, o casamento” (p. 83).

Este domínio que vai até as zonas mais remotas do universo também encontrou solo fértil no inconsciente, fato percebido por Deleuze e Guattari, que encontraram relações de poder e dominação na relação entre analista e paciente. Assim, o juízo opera soberano exercendo violência física e simbólica contra os corpos, corpos vislumbrados em sua estrutura orgânica, como um todo onde cada parte cumpre uma função em vista de uma finalidade maior. Para opor-se a esta estrutura consciente que visa solapar os limites do inusitado, Deleuze lançará mão, alavancado por Artaud, do conceito de Corpo sem Órgãos, noção explorada por Evânio Guerrezi no capítulo “O caso Artaud: o corpo sem órgãos para acabar com o julgamento de Deus”. Para Artaud, apresentado na segunda parte do livro por Cristiano Bedin da Costa, em “Ainda Artaud”, o corpo sem órgãos é condição para a superação do juízo: “Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade” (ARTAUD, 1983, p. 161162).

A questão do juízo psicanalítico é abordada, essencialmente, no capítulo “No teatro do capital o juízo psicanalítico encena um espetáculo trágico”, escrito por Ronaldo dos Santos. O objetivo apontado é situar a psicanálise como “um produto social e historicamente datado, que nasce, desenvolve-se e é posto a serviço do capital como uma das instâncias de elaboração do juízo” (p. 50). Nesse viés, Freud encontrou no elemento trágico de Édipo uma forma de perpetuação da culpa que faz com o que o indivíduo ressentido se curve mediante seu próprio inconsciente, numa sina onde a divida permanece viva e se alimenta da debilidade de um ser incapaz de sanar seus próprios limites: “O paciente deve deixar de culpar os outros pelos seus sofrimentos e imputar a si mesmo a responsabilidade por aquilo que se passa, o ressentimento tornase culpa” (p. 52).

O mea culpa, mea maxima culpa3 faz com que o indivíduo esteja numa condição de vulnerabilidade, a qual só pode ser superada mediante o arrependimento, seguido da penitência e, por fim, do perdão de Deus. A psicanálise segue um rito muito similar: “Em sua interpretação da realidade, a psicanálise aprisiona os indivíduos nos seus dilemas edípicos, distanciando-os dos determinantes históricos e sociais aos quais estão submetidos” (p. 53). Essa situação levará Deleuze à conclusão de que se trata de um sistema alimentado por uma dívida infinita, impedindo o aparecimento de qualquer novo modelo de existência, uma vez que se crê que a natureza humana dispõe de uma universalidade lógica que a rege em padrões e estereótipos que se repetem.

A transcendência dos valores encontra seu modus operandi no juízo, afinal para manter um sistema vertical em funcionamento é necessário algum tipo de pudor que leve os indivíduos a respeitar e manter a engrenagem do sistema. Para sustentar a falácia do juízo é comum a instituição de um telos que fornece sentido aos atos humanos, assim, aparecem o deleite da felicidade, do bem comum, da pátria, do paraíso e de tantos outros universais inventados e que ganham um caráter ontológico de atemporalidade. Enfim, Contra juízo é uma insurreição de resistência contra a transcendência.

Embora o livro não trace um paralelo filosófico direto entre pensadores que defendem uma filosofia transcendente e os herdeiros de Spinoza, o mesmo traz uma grande variedade de discussões sobre a questão da imanência num viés deleuziano. Dada a diversidade de autores e temáticas abordadas, o livro não traz uma reflexão aprofundada de algum autor em específico, fator que dificulta uma análise mais específica do livro.

No entanto, se apresenta como uma excelente ferramenta introdutória a alguns dos principais escritores do pensamento da imanência, além de instigar e resgatar uma contundente discussão sobre a nefasta influência do juízo à existência. Conforme salienta Ester Heuser no final da apresentação da obra: “Com resistência se responde ao que nega a existência”.

Referências

ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. Tradução Cláudio Willer. Porto Alegre: LP&M, 1983.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico Católico. São Paulo: Ave Maria, 1996.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad.: P. Pal Pelbart. São Paulo: 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. Sobre Nietzsche e a Imagem de Pensamento. In: A ilha deserta e outros textos. Trad.: T. Tadeu e S. Corazza. São Paulo: Editora Iluminuras, 2005.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, v. 1. Trad.: Ana L. de Oliveira, A. G. Neto e C. P. Costa. São Paulo: 34, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos ídolos – ou, como se filosofa com o martelo. Trad.: P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Notas

1 ‘Para Luiz Palauro, autor do capítulo “Malditos mestres subversivos: vinde estragar nossos sonhos”: “O Cristo terreno era doce e aristocrata (de alma). O ‘filho do homem’ é expressão do mais alto grau de ressentimento das ralés, tudo nele é vingança, destruição e impotência remoída, o ódio fermentado” (p. 184).

2 A respeito da questão dos impulsos apolíneo e dionisíaco, bem como acerca da questão do elemento trágico em Nietzsche e Deleuze, Contra o Juízo dispõe do capítulo: “Tragédia grega e a doutrina do julgamento”. Escrito por Ana Acom.

3 Na tradição do catolicismo o “ato de contrição” é professado durante as celebrações da missa e é o simbolismo máximo da admissão dos pecados e da abertura do pecador para o perdão divino. Na íntegra: “Confiteor Deo omnipotenti, beatae Mariae semper Virgini, beato Michaeli Archangelo, beato Joanni Baptistae, sanctis Apostolis Petro et Paulo, omnibus Sanctis, et tibi pater: quia peccavi nimis cogitatione verbo, et opere: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.”  * Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus Toledo. Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico EBTT, do Instituto Federal do Paraná. Email: douglas.meneghatti@ifpr.edu.br

Douglas Meneghatti – Instituto Federal do Paraná, Brasil

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Cozinha do Extremo Norte – Pará / Amazonas | Bruno de Menezes

O texto Cozinha do Extremo Norte – Pará / Amazonas, de Bruno de Menezes, é um dos estudos clássicos sobre a cozinha paraense. Ao lado do Panorama da Alimentação Indígena, de Nunes Pereira, e da Cozinha Amazônica, de Osvaldo Orico, é marco referencial na abordagem da temática da alimentação, no século XX.

Foi feito sob encomenda de Câmara Cascudo, para compor a Antologia da Alimentação Brasileira. Finalizado em fevereiro de 1963, foi um dos últimos trabalhos realizados pelo poeta, autor de Batuque, que morreu em Manaus, em 2 de julho desse mesmo ano. Leia Mais

Histórica. Lima, v.44, n.2, 2020.

Artículos

Notas

Reseñas

Voces de la ausencia. Las cartas privadas de los emigrantes asturianos a América (1856-1936) | Laura Martínez Martín

As cartas privadas e, em particular, as escritas pelos emigrantes de longas distâncias, receberam atenção de numerosos historiadores, linguistas e cientistas sociais de várias gerações. Desde a publicação, em 1918, de The Polish Peasant in Europe and America, dos sociólogos William Thomas e Florian Znaniecki, para citar a obra mais importante no seu gênero, publicaram-se inúmeras recompilações e estudos de documentos pessoais relacionados aos grandes movimentos migratórios, especialmente do velho ao novo continente. Os historiadores atuais das épocas moderna e contemporânea sabem muito bem que a correspondência epistolar não é uma fonte que se possa desprezar inadvertidamente, e não são poucos os que lhe concedem uma importância central para descrever e explicar processos históricos complexos, como os conflitos bélicos e as migrações em massa, por exemplo. Nesse contexto epistemológico, vale a pena conhecer o livro Voces de la ausencia, com o qual Laura Martínez coroa vários projetos de pesquisa coordenados pelo professor Antonio Castillo Gómez na Universidad de Alcalá1. Leia Mais

A cidade e suas imagens / Revista Maracanan / 2020

A definição de “cidade” e “imagem” não é tarefa epistemológica simples e o cruzamento das apreensões já propostas pode levar a um labirinto tão desafiador quanto atraente. São duas coordenadas complexas, cujas relações desenham planos intrincados, exigindo uma abordagem multidisciplinar. O que define uma cidade? Seu tamanho, suas formas, suas funções, seu contingente populacional? Suas redes de cultura? O que é uma imagem e quanta informação ou material sensível cabe numa tela, num quadro, num muro?

Os coordenadores deste dossiê, pesquisando diferentes temas, se formaram a partir dessas miradas sobre a cidade e suas imagens, expressas nas suas teses de doutoramento. Amanda Danelli Costa investigou as reformas urbanas e a modernidade carioca a partir das obras, literária e fotográfica, de João do Rio e Augusto Malta. Enquanto o cronista elaborava interpretações e representações do Rio de Janeiro, disputando a narrativa moderna da cidade nos periódicos; Augusto Malta inventariava as transformações da urbes, assentado em uma tradição ilustrada, tanto do ponto de vista técnico quanto pela referência civilizadora vinculada ao urgente progresso material urbano.1

Carlos Eduardo Pinto de Pinto abordou a representação da cidade do Rio de Janeiro pelo Cinema Novo entre 1955 e 1970, abarcando o surgimento das ideias que embasariam o movimento nos anos 1960, bem como suas mutações ao longo da década. A vinculação do Cinema Novo à vivência urbana carioca define um de seus perfis e fornece elementos para a elaboração de imaginários sociais na e sobre a cidade. Capital federal até 1960, o Rio começou a década sendo transformado em Estado da Guanabara, depois de perder o posto de cabeça do país para Brasília. Ainda assim, a capitalidade foi o eixo norteador das obras analisadas, que mobilizam duas estratégias de representação: a oposição da modernidade urbana às mazelas sociais, caso de Rio, 40 graus, Cinco vezes favela e A grande cidade; ou a evocação da capitalidade em sua relação com os traços identitários da jovem classe média, como Os cafajestes, O desafio, Garota de Ipanema e Todas as mulheres do mundo. Através de agenciamentos diversos, os atores sociais abordados pela pesquisa – profissionais envolvidos nas produções dos filmes, críticos, teóricos, políticos e outros – se apropriaram das obras, pondo em disputa os imaginários urbanos e as práticas sociais.[2]

Viviane da Silva Araujo investigou como as transformações urbanas ocorridas em Buenos Aires e no Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX tornaram-se temas para fotógrafos locais e estrangeiros. Analisando as duas cidades comparativamente, a tese identifica na produção fotográfica algumas das tensões próprias à experiência da modernidade urbana latino-americana, onde o desejo de adequar-se a um modelo ideal de civilização não foi capaz de produzir uma sociedade ordenada segundo os preceitos do almejado progresso material e moral, mas experimentou uma realidade imprevista, original e complexa. Realidade esta que a fotografia não só captou, mas contribuiu para criar maneiras de imaginar, ver e sentir ambas as cidades em acelerado processo de transformação naquele período.[3]

Frequentemente, e desde há muito tempo, as urbes vêm sendo tematizadas por diferentes imagens [4] – dos registros cartográficos às mídias digitais, passando pelas artes plásticas, fotografia, cinema, TV, vídeo, grafite e pichação – produzindo representações que alargaram as possibilidades de interpretação e produção de sentidos sobre as cidades, vistas em perspectiva histórica. Desse modo, as cidades em ampliação e transformação foram largamente fixadas em imagens cada vez mais várias e complexas, um processo que não ficou de fora do conjunto de interesses dos historiadores.

Observadas a partir da modernidade, cidade e imagem também ensejaram reflexões sobre a subjetividade moderna e as novas formas de estar no mundo, interpretá-lo e representá-lo. [5] A invenção da fotografia, na primeira metade do século XIX, facilmente associada à consequente mudança do padrão de visualidade, só se efetivou como um invento possível em razão de uma transformação da própria subjetividade moderna na passagem do século XVIII para o XIX. [6] As grandes cidades, que enfrentaram o frenesi da revolução urbana oitocentista, foram os palcos principais para esse novo “observador de segunda ordem”. [7] Sujeitos e cidades eram, enfim, atravessados e traduzidos pelo registro da reprodutibilidade técnica.[8]

Movimento semelhante pode ser observado nas relações entre cidades e cinema, que tem interessado, sobretudo, à historiografia norte-americana e francesa. De modo geral, os americanos focam a importância simultânea da cidade e do cinema para a conformação da modernidade, enquanto os franceses privilegiam a representação do urbano pelos filmes.[9] Entre a produção francesa, cabe destacar, além das obras homônimas La ville au cinéma, também Visions urbaines, Cités-cinés, Ville et cinéma e Un nouvel art de voir la ville et de faire du cinéma. [10] Nessas obras, a maioria formada por reunião de artigos, é flagrante o recurso à interdisciplinaridade, havendo contribuição de historiadores, cineastas, críticos, cenógrafos, antropólogos, sociólogos, linguistas, comunicólogos, arquitetos e urbanistas. Por mais que sejam variadas as abordagens, todas confluem na crença de que os filmes urbanos não oferecem um acesso direto às cidades, sendo, ao contrário, considerados reinvenções destas, ao mesmo tempo em que constituem suas realidades.

Se por um lado observamos a multiplicação de pesquisas que tomavam os registros imagéticos, especialmente depois da criação da fotografia – e, mais tarde, do cinema – como fontes para a análise das transformações urbanas, dos códigos sociais e das sociabilidades, mais recentemente se tornaram frequentes os trabalhos que vão às cidades para compreenderem como diferentes grupos produzem registros variados no próprio corpo da urbes, criando imagens (pichações, grafites, estênceis) que revelam distintas urbanidades, relações de poder e apropriação possíveis.

A fotografia e o cinema também assumem relação forte e estreita com a memória, seja de indivíduos, grupos sociais ou de cidades. [11] Suas dinâmicas de recorte de um tempo e espaço, que sobrevive para além do momento do clique e da filmagem, contribuiu vivamente para que frequentemente assumam papel de gatilho ou ponto de partida para a memória. Aquilo que aqui chamamos de dinâmica própria da fotografia e o específico fílmico também se aproximam da maneira como a memória se organiza: seja em uma foto, em um filme, ou seja, com a memória, é impossível lembrar tudo ou colocar tudo dentro do quadrado. [12] Os três implicam seleção, esquecimento e tomadas de pontos de vista. [13]

Na Europa, abordagens dessa natureza foram iniciadas nos anos 1960, pela Nova História Urbana, tendo Richard Sennett como figura mais proeminente, e pela História da Arte, com destaque para Giulio Carlo Argan.[14] Como alternativa a abordagens que equacionam o objeto “cidade” a processos de urbanização (dimensões, formas, funcionalidades), tais enfoques privilegiam as cidades como objetos singulares, atuando como centro geradores de identidades. [15] Argan, por exemplo, defende que a cidade seja um acúmulo de bens culturais (incluindo-se as imagens) e não apenas “o produto das técnicas de construção [que] também concorrem para determinar a [sua] realidade visível”. [16]

O papel da cidade como o locus a partir do qual se imagina, projeta e se representa a experiência moderna e sua realidade visível também esteve no cerne da reflexão de estudiosos latino-americanos neste mesmo período. Em 1976, o historiador argentino José Luis Romero publica sua mais importante obra, cujo subtítulo, “as cidades e as ideias”, já expõe a permanente tensão entre a cidade real e a cidade imaginada. Tal argumento é desenvolvido mais tarde por pesquisadores como Adrián Gorelik, que adverte que a modernidade urbana experimentada na América Latina foi original e complexa e, se comparada às seculares cidades europeias, a cidade latino-americana não decorre dos processos de modernização, mas antecipa a eles, como um instrumento capaz de “criar” uma sociedade moderna.[17]

No Brasil, pesquisas que relacionam cidade, modernidade e imagem ganharam força a partir dos anos 1980, convivendo com uma produção – naquele momento, mais vasta – a respeito das relações entre cidade e literatura. Eram, na sua maioria, reflexões sobre registros fotográficos realizados nas primeiras décadas do século XX nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, resultados das pesquisas de mestrado e doutorado de Ana Maria Mauad, Maria Inez Turazzi, Vânia Carneiro de Carvalho e de Charles Monteiro. Desde então, multiplicaram-se os enfoques, com uma seleção variegada de urbes, tipos de imagens e recortes cronológicos.[18]

O encontro entre o urbano e o imagético por meio da análise de uma variedade de cidades, reais e imaginárias, e de imagens dos mais diferentes suportes, está presente nos 18 artigos e na entrevista que compõem a presente edição da Revista Maracanan. O número expressivo de submissões que atenderam à chamada nos alegrou, ao demonstrar a potencialidade do tema. Esperamos que a publicação deste dossiê contribua para o reconhecimento e a ampliação das abordagens e significados teórico-metodológicos a respeito das interfaces entre cidade e imagem.

A entrevista que abre o dossiê foi realizada ao longo de uma noite muito agradável na companhia (virtual) de Ana Maria Mauad. A pesquisadora e professora nos apresentou um vasto panorama a respeito das relações entre as cidades e suas imagens, centrando-se nos trabalhos sobre fotografia, tema da maioria de suas pesquisas, mas alcançando também outros suportes. O registro dessa conversa dá acesso a um vislumbre dos caminhos percorridos por uma das primeiras historiadoras, no Brasil, a se dedicar às relações entre história e imagem.

Entre os artigos que compõem o dossiê, a estereoscopia e o seu desenvolvimento no Brasil, entre 1850 e 1950, são apresentados por Maria Isabela Mendonça dos Santos a partir dos acervos de fotógrafos profissionais e amadores que produziram uma variedade de vistas de cidades brasileiras, contribuindo para a formação e divulgação de uma imagem do Brasil, exótica e civilizada, enquanto redimensionava a própria subjetividade moderna pelo olhar. A produção amadora de estereoscopias de Guilherme Antonio dos Santos por mais de cinquenta anos, resultando em um acervo particularmente extenso, é objeto de análise neste artigo que observa a produção de imagens sobre a cidade do Rio de Janeiro como artifícios da construção de uma paisagem ideal.

Em diálogo com o campo da história pública, Michel Kobelinski analisa pinturas, gravuras, fotografias e narrativas – entendidas aqui como lugares de memória – produzidas por Estanislau Schaette, Hermann Schiefelbein, Arthur Wischral e Hugo Hegenberg sobre a identidade teuto-brasileira e seus efeitos na sociedade paranaense na primeira metade do século XX. Essas obras são tomadas por seu caráter pedagógico que, além de educar sobre o passado, contribuiu para a aproximação com histórias plurais e ainda para a produção de vínculos coletivos.

O artigo de Samuel Oliveira aborda fotorreportagens que tematizam a favela publicadas na revista O Observador Econômico e Financeiro – especializada em análises econômicas e sociais e articulada ao projeto desenvolvimentista das décadas de 1940 e 1950. Em sua análise, demonstra como tais matérias reiteraram os estigmas da pobreza urbana e sua racialização por meio dos registros fotográficos das favelas cariocas e dos contrastes estabelecidos com o padrão de vida da classe média.

Em artigo que analisa a Primeira Exposição Fotográfica de Motivos Belorizontinos, ocorrida em 1953, fruto de uma parceria entre o Foto Clube de Minas Gerais e a Prefeitura de Belo Horizonte, Lucas Mendes Menezes investiga relações entre fotografia amadora e poder público. Além da análise da composição visual de fotografias reproduzidas no catálogo desta exposição, o autor explora o olhar que os fotógrafos lançaram sobre a cidade – especialmente sobre os seus elementos arquitetônicos – assim como seus condicionamentos e espaços de atuação, entendendo a fotografia no conjunto das iniciativas culturais do período e suas interseções com o poder público.

Débora Bueno, Ricardo Freitas & Vania Fortuna investigam as fotografias de César Barreto, tomando-as como elementos constitutivos da memória urbanística da cidade do Rio de Janeiro. Fotógrafo oficial da “cidade olímpica”, coube a César Barreto documentar, entre 2011 e 2013, as reformas que a cidade enfrentava para abrigar os Jogos Olímpicos de 2016. As fotografias publicadas em um portal institucional eram peças imagéticas centrais no processo de valorização da marca-cidade, a fim de torná-la mais competitiva no concorrido mercado internacional de cidades globais. Mais do que registrar o processo de revitalização da zona portuária, como quem guarda as lembranças do que fora a cidade, as fotografias de César Barreto apontavam para o futuro olímpico do Rio de Janeiro, como destino incontornável da cidade maravilhosa.

Utilizando a metodologia de leitura da imagem da cidade de Kevin Lynch, Paulo Barata identifica o acúmulo de tempos desiguais presentes no centro comercial de Campo Grande, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, no século XXI. O autor nos convida a observar com detalhes como esta localidade outrora rural apresenta hoje uma paisagem tipicamente urbana.

A cultura midiática da Belle Époque carioca é desnudada por Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo Souza, que analisa como as crônicas literárias registraram novos modos de ver e narrar a cidade no contato com os novos aparatos e imagens – produzidas pelo cinema, pela imprensa e expostas em vitrines –, afetando a constituição e a percepção dos sujeitos modernos, expressas nas transformações das sociabilidades e sensibilidades das primeiras décadas do século XX. As crônicas de João do Rio, Olavo Bilac, Benjamin Costallat e Lima Barreto são, neste artigo, exemplos da renovação representativa e da alteração na estrutura de percepção dos sujeitos modernos, revelando a tensão entre o imaginário literário e o imaginário técnico.

Wolney Vianna Malafaia aborda o Rio de Janeiro a partir da oferta de condições materiais e intelectuais para a formação do Cinema Novo brasileiro. Embora aponte alguns traços de representação da cidade em dada filmografia cinemanovista, a proposta principal do autor é pensar a cidade como catalisadora do movimento cinematográfico, ao longo dos anos 1960. Por meio do levantamento de instituições e redes de sociabilidade, o trabalho demonstra o quanto aquela, que até há pouco tinha sido capital do Brasil, seguiu exercendo funções associadas à capitalidade.

Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior analisa o filme Notas para uma Oréstia Africana (Appunti per un’Orestiade Africana, Pier Paolo Pasolini, 1969), com vistas a compreender a construção visual das paisagens urbanas e naturais de alguns países africanos no documentário do diretor italiano. Para o enfrentamento do específico fílmico, o autor mobiliza a iconologia, a narratologia histórica e a abordagem filmológica, problematizando o estatuto sócio-histórico das imagens, evidenciando os mecanismos empregados na construção do filme e cruzando os resultados com os escritos sobre cinema.

Mauro Amoroso & Gustavo Romano propõem uma abordagem heurística do modo como o Jornal do Brasil (JB) e o filme Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002) narraram eventos relacionados à “guerra” da Cidade de Deus, conflitos entre traficantes ocorridos na virada da década de 1970 para a de 1980. Em suas análises, os autores levam em consideração a especificidade da linguagem de cada veículo, bem como os diferentes contextos históricos, elencando os elementos constitutivos de cada modo de “ler” ou “ver” os eventos.

Fabio Allan Mendes Ramalho assume perspectiva benjaminiana ao analisar os corpos em perambulação por espaços urbanos, tomados como lugares de encontro afetivo e desejo (homo)erótico. Por meio da análise de três filmes de Marcelo Caetano – Bailão (2009), Na sua companhia (2011) e Corpo elétrico (2017) –, o autor demonstra como a linguagem cinematográfica é capaz de reelaborar, mais do que registrar, a materialidade urbana em consonância com a vivência sexual e afetiva das personagens.

Leonardo Perdigão Leite & Pedro Jorge Lo Duca Vasconcelos investigam novas práticas museais e museológicas na cidade do Rio de Janeiro – o Museu de Favela Pavão-Pavãozinho Cantagalo, a Galeria Providência e o Museu Nami – observando como essas iniciativas se baseiam em visões não ortodoxas de patrimônio, memória e museu. Tais experiências produzem alternativas aos modelos tradicionais e consagrados, apoiadas em uma museologia social, comunitária, popular, informal ou progressista, contribuindo para a construção de outros modos de expressão a partir da subjetivação (reveladas através de grafites, estênceis, murais, painéis) de grupos subalternizados, no lugar de promover a cristalização de identidades.

O grafite é tematizado por Ivânia dos Santos Neves que toma o aniversário de 400 anos de Belém como um período favorável para a reflexão sobre os discursos que forjaram a história oficial da cidade, uma história escrita pelo colonizador, como de tantas cidades latino-americanas, mas que exibe suas fraturas quando movimentos indígenas e outros enunciadores artístico-culturais conquistam espaço na dinâmica de contar a história. Ao contrapor o frontal da Basílica de Nazaré e a escultura de bronze de um indígena de um bairro nobre de Belém e os grafites de artistas locais que retomam a memória indígena em suas produções e visibilizam a pluralidade étnica da cidade, a autora mostra como o grafite visibiliza a presença indígena silenciada no patrimônio oficial.

Ana Paula Alves Ribeiro propõe uma abordagem etnográfica da peça teatral In_Trânsito, encenada pela Cia. Marginal e com direção de Isabel Penoni e Joana Levi, entre 2013 e 2014. Trata-se de uma performance site-specific, partindo da Central do Brasil e estendendo-se por paisagens urbanas fruídas ao longo do percurso ferroviário. O registro da vivência dos múltiplos estímulos propiciados pela experiência, com ênfase nos elementos visuais, permite à autora pensar o Rio de Janeiro em um biênio marcado pelas lutas urbanas manifestadas, entre outras possibilidades, no artivismo (ativismo político executado por meio de ações artísticas).

A sessão de artigos livres também traz trabalhos que abordam o tema da cidade e de suas representações. Propostos para além da análise de suportes imagéticos propriamente ditos, são estudos que igualmente colaboram para ampliar o conhecimento sobre a elaboração de imaginários urbanos e de imagens ideais das cidades em distintos espaços e momentos históricos.

Nesse bojo, o Rio de Janeiro, cidade a partir da qual a Revista Maracanan se comunica com o mundo acadêmico, teve sua gênese marcada por uma disputa de ideais de cidade, o que resultou em tensões em torno da sua dupla fundação, francesa e portuguesa. Apesar da crise que o Estado moderno impôs às individualidades e às cidades-republicanas, a projeção das utopias levadas a frente significava uma resistência do próprio ideal de cidade moderna, de modo que “a noção de utopia qualificava criticamente o desempenho dos homens na cidade projetando-a para fora do espaço real”. [19]

Assim, chegamos ao entendimento de que a cidade, além de recorrentemente aparecer como tema de interesse dos homens de letras desde as fundações das primeiras cidades latino-americanas, significava para eles o lugar primordial – e também inescapável – no qual viveriam a experiência da modernidade, de tal forma que era a partir dessa dupla referência (cidade / modernidade) que eles se constituíram como sujeitos no mundo e, por conseguinte, refletiram sobre a modernidade na cidade. [20] Nesse sentido, como já apontado acima, a experiência moderna nas cidades latino-americanas foi o trampolim para que se produzissem as condições de modernização desses espaços, de suas relações sociais e políticas, bem como de suas representações, de modo que “a modernidade se impôs como parte de uma política deliberada para conduzir à modernização, e nessa política a cidade foi o objeto privilegiado”. [21]

Fabrina Magalhães Pinto apresenta uma leitura da Laudatio de Leonardo Bruni no quattrocento, observando em particular os debates acerca dos ideais republicanos de liberdade, autogoverno e cidadania, neste que é um dos principais elogios da cidade de Florença no período. Entre os séculos XII e XV, Florença, como lócus privilegiado da ação do homem renascentista, experimentou a construção paulatina de um ideal de cidade, fosse no âmbito arquitetônico, político ou das instituições. Nesse momento se conjugaram ambições republicanas com a construção de uma imagem ideal de cidade, onde justiça, racionalidade e liberdade estariam em destaque.

Andréa Cristina de Barros Queiroz nos apresenta o panorama da construção da “República de Ipanema”, como um lugar de vanguarda no Rio de Janeiro, durante os anos 1960. A imagem de cidade maravilhosa fora atualizada por uma boemia-literária a partir das sociabilidades vividas em diferentes espaços de encontro no bairro de Ipanema, como os bares e a praia. Além disso, atribuiu-se ao bairro a condição de polo difusor de uma série de movimentos políticos, sociais e culturais que ocuparam a cena de oposição aos anos de ditadura civil-militar.

A imagem da cidade de Brasília lida como cidade utópica e ícone do desenvolvimentismo brasileiro nos anos 1950 e 1960 ainda se apresenta como a imagem hegemônica da capital federal. No entanto, Lucía Tennina revela-nos a construção de novas miradas sobre a cidade e a partir dela nos saraus das periferias. Espaços contra-hegemônicos, os saraus exploram temas e tensões que transbordam das margens dos enquadramentos apaziguados do Plano Piloto. O cartão postal, expressão da imagem desejável, é a metáfora escolhida para nos falar das pluralidades que não cabem em uma história única.

Hércules da Silva Xavier Ferreira, Luana Campos & Pedro Clerot analisam uma série de grafites e uma escultura que evocam as imagens de três jovens assassinados no Rio de Janeiro em 1998, 2005 e 2017 nas proximidades do túnel Santa Bárbara, que conformaram o que os autores definem como “polígono da violência” ou “circuito da dor”. A criação desses memoriais permite que os transeuntes, moradores ou não da cidade, vejam e sejam afetados pelo conhecimento dessas histórias, ao mesmo tempo em que ressignificam o sofrimento e conformam espaços de resiliência.

Esperamos que a leitura dos artigos deste número da Revista Maracanan contribua para a ampliação de debates e pesquisas interessadas no cruzamento das cidades e suas imagens. Fazemos votos de que o contato com esses textos seja tão instigante e prazeroso para os leitores da revista quanto foi para nós.

Notas

  1. COSTA, Amanda Danelli. Cidade, reformas urbanas e modernidade: o Rio de Janeiro em diálogo com João do Rio e Augusto Malta. 2011. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
  2. PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Imaginar a cidade real: o Cinema Novo e a representação da modernidade urbana carioca (1955-1970). 2013. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ).
  3. ARAUJO, Viviane da Silva. Fragmentos urbanos da modernidade: a fotografia em Buenos Aires e no Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX. 2013. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
  4. SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  5. CRARY, Richard. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
  6. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
  7. GUMBRECHT, Han Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.
  8. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: L&PM, 2013.
  9. CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
  10. JOUSSE, Thierry; PAQUOT, Thierry (dir.). La ville au cinéma: encyclopédie. Paris: Cahiers du Cinéma, 2005; BARILLET, Julie; et al. La ville au cinéma. Arras: Artois Presses Université, 2005; NINEY, François (dir.). Visions urbaines: villes d’Europe a l’ecran. Paris: Éd. Centre Pompidou, 1994; Cités-cinés. Paris: Éd. Ramsay et La Grande Halle; La Villete, 1997. [édité à l’occasion de l’exposition Cités-Cinés]; Espaces et Societes, Paris, L’Harmattan, 86 – “Ville et cinéma”, 1996.
  11. PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Câmera-arma: a representação das funções sociais da fotografia em Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962). Revista Brasileira de História da Mídia, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 151- 158, jul.-dez. 2013.
  12. PINTO, Carlos Eduardo Pinto de. Relatos fantasmas: os filmes históricos cinemanovistas e a política cultural da ditadura civil-militar nos anos 1970. REBECA – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, São Paulo, v. 2, n. 1, jan.-jun. 2013.
  13. COSTA, Amanda Danelli. Augusto Malta e a fotografia da alma dos kiosques cariocas. Acervo, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, v. 32, n. 2, p. 117-132, maio-ago. 2019.
  14. SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1999; ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
  15. SILVA, Luís Octávio da. História urbana: uma revisão da literatura epistemológica em inglês. EURE, Santiago, v. 28, n. 83, maio 2002.
  16. ARGAN, Giulio Carlo. História da arte… Op. cit., p. 75
  17. ROMERO, José Luís. América Latina: as cidades e as ideias. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009; GORELIK, Adrián. Ciudad, modernidad, modernización. Universitas Humanística, Bogotá, Pontificia Universidad Javeriana, n. 56, jun. 2003.
  18. MAUAD, Ana Maria. Sob o signo da imagem: a produção da fotografia e o controle dos códigos de representação social, na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XX. 1990. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ); TURAZZI, Maria Inez. As artes do ofício: fotografia e memória da engenharia no século XIX. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Do indivíduo ao tipo: as imagens da (des)igualdade nos álbuns fotográficos da cidade de São Paulo na década de 1950. 1995. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo; MONTEIRO, Charles. A inscrição da modernidade no espaço urbano de Porto Alegre. 1992. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
  19. RODRIGUES, Antonio Edmilson Martins. América Renascentista- um ensaio: as experiências modernas no espaço da Baía de Guanabara – a dupla fundação da cidade do Rio de Janeiro: entre utopias e ideais. MORUS, Campinas (SP), UNICAMP, v. 3, p. 213-242, 2006.
  20. COSTA, Amanda Danelli. A produção de guias de viagem por intelectuais brasileiros: um ensaio. In: MARAFON, Glaucio; FACCIOLI, Marina; SÁNCHEZ, Meylin Alvarado. Patrimônio, território e turismo no Brasil, Costa Rica e Itália. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2020.
  21. GORELIK, Adrián. Ciudad, modernidad, modernización. Op. cit., p. 13. Tradução nossa. No original: “la modernidad se impuso como parte de una política deliberada para conducir a la modernización, y en esa política la ciudad fue el objeto privilegiado”.

Referências

ARAUJO, Viviane da Silva. Fragmentos urbanos da modernidade: a fotografia em Buenos Aires e no Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX. 2013. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro.

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TURAZZI, Maria Inez. As artes do ofício: fotografia e memória da engenharia no século XIX. 1998. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo.

Amanda Danelli Costa – Professora Adjunta do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Campus Teresópolis. Doutora e Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: amanda.costa@uerj.br Orcid iD: https: / / orcid.org / 0000-0002-6845-4733  Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 1855259803755979

Carlos Eduardo Pinto de Pinto – Professor Adjunto do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuando na graduação e no Programa de Pós-graduação em História. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense; Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: carlos.pinto@uerj.br Orcid iD: https: / / orcid.org / 0000-0001-7448-2565 Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 2703751377441692

Viviane da Silva Araujo – Professora Adjunta do Instituto Latino-Americano de Arte, Cultura e História da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Doutora e Mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: viviane.araujo@unila.edu.br Orcid iD: https: / / orcid.org / 0000-0001-7378-0210 Lattes: http: / / lattes.cnpq.br / 5388549060655237


COSTA, Amanda Danelli; PINTO, Carlos Eduardo Pinto de; ARAUJO, Viviane da Silva. Apresentação. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n.24, 2020. Acessar publicação original [DR]

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A arte antiga no tempo presente | MODOS. Revista de História da Arte | 2020

Conhecer o Brasil significou para o projeto modernista visitar e reconhecer a antiguidade artística nacional, registrar suas manifestações e estudá-las para maior compreensão da nossa constituição histórico-cultural. Foi também uma oportunidade de lançar um olhar menos colonizado e europeizado sobre a arte brasileira, mestiça, nascida dos tantos encontros de culturas e tradições que se realizaram em solo nacional. Essas ações tiveram momentos de maior e menor dinâmica no decorrer da segunda década do século XX. A partir de um olhar retrospectivo, por diversas ocasiões a produção de arte no Brasil se valeu de releituras e reinterpretações de manifestações do passado nacional, buscando ressignificar essa herança e mesmo dar significado às obras contemporâneas. Nos últimos anos, ainda, o avanço dos cursos de pós-graduação fomentou uma retomada das pesquisas que revisaram o conhecimento existente e inovaram com abordagens de bens culturais ainda por identificar e olhares inéditos sobre as manifestações artísticas, incluindo e abrangendo representações marginalizadas pelos binômios centro-periferia, capital-interior pelas discriminações de gênero, de classe social, de raça, cor e etnia. Nesse contexto surgiram expressões da arte contemporânea que se apropriam da arte antiga e lhe conferem outros significados sob a égide do pensamento descolonizador. Leia Mais

História e ciência em tempos de pandemia: reflexões e perspectivas | Temporalidades | 2020

Ciência, História e Sociedades: múltiplas possibilidades

A reflexão sobre História e Ciência em tempos de pandemia, tecida pelas múltiplas perspectivas e análises que compõem o presente dossiê temático da Revista Temporalidades, traz o convite para lançarmos novos olhares sobre a sociedade em que vivemos, seus códigos culturais e o papel da ciência e dos estudos das humanidades na compreensão de momentos de crises mundiais. A própria temporalidade da publicação acompanha um contexto de transformações nas estruturas econômicas, sanitárias e políticas, marcado pelo rápido alastramento de uma pandemia que trouxe como um dos grandes desafios o de se pensar o papel da ciência e do negacionismo como chaves de respostas às demandas sociais. A pandemia do COVID-19 apresenta suas peculiaridades pela complexidade do cená Leia Mais

Explosão feminista: arte/cultura/política e universidade | Heloisa Buarque de Hollanda

Sou uma feminista da terceira onda. Minha militância foi feita na academia, a partir de um desejo enorme de mudar a universidade, de descolonizar a universidade, de usar, ainda que de forma marginal, o enorme capital que a universidade tem. Leia Mais

Imprensa, cultura e circulação de ideias / Estudos Ibero-Americanos / 2020

Este dossiê foi proposto, tendo por norte os objetivos do grupo de pesquisa inscrito no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq): Imprensa e circulação de ideias o papel dos periódicos nos séculos XIX e XX que reúne cerca de 90 pesquisadores nacionais e estrangeiros, distribuídos em várias linhas de estudos, para pensar a imprensa impressa periódica de grande circulação em suas conexões nacionais e internacionais. Proposto pela linha de pesquisa O Brasil e as Américas, o dossiê aqui apresentado reúne artigos que ultrapassam os limites desta última, apresentando temas que envolvem não só a imprensa ibero-americana, mas também aspectos mais gerais do fazer jornal e do fazer jornalismo.

Demos aos artigos selecionados uma organização cronológica, mas que acaba por atender também a uma divisão temática. O artigo de Karen Racine transporta a questão para a década de 1820, em Birghman, na Inglaterra, a nação mais poderosa do mundo e berço da imprensa periódica. Em um contexto tanto de expansão da imprensa como de novas experiências pedagógicas, jovens estudantes, filhos da elite de uma América hispânica revolucionada foram enviados para o estrangeiro, a fim de estudar numa escola progressiva chamada Hazelwood onde produziram um curioso jornal, o Hazelwood Magazine, que alinhado com os objetivos cívicos e pedagógicos da escola, pretendia formar os cidadãos de bom caráter dentro da lógica revolucionária liberal. Do outro lado do mundo, no Brasil, o embate que se verificava entre as elites de um Maranhão ainda divido entre a adesão à independência brasileira e a fidelidade a Portugal, aparece nas páginas do jornal longevo – para os padrões do tempo –, o Conciliador do Maranhão. Exemplo que demonstra como as notícias e o debate constitucional tiveram uma circulação transatlântica que incluía os pontos mais distantes desse imenso país, como o demonstra o artigo de Marcelo Cheche. Na corte do Rio de Janeiro, uma imprensa incipiente, mas de grande atividade agitaria a cena da independência. Um dos personagens de maior destaque foi João Soares Lisboa, redator do Correio do Rio de Janeiro que liderou o movimento pela convocação de uma constituinte brasileira, a partir de um abaixo-assinado apresentado a d. Pedro. Soares Lisboa foi um difusor da cultura política das luzes e, em seu artigo, Paula Caricchio apresenta e discute a forma como as ideias de Civique Gastine foram difundidas no Brasil através as páginas do Correio do Rio de Janeiro.

Dentro do mesmo recorte temporal, século XIX, reunimos os artigos que contemplam o papel da evolução das técnicas de impressão e da especialização das atividades jornalísticas que sucederam aos embates travados na imprensa do Primeiro Reinado. O uso da litografia pela imprensa periódica possibilitou o surgimento e a popularização das revistas ilustradas dando vez a um elenco de caricaturistas e ilustradores especialmente estrangeiros, que tornariam bem mais animada a cena impressa brasileira. Um dos que aqui aportou, em 1875, foi Rafael Bordalo Pinheiro, maior nome da caricatura portuguesa do XIX. Rosangela de Jesus analisa as dificuldades de adaptação de Bordalo Pinheiro em um ambiente já consolidado em que outros artistas já tinham conquistado renome. Com a multiplicação de jornais e revistas ao longo do século XIX, os empregos nas tipografias para profissionais do ramo também se multiplicaram. Exercendo uma profissão que requeria o bom conhecimento da língua, os tipógrafos foram uma das primeiras categorias a se organizar e a publicar seus próprios jornais. Tania de Luca analisa esse processo a partir do estudo de uma das publicações do gênero, a Revista Tipográfica, que circulou no Rio de Janeiro entre 1888 e 1890, revelando a forma como os tipógrafos viam a profissão e como avaliavam o avanço da arte tipográfica no Brasil. O progresso da imprensa no dezenove também levou a uma especialização setorial com destaque para a imprensa esportiva uma das que primeiro se firmou. Sendo o famoso esporte bretão o que viria a se tornar o mais popular no Brasil, Victor Melo apresenta as adaptações que o futebol sofreu, comparando as informações que a imprensa fluminense fornecia sobre a prática daquele esporte na Inglaterra, na França e na Argentina. Em 1898, a realização, em Lisboa, do Congresso Internacional da Imprensa, como nos revela Adelaide Machado, seria um fator de reconhecimento da grande transformação que a imprensa sofrera ao longo do século XIX: o jornalismo tinha se firmado como profissão independente; fora criado um estilo jornalístico de escrita e a própria imprensa se convertera um negócio altamente lucrativo dando origem às grandes empresa jornalísticas.

A segunda parte de nosso dossiê se ocupa do século XX e se divide entre quatro artigos. Os dois primeiros voltados para o tema da imigração em dois contextos bem diferentes. A política de imigração europeia iniciada por d. Pedro II teve grande impulso no final do século XIX. O artigo de Rosane Marcia Neuman nos apresenta curiosa publicação aparecida em Leipzig, na Alemanha, em 1902 e 1903. Era assinada pelo dono de uma empresa de colonização, Hermann Meyer, com o objetivo de fazer propaganda das vantagens de imigrar para o Brasil. Em sua publicação, Meyer reproduz artigos e cartas de e / imigrantes alemães, membros da colônia criada por ele, entre os municípios de Cruz Alta e Palmeira, no Rio Grande do Sul. Uma outra imigração, bem diversa foi a que, depois da Segunda Guerra Mundial, deu origem a uma colônia formada por certa de 2500 pessoas que se estabeleceram no município de Guarapuava, no Paraná, no hoje distrito de Entre Rios. Esse distrito foi fundado, entre março de 1951 e janeiro de 1952, justamente para acolher aqueles imigrantes. Os membros dessa colônia se identificam coletivamente como suábios do Danúbio e eram oriundos de áreas da antiga Iugoslávia, Hungria e Romênia. Marcos Nestor Stein em seu artigo, apresenta e analisa as narrativas desses imigrantes publicadas em 1991 e 1992 no Jornal de Entre Rios em comemoração aos 40 anos de fundação daquele distrito.

O uso da imprensa para a desconstrução de imagem de um político é contemplado com dois artigos que falam sobre Getúlio Vargas em dois períodos momentos distintos. George Seabra escreve sobre o jornal Anhanguera, principal veículo de divulgação do ideário do movimento bandeirante que se apropriava de representações literária dos bandeirantes paulistas com finalidades políticas. O autor apresenta o perfil de alguns de seus membros, analisa a forma como divulgam seu ideário e mostra como o jornal foi recebido por militares e civis. Destaca ainda o papel de Anhanguera na construção da imagem negativa de Getúlio Vargas, em contraste com a do candidato paulista à Presidência da República, Armando de Salles Oliveira, nas eleições de 1937, abortadas pelo golpe do Estado Novo. Outro Getúlio Vargas, eleito presidente em 1951 e já transformado pela história, será o alvo dos ataques do jornal Correio da Manhã. Luiz Carlos dos Passos Martins, mostra em seu artigo como aquele jornal fundando no final do século XIX, seria uma das trincheiras de combate a Vargas e ao próprio regime democrático.

Finalmente, mas não menos importante, é a contribuição que nos traz de Cuba Yaneidys Arencibia Coloma, que nos revela um pouco do que era a imprensa que se fazia na ilha, antes da revolução de Fidel. A autora nos apresenta a Jorge Manach, jornalista, editor e intelectual de grande influência no seu país, destacando o caráter de ensaística cultural que caracterizava seus escritos, seus vínculos com vários projetos editoriais e sua ação decisiva no sentido de que fosse criada a Universidad del Aire. Esse artigo nos ajuda a conhecer o gradual processo de autonomia e de legitimação do pensamento cultural cubano, além de contribuir para nos mostrar formas específicas de sociabilidade intelectual, originadas pela atuação de Manach em seu tempo.

Temos o privilégio de encerrar esse número com uma entrevista com Celia Del Palácio Montiel, importante pesquisadora da história da imprensa mexicana, fundadora da Red de Historiadores de la Prensa en Iberoamérica (1999) e, desde 2018, coordenadora do Grupo Temático Historia de la Comunicación, da Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación (ALAIC) e autora de inúmeras publicações. Nesta entrevista, Célia del Palácio reafirma a importância da imprensa como campo estratégico fundamental para a história e demonstra como esse campo de estudos vem se consolidando na América Latina. A historiadora também destaca o papel dos estudiosos da imprensa no atual contexto mundial: “A los estudiosos de los medios toca analizar a profundidad lo que ocurre, desde la academia, denunciar los ataques a la libertad de expresión y presentar la evidencia en los foros más allá del reducido espacio académico” [3]. Esperamos que este Dossiê seja uma contribuição à essa tarefa.

Notas

3. PALÁCIO, Célia Del. Depoimento de Célia Del Palácio. Destinatários: Marlise Regina Meyrer e Helder V. Gordim da Silveira. [S. l.], 7 abr. 2020. 1 mensagem eletrônica.

Isabel Lustosa – Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, RJ. orcid.org / 0000-0003-2456-6925 E-mail: isabellustosa@gmail.com

Marlise Regina Meyrer – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs). orcid.org / 0000-0002-6446-7799 E-mail: marlise.meyrer@pucrs.b


LUSTOSA, Isabel; MEYRER, Marlise Regina. Apresentação. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, v. 46, n. 2, maio / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores (I) / HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática / 2020

Quando fomos convidados pelo editor chefe da HISTEMAT para a tarefa de organizar o número temático de 2020, sentimos o peso da responsabilidade de executar um bom trabalho dada a qualidade das publicações presentes nesta revista. A HISTEMAT tem se consolidado como um importante periódico da área da História da educação matemática e nesse sentido cumpre importante papel na disciplinarização do campo científico (Hoffmann, Costa & Valle, 2019).

Como resposta ao convite formulado, decidimos então propor o tema Histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores. Ao iniciarmos as divulgações no âmbito internacional e nacional, rapidamente tivemos o acolhimento de pesquisadores comprometendo-se a encaminhar propostas. Isso demonstrou o reconhecimento pelos investigadores do espaço assumido pela HISTEMAT no campo científico da História da educação matemática. Agradecemos aqueles que responderam a esta chamada. Procuramos identificar, dentre os artigos submetidos, os que melhor apresentaram aderência a proposta.

Os artigos apresentados neste número contemplam divulgações de pesquisas e estudos de autores em âmbito internacional e nacional. Como resultado deste processo, apresentamos neste Número Temático doze artigos dos quais quatro foram escritos por pesquisadores estrangeiros e oito foram escritos por pesquisadores brasileiros.

Dos quatro primeiros artigos estrangeiros podemos observar distintas abordagens metodológicas abrangendo temas relacionados a história do saber matemático em espaços de ensino e formação, particularmente em Portugal, Espanha, México e Venezuela. Privilegiou-se a diversidade geográfica não necessariamente vinculados a uma periodização no desenvolvimento de seus estudos ou mesmo no tratamento do nível de ensino.

O primeiro artigo intitulado CONSTRUINDO O CONHECIMENTO PEDAGÓGICO DO CONTEÚDO EM TEMPOS DA MATEMÁTICA MODERNA: as múltiplas facetas da lógica de autoria de José Manuel Matos e Teresa Maria Monteiro intenta caracterizar os significados atribuídos ao termo “lógica” em tempos da reforma da Matemática Moderna. As análises apresentadas se apoiam sobre um corpus de 26 trabalhos produzidos pelos estagiários do Liceu Pedro Nunes em Lisboa entre 1956 e 1968. Esta instituição, no período considerado, era responsável pela formação de professores de matemática do ensino secundário em Portugal.

A MATEMÁTICA PARA ENSEÑAR EN LOS LIBROS DE AURELIO RODRÍGUEZ CHARENTÓN: la numeración y las operaciones é o artigo produzido por Encarna Sánchez-Jiménez e tem como objetivo caracterizar a matemática para ensinar nos livros indicados deste autor. O prof. Charentón está ligado diretamente ao processo de disciplinarização da metodologia da matemática. Essa narrativa se dá nos espaços de formação dos professores normalistas que preparavam futuros professores para ensinar matemática nas escolas primárias espanholas em tempos de difusão da escola nova na década de 1930.

Retrocedendo no tempo, mas mantendo-se na temática dos saberes matemáticos, o terceiro artigo escrito por Alberto Camacho Ríos tem como título EL POSITIVISMO MEXICANO DEBATE SOBRE LOS FUNDAMENTOS DEL CÁLCULO INFINITESIMAL A FINALES DEL SIGLO XIX. Neste trabalho, o autor relata o debate sobre a fundamentação filosófica do cálculo infinitesimal engendrado no Centro de Ensino preparatório de matemática por dois professores que promoveram sua criação em 1867. A Escola Nacional Preparatória é o cenário da discussão presente no texto e esta instituição se desdobra contemporaneamente na Universidade Nacional Autónoma de México.

O quarto artigo, de autoria de Walter O. Beyer K, intitula-se EL CÁLCULO INFINITESIMAL EN LA FORMACIÓN DE INGENIEROS Y SU PROFESORADO EN EL SIGLO XIX VENEZOLANO. Tomando a história de um saber matemático do ensino superior, este texto apresenta resultados de uma investigação sobre o processo que conduziu a incorporação do Cálculo Infinitesimal nos estudos superiores da Venezuela por alguns dos seus docentes na Academia Matemática de Caracas (AMC), na Universidade e Escola de Engenharia. Para este empreendimento o autor se utilizou de outros estudos históricos e bibliográficos, de catálogos comerciais de livros e de bibliotecas, dos informes da AMC, assim como tomou as obras de cálculo infinitesimal que circularam na Venezuela no século XIX.

A partir das contribuições recebidas pelos pesquisadores brasileiros, podemos destacar que no Brasil há, também, um crescente movimento de historiadores da educação matemática preocupados em construir histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores, sob uma variedade de abordagens teóricas, metodológicas e de estilos narrativos, alinhados com certo fazer de uma história dita cultural.

Nessas historiografias, há espaços não apenas para os fatos regulares, mas, ainda, para episódios que fogem ao comum em um dado tempo histórico, sem nenhuma preocupação com grandes sínteses generalistas que tudo explicam independentemente do contexto sociocultural e suas peculiaridades (Vainfas, 1997). Seguem essa ótica as pesquisas nacionais que compõem este número temático.

De fato, tais pesquisas evidenciaram, em primeiro plano, que os saberes matemáticos não foram constituídos no ensino e na formação do professor de forma homogênea, estanque e inflexível nas mais diversas localidades brasileiras em cada tempo histórico-pedagógico (Valente, 2016). Houve, nesse sentido, uma pluralidade de saberes matemáticos, sedimentados por certos ideários de educação e por contextos socioculturais como sendo necessários e importantes para cada uma das dimensões das modalidades de ensino e de formação do professor que ensinaria matemática, em distintos períodos históricos.

Sob o contexto das escolas normais, que formavam o professor que iria lecionar nas escolas primárias brasileiras (Tanuri, 2000), os saberes matemáticos foram analisados em três diferentes cenários.

Nesse sentido, no quinto texto intitulado OS SABERES A ENSINAR DESENHO PARA A ESCOLA NORMAL DO MARANHÃO: um encaminhamento pelas finalidades de ensino, 1905-1934, o autor Marcos Denilson Guimarães direciona sua investigação para as finalidades do saber Desenho na formação dos professores normalistas maranhenses durante a primeira metade do século XX.

Os dois textos seguintes refletem uma política de expansão da educação baiana para o interior voltada para a formação do professor na década de 1950. Assim, ambos os textos foram construídos no mesmo espaço geográfico, isto é, no estado da Bahia e possuem periodizações semelhantes. Contudo, revelam cenários diferentes, tanto em termos de localidades, bem como em relação às categorias administrativas das instituições analisadas.

Com efeito, o texto SABERES RELACIONADOS AO ENSINO DE MATEMÁTICA NO CURSO PEDAGÓGICO DO GINÁSIO DE JEQUIÉ de Marly Gonçalves da Silva e Janice Cassia Lando direciona-se para os saberes matemáticos, mais precisamente, para aqueles presentes nas disciplinas de Matemática, Estatística e Desenho, no período de 1954 a 1966. Tais saberes, faziam parte das práticas pedagógicas dos professores formadores do Curso Pedagógico do Ginásio de Jequié, uma instituição de iniciativa privada criada no município de Jequié.

Já o trabalho de Wesley Ferreira Nery, Larissa Pinca Sarro Gomes e Martha Raíssa Iane Santana da Silva intitulado SABERES RELACIONADOS AO ENSINO DE MATEMÁTICA NO CURSO PEDAGÓGICO DO GINÁSIO DE JEQUIÉ contempla o ensino dos saberes aritméticos na Escola Normal Teodoro Sampaio no período de 1954 a 1963. Trata-se de um estabelecimento público, localizado na cidade de Santo Amaro, outra cidade do interior da Bahia.

O oitavo artigo, A MATEMÁTICA PROFISSIONAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES, escrito por Nara Vilma Lima Pinheiro, também aborda os saberes profissionais em um espaço específico de formação do professor que iria ensinar matemática em escolas primárias. No entanto, sua análise sobre a constituição e sistematização de uma matemática profissional própria na formação do docente foi circunscrita ao Instituto de Educação do Rio de Janeiro, criado na década de 1930. Esse Instituto, diferentemente ao modelo de formação que predominava até aquela conjuntura nas escolas normais, trouxe uma estruturação fundamentada nos saberes advindos das ciências da educação a partir de uma preocupação com o desenvolvimento infantil.

De outra parte, os autores Jonathan Machado Domingues e Denise Medina de Almeida França, no nono texto deste número temático da HISTEMAT, intitulado DIDÁTICA ESPECIAL DA MATEMÁTICA: em busca dos saberes da profissão docente fazem, do mesmo modo, uma investigação dos saberes da profissão docente, mas debruçados na obra de Manuel Jairo Bezerra, intitulada “Didática Especial da Matemática”, publicada em 1958.

Para além dos saberes matemáticos na formação do professor, essa edição temática, ainda, contemplou trabalhos que tiveram um enredo construídos em torno dos saberes matemáticos presentes em duas modalidades de ensino: primário e industrial.

Na ambiência do ensino primário, Elenice de Souza Londron Zuin conduz a análise de seu artigo FRAÇÕES NAS ESCOLAS PRIMÁRIAS DE SANTA CATARINA: um olhar sobre planos de aula da década de 1940 para o ensino de frações a partir de planos de aula de aritmética para o 3º e 4º anos, elaborados por docentes de escolas do Estado de Santa Catarina, nos anos de 1941 e 1942.

Outro estudo, nessa mesma modalidade de ensino, foi realizado por Nícolas Giovani da Rosa e Elisabete Zardo Búrigo. Esses autores no texto APRENDER E DECORAR: aulas de matemática da Escola Evangélica Duque de Caxias nos anos 1960 realizam uma investigação sobre as aulas de matemática ministradas na Escola Evangélica Duque de Caxias, Rio Grande do Sul, nos anos de 1960, por meio de entrevistas com ex-alunas e uma professora dessa Escola e, ainda, fazendo uso de um Relatório de Estágio escrito no ano de 1967.

Por último, finalizando o rol de artigos deste número temático da HISTEMAT tem-se o texto de Oscar Silva Neto e David Antonio da Costa intitulado SABERES MATEMÁTICOS NO ENSINO INDUSTRIAL: o caso dos números complexos e incomplexos, produzido na esfera do ensino industrial brasileiro, criado mediante promulgação do Decreto-Lei nº 4073, de 30 de janeiro de 1942. Em tal texto, os autores analisam o ensino dos números complexos e incomplexos (não entendidos como números imaginários) nos cursos industriais básicos brasileiros por meio da obra “Caderno de Matemática”, de Arlindo Clemente, publicada no ano de 1955.

Assim, a partir desse universo de 12 pesquisas, foi possível perceber que os saberes matemáticos passaram por processos de transformações a depender dos objetivos educacionais e do contexto sociocultural que vigoravam em cada tempo histórico, nas mais diversas localidades internacional e nacional. Sob essa ótica, ratifica-se, portanto, uma compreensão problematizadora acerca da pluralidade de histórias de uma constituição de saberes matemáticos no ensino e na formação de professores.

Boa leitura!

Referências

HOFFMANN, Y. T.; Costa, D. A. & Valle, I. R. (2019). Transversalidade entre Bourdieu e Fleck: campo e produção do conhecimento científico. Educar em Revista, (78),283-301. https: / / www.redalyc.org / articulo.oa?id=1550 / 155062213016

tanuri, L. M. (2000, maio / ago.). História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação, (14), 61-88. https: / / www.scielo.br / pdf / rbedu / n14 / n14a05

VAINFAS, R. (1997). História das mentalidades e história cultural. In: Cardoso, C. F.; Vainfas, R. (Org.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, p. 127-162.

VALENTE, W. R. (2016). Sobre a investigação dos saberes profissionais do professor de matemática: algumas reflexões para a pesquisa. Caminhos da Educação Matemática em Revista (online), 6 (1), 1-13. https: / / aplicacoes.ifs.edu.br / periodicos / index.php / caminhos_da_educacao_matematica / iss ue / view / 16

David Antonio da Costa

Eliene Barbosa Lima

Os organizadores,


COSTA, David Antonio da; LIMA, Eliene Barbosa. Editorial. HISTEMAT – Revista de História da Educação Matemática. São Paulo, v.6, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Foucault, a genealogia, a história da educação / Cadernos de História da Educação / 2020

Nietzsche, a genealogia, a história é um dos textos mais célebres de Michel Foucault. Por meio de uma espécie de homenagem e, ao mesmo tempo, uma apropriação teórico-prática, o pensador francês tributa a Nietzsche seu empreendimento de uma história genealógica, no qual passam a ocupar lugar – a par do que nomeia sentido histórico ou história efetiva – a inconstância e a provisoriedade dos acontecimentos, em oposição tanto à restituição essencial das coisas, quanto ao reencontro de uma identidade perpétua ou, ainda, ao reconhecimento da unidade universal do sujeito antropológico.

A proposição deste dossiê Foucault, a genealogia, a história da educação busca, em alusão direta ao texto de Foucault, congregar abordagens e reflexões em íntima articulação à análise histórico-genealógica proposta por Foucault, de maneira a focalizar criticamente os jogos veridictivos envolvidos na investigação educacional contemporânea.

Margareth Rago – uma das pesquisadoras brasileiras pioneiras no que se refere não apenas à utilização do referencial teórico-prático da genealogia de Foucault, mas também ao enfrentamento do debate historiográfico, deslocando a análise dos fatos e dos acontecimentos para os fundamentos epistemológicos do discurso com vistas à compreensão dos campos de relações de força em que os jogos de poder se constituem – é a responsável pelo texto que abre o dossiê, o qual revisita, 25 anos depois, o texto As Marcas da Pantera: Michel Foucault na Historiografia Brasileira [1] , também de sua autoria. Por se tratar de uma das primeiras iniciativas desse tipo de discussão no Brasil, o referido texto tornou-se uma leitura obrigatória para estudiosos e pesquisadores que buscam fazer apropriações das formulações genealógicas nas diversas ramificações de campos da História e em outros campos afins.

Desse modo, desdobrando as discussões e ampliando as reflexões a partir de escritos e ditos de Foucault que foram publicados nos últimos anos, Rago atualiza, de maneira bastante abrangente, a análise acerca do conceito de poder nos deslocamentos operados por Foucault: da disciplina, do biopoder e da biopolítica para o governo de si e dos outros na condução das condutas, a partir do que aponta para os modos de subjetivação e para as contracondutas, permitindo a percepção de outros modos pelos quais as práticas da liberdade são experimentadas em face da governamentalidade cristã ou neoliberal. Por isso, As marcas da pantera, 25 anos depois…, ao abrir o dossiê, funciona como uma espécie de patamar a partir do qual são lançadas as reflexões dos outros artigos que o compõem, buscando cumprir com seu propósito de reunir um conjunto de discussões capazes de contribuir para o debate sobre a genealogia de Foucault na História da Educação.

O texto seguinte, A genealogia de Michel Foucault e a história como diagnóstico do presente: elementos para a História da Educação, tomando como base o próprio texto de Foucault que inspira este dossiê, busca desenvolver questões relativas ao projeto de uma história genealógica. A partir disso, traça uma discussão sobre a articulação de marcos teóricos da genealogia foucaultiana com a efetivação da História da Educação, desenvolvendo um argumento que aponta para a pertinência do uso do referencial genealógico no campo da história e da historiografia da educação. Considera, por fim, que a incorporação de noções genealógicas na pesquisa e na produção do conhecimento em História da Educação pode trazer ampliações teórico-metodológicas que, certamente, representam uma contribuição para o delineamento de outros contornos no que diz respeito à compreensão das formas de organização e funcionamento da educação em nossa sociedade, assim como ao entendimento da genealogia como ferramenta histórico-crítica da atualidade, naquilo que Foucault propõe como ontologia do presente, como interrogação da verdade sobre seus efeitos de poder e do poder sobre os discursos de verdade, especialmente no campo educacional.

Inés Dussel com o objetivo realizar uma análise tanto das perspectivas historiográficas como de contribuições para uma compreensão mais abrangente da emergência e dos efeitos da instituição escolar, associando Foucault com o autor pós-foucaultiano Ian Hunter, propõe em seu artigo uma releitura das posições de Foucault sobre a história da escola e uma abordagem do livro Repensando a escola. Subjetividade, Burocracia, Crítica, de Ian Hunter. Assim, a autora opera uma breve reconstituição da história da escolarização na abordagem foucaultiana, assim como apresenta a sua leitura do texto de Ian Hunter, o qual hipotetiza sobre o surgimento da instituição escolar. Em seguida, são apresentados alguns debates suscitados por essa obra entre historiadores e filósofos educacionais. Por fim, a autora propõe perspectivas de linhas de trabalho para a contunuidade do aprofundamento do diálogo com o empreendimento genealógico de Foucault a partir da história da escolarização.

Sob o argumento de que “Uma história da educação em chave genealógica é uma genealogia das práticas pedagógicas”, assim como o de que “uma genealogia das práticas pedagógicas modernas é, finalmente, uma história da modernidade em chave genealógica”, Carlos Ernesto Noguera-Ramírez e Dora Lilia Marín-Díaz apresentam sua contribuição para o dossiê com o propósito de discutir o conceito de “educacionalização do mundo” estabelecido por Tröhler, segundo o qual a modernidade corresponderia à educacionalização do mundo. Reconhecem, assim, a importância e o potência do conceito de educacionalização tanto para a História da Educação quanto para a Pedagogia como um todo. O texto dos dois pesquisadores objetiva realizar a descrição da origem e da emergência de matrizes normativas da modernidade que sustentam o que Tröhler denomina “virada educacional”; esta relida à luz de ferramentas arqueológicas estabelecidas por Foucault. Como principal resultado da investida, os autores afirmam, dierentemente de Tröhler, que o surgimento da educação do mundo não não se deu entre os séculos XVIII e XIX, mas entre os séculos XVI e XVII, no marco daquilo que Foucault cunhou como “era da governamentalidade”. Desse modo, Noguera-Ramírez e Marín-Díaz realizam um exercício histórico-filosófico por meio do qual evidenciam uma perspectiva valiosa para a reflexão sobre a educação e a pedagogia, bem como para a análise das práticas pedagógicas, segundo a problemática posta pela governamentalidade e pelo ascetismo.

Por sua vez, José G. Gondra realiza uma crítica genealógica ao pôr em questão as relações de poder que atravessam as narrativas discursivas. Dessa forma, ele explora alguns princípios narrativos que constituem o manual Noções de História da Educação, de autoria do polígrafo, Afrânio Peixoto, reeditado sucessivamente nos anos de 1933, 1936 e 1942, o qual se apresenta como resultado dos três anos (1932-1934) que o autor se dedicou ao ensino de História da Educação no Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Na narrativa construída no manual, Peixoto lega para as futuras professoras o que chama de “história da civilização”, uma espécie de capital cultural que ele considerava fundamental para a compreensão do passado mais remoto e outros presentes, definindo assim uma condição para a obtenção de uma maior profissionalização da docência. Gondra investe no trabalho do registro de algo como uma origem da escola, uma fundação original que operaria com marcos fundamentais, cujo propósito seria a comprovação da substância e das funções desse acontecimento primordial. Assim, o exercício realizado busca desfazer a imobilidade de uma identidade e funcionamento da escola, perpetuando uma essência e suspendendo o tempo. Busca, pois, pensar as opções e operações historiográficas, assim como o movimento pedagógico ao qual o manual de Peixoto se conecta e que, por sua vez, também ajuda a legitimar e reproduzir. Gondra conclui que as tantas (des)continuidades que atravessam e regulam o nosso tempo presente e de modos bastante diversos são possíveis de serem observadas tanto na sociedade assim como nas escolas e, especificamente, na formação de professores, o que pode indicar que aquilo que o passado ensina, por intermédio de noções de história da educação, é o traçado de itinerários nada previsíveis e fora de qualquer teleologia predestinada.

O último artigo do dossiê, intitulado Foucault e a História da Educação brasileira: dos usos possíveis do procedimento genealógico, tendo como horizonte o procedimento investigativo foucaultiano delineado no texto Nietzsche, a genealogia, a história, propõe-se a pôr em perspectiva as repercussões do legado de Michel Foucault, no que diz respeito à utilização de ferramentas genealógicas na produção bibliográfica em História da Educação no período de 1997 a 2017, nos três periódicos brasileiros voltados especificamente ao campo histórico-educacional. A análise recaiu sobre 42 artigos selecionados, de maneira a dar a ver movimentos simultâneos, numa análise de conjunto. Na dissecação do corpus analítico escolhido, não se pretendeu realizar nenhuma comparação entre o que Foucault realizou e os traçados investigativos dos historiadores da educação brasileiros, de sorte que foi realçada a potência da circulação de novas narrativas históricas, por meio da qual desponta a reinvenção de ferramentas já tantas vezes utilizadas e reutilizadas. Desse modo, as conclusões voltam-se para as condições de tempo, lugar e modos que cercam os exercícios de investigação histórica que buscam inspiração teórico-prática em Michel Foucault.

Por fim, é preciso sublinhar que o presente dossiê reúne um conjunto de textos que apresentem repercussões possíveis da questão genealógica no campo da história da educação: as contingências das formas educacionais; os deslocamentos da organização e do funcionamento do aparelho escolar; as estratégias de governamento dos sistemas de ensino, assim como as concepções de conhecimento que sustentam os fazeres pedagógicos e, em última instância, aquelas próprias da História da Educação. Articulando a análise genealógica ao campo específico da história da educação, a intenção é, de algum modo, dispor chaves outras de compreensão do presente educacional e suas interpelações tantas.

Nota

1. Disponível em: https: / / periodicos.sbu.unicamp.br / ojs / index.php / resgate / article / view / 8647987 . Acesso em 06 abr. 2020.

Haroldo de Resende – Universidade Federal de Uberlândia (Brasil) https: / / orcid.org / 0000-0001-9379-111X http: / / lattes.cnpq.br / 5363115483274501 E-mail: haroldoderesende@ufu.br

Julio Groppa Aquino – Universidade de São Paulo (Brasil) https: / / orcid.org / 0000-0002-7912-9303 http: / / lattes.cnpq.br / 1124623998211027 E-mail: groppaq@usp.br


RESENDE, Haroldo de; AQUINO, Julio Groppa. Apresentação. Cadernos de História da Educação. Uberlândia, v. 19, n.2, maio / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

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A historiografia sobre as Missões Jesuíticas: a escrita e o tempo / Anos 90 / 2020

O número que aqui apresentamos aos leitores da Revista Anos 90 é composto por sete trabalhos relativos ao Dossiê A Historiografia sobre as Missões Jesuíticas: a Escrita e o Tempo, além de dois artigos livres. Todos eles se debruçam sobre um tema cuja trajetória é tão extensa quanto volumosa: a atividade missionária da Companhia de Jesus, e a produção historiográfica a respeito dela.

Podemos dizer que a ação dos inacianos em relação às populações dos territórios não europeus, para onde eles se expandiram desde os inícios do século XVI, foi uma das marcas mais significativas da primeira globalização (ALMEIDA, 2010; ARANHA, 1998; CARNEIRO DA CUNHA, 1998; GRUZINSKI, 2004). Nos territórios do Novo Mundo, a nova Modernidade buscou ser, como afirmou Bartomeu Meliá (MELÍA, 2006), “sem limites”, uma vez que visava a agir sobre os colonos europeus, assim como sobre as populações ameríndias, trabalhando para uma transformação que se processava em todos níveis, na sociedade e na economia, na vida familiar e material, no espiritual e no simbólico. As suas “missões”, especialmente aquelas que tinham por método a reducción a pueblos, foram uma singular “experiência de contato”, cuja complexidade e cujos desdobramentos gerou perene interesse de especialistas de variados campos. De uma perspectiva geral, aquilo que os jesuítas definiram como “missão por redução” pode ser entendida, assim, como um “fato social total”, não isenta de tensões.

No Brasil, os estudos sobre os vários espaços missionários em que os jesuítas atuaram, conheceram uma significativa renovação desde os finais do século XX, quando foi possível superar, a partir de uma produção acadêmica gestada no âmbito dos cursos de pós-graduação, em franca expansão na época, os tradicionais enfoques de elogio ou detratação. Na mesma medida, produziu-se, desde então, uma fecunda ampliação dos temas e das abordagens emprestadas às missões, acompanhando a própria trajetória do campo da história naquele momento. Perspectivas que dirigiam seu interesse a questões do campo da Antropologia relativas ao cultural e ao simbólico fecundaram, assim, as tradicionais histórias sobre esta temática.

Mais recentemente, a este movimento associou-se outro igualmente renovador, capaz de produzir uma mudança substancial na perspectiva pela qual se analisa o tema, dizendo respeito à recuperação, para as populações não europeias, de um lugar ativo na configuração dos elementos simbólicos e materiais que constituíram essa história. Tratou-se, fundamentalmente, no caso das Américas, como disse Celestino de Almeida (MOSTACCIO, 2010), de trazer as populações indígenas, dos “bastidores para o palco”.

A partir dos anos 1990, a história dos índios, negligenciada pelos historiadores brasileiros, desenvolveu-se produtivamente no campo da Antropologia, em que surgiram as primeiras vozes críticas, questionando as velhas concepções que lhes reservavam o lugar de vítimas passivas dos processos de conquista e colonização. Antropólogos e historiadores como Manuela Carneiro da Cunha (ROBERTSON, 1997) e John Manuel Monteiro (ROBERTSON, 1997) representaram as primeiras tentativas de pensar neles como sujeitos históricos. Ambos foram as principais forças motrizes da história dos índios em contato com as sociedades coloniais e pós-coloniais, transformando-os em agentes históricos.

O diálogo com a Antropologia e a fecundidade das abordagens culturais e etno- históricas foram essenciais na reconfiguração do entendimento sobre a dinâmica indígena da missão. Isso em termos de estratégias, lógicas e práticas locais, associadas a uma adoção de certos dispositivos de poder – como a escrita – para fins diferentes daqueles do colonialismo.

Seguindo estes pressupostos teórico-metodológicos, foi possível, dessa maneira, superar a visão clássica que percebia as missões como resultado do talento organizador dos jesuítas, considerando os indígenas como sujeitos passivos e submissos a ele. Outro elemento de “densificação” das histórias que se passaram a produzir, residiu em aportar uma compreensão mais complexa dos espaços missionários, no sentido de superar visões idílicas de sociedades utópicas que puderam viver um “cristianismo feliz”, tal como na definição de Ludovico Muratori (1743)¹.

Trabalhos recentes, partindo de uma perspectiva mais complexa, concebem as missões como espaços ao mesmo tempo religiosos, culturais e políticos, bem como de interações e negociações, individuais e coletivas, em que se transformam tradições, fundamentalmente nativas, mas nas quais, igualmente, sob certos aspectos, as europeias necessitaram ser adaptadas aos contextos locais. Se, por um lado, a análise “global” nos permite situar missões no contexto das políticas de evangelização da Companhia de Jesus no Brasil, por outro lado, a perspectiva “local” integrará, modificará e / ou alterará a implementação de estratégias etnomissionais à escala mundial, bem como envolverá todos os aspectos da colonização europeia. Uma tensão entre agência política, cultura local e redes globais que alguns teóricos definiram como “glocal”².

Finalmente, podemos mencionar a importância de estudos empenhados em superar os prejuízos analíticos comportados por visões compartimentadas do espaço missionário, construídas pelas historiografias nacionais decimonônicas. A elas se opõem, com evidente avanço interpretativo, perspectivas que problematizam a noção de fronteira e que apontam para a ideia de “região”. Podemos, assim, concluir que os estudos contemporâneos sobre os espaços missionários são abertos e interdisciplinares, apontando para a importância de avaliações historiográficas que hoje em dia retomam e reinterpretam criticamente as fontes que permitem estudá-los.

Ao trabalho missionário jesuíta, que se estendeu desde o século XVI, para amplas porções do planeta, está associada uma notável produção historiográfica. Trata-se, portanto, de um tema que tem condensado fortemente, sob muitos aspectos, o interesse de historiadores de diferentes épocas e matrizes historiográficas.

Podemos dizer, efetivamente, que, no esforço de promover e “fazer memória” da sua atuação, as primeiras narrativas das missões foram construídas pelos próprios jesuítas coetâneos a elas, muitas vezes como exercício de propaganda das suas atividades apostólicas. Entretanto, há́ elementos para afirmarmos que o estudo dos espaços missionários permanece revestido de importância e densidade analítica no momento presente.

Ele é, assim, um bom ponto de partida para pensarmos, em vários sentidos, a nossa Modernidade. Entre os mais importantes ou evidentes desses sentidos, podemos apontar a atenção para as respostas locais (ou culturais) à expansão europeia iniciada junto com a Idade Moderna. É de fato possível, a partir daí, instalar-se uma profícua discussão sobre os processos de contato cultural e seus desdobramentos, tema absolutamente contemporâneo. Assim sendo, ao remetermo-nos inapelavelmente às questões das alteridades, das culturas (e, por conseguinte, do relativismo cultural), de seus trânsitos, empréstimos e apropriações, compreendemos que a importância dos espaços missionários jesuíticos justifica o número da Revista Anos 90 aqui apresentado.

Nosso Dossiê é uma amostra da variedade de reflexões que podem ser acionadas a partir da temática sobre a qual discorremos anteriormente, e de como tais problemáticas renovam uma historiografia que já é multissecular. Desejamos que a leitura seja proveitosa e estimuladora de novos trabalhos.

Notas

  1. Erudito italiano, Ludovico Antônio Muratori (1672-1750) ficou particularmente conhecido por meio da obra Cristianesimo felice nelle missioni de’ padri della Compagnia di Gesù nel Paraguay, publicada em Veneza, em 1743. A obra, conhecida como O Cristianismo Feliz defende o trabalho dos jesuítas nas Missões do Paraguai, quando elas eram fortemente criticadas.
  2. Como consequência da tese de doutoramento na Universidade de Chicago (1985), Negros da Terra. Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo (1994), Monteiro deu visibilidade ao protagonismo dos índios na construção da sociedade colonial da capitania paulista, mostrando que as dinâmicas de conquista e colonização dependiam, em grande medida, das populações indígenas, cujas ações se baseavam nas dinâmicas de suas próprias sociedades.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.

ARANHA, Paolo. “Glocal” Conflicts: Missionary Controversies on the Coromandel Coast between the XVII and XVIII centuries. In: CATTO, Michela; MONGINI, Guido; CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, [1992] 1998.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introdução a uma história indígena. In: História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 7-15.

GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde. Histoire d’une mondialisation. Paris: La Martinière, 2004.

MELIÁ, Bartomeu. As missões jesuíticas nos sete povos das missões. IHU on-line, setembro de 2006. Disponível em: http: / / www.ihuonline.unisinos.br / artigo / 407-as-missoes-jesuiticas-nos-sete-povos-das-missoes. Acesso em: 20 ago. 2020.

MOSTACCIO, Silvia (eds.). Evangelizzazione e globalizzazione. Le missioni gesuitiche nell’età moderna tra storia e storiografia, Itália: Società editrice Dante Alighieri, 2010. p. 79-83.

ROBERTSON, Roland. Glocalization: Time-Space and Homogeneity-Heterogeneity. In: FEATHERSTONE, Mike; LASH, Scot; ROBERTSON, Roland (eds.). Global Modernities. Londres: Thousand Oaks; Nova Delhi: Sage Publications, 1997. p. 25-44.

Alex Coello de la Rosa – Professor da Universidad Pompeu Fabra, Barcelona, Catalunha, Espanha. E-mail: alex.coello@upf.edu Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0001-5079-6180

Giovani José da Silva – Professor da Universidade Federal do Amapá, Macapá, Brasil. E-mail: giovanijsilva@hotmail.com Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0003-4906-9300

Maria Cristina Bohn Martins – Professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil. E-mail: mcris@unisinos.br Orcid: https: / / orcid.org / 0000-0001-7835-9062


ROSA, Alex Coello de la; SILVA, Giovani José da; MARTINS, Maria Cristina Bohn. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 27, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Memoria Americana – Cuadernos de Etnohistoria. Buenos Aires, v.28, n.1, 2020.

 

Convocatoria abierta: 8 artículos y 1 reseña.

Presentación

Reseñas

Publicado: 2020-06-01

Los “indios de la Pampa” a través de la mirada misionera: un relato fotográfico del “dilatado yermo pampeano” | Ana María Teresa Rodríguez

La presente obra acerca a sus lectores un álbum fotográfico inédito hasta el momento. El mismo se encuentra en el Archivo Histórico Salesiano Argentina Sur (AHS-ARS) sede CABA, bajo el título de “La Pampa indios”/ Misiones de La Pampa” y cuenta con 402 imágenes exhibidas en 99 páginas. Sus compiladoras, Ana María T. Rodríguez y Rocío Guadalupe Sánchez, son docentes e investigadoras del Instituto de Estudios Socio-Históricos – Facultad de Ciencias Humanas, Universidad Nacional de La Pampa (UNLPam) y del Instituto de Estudios Históricos Sociales de La Pampa -CONICETUNLPam. A través de este trabajo, buscan recuperar y socializar fuentes que aportan al estudio de la historia regional.

El libro cuenta con una introducción realizada por las compiladoras, cuatro capítulos que contextualizan el material fotográfico y, por último, el álbum completo. En la introducción, las autoras exponen sus sospechas de que aquellas imágenes probablemente fueron tomadas en 1924, durante una excursión a las márgenes del río Salado realizada por los salesianos Juan Farinati, José Durando y Enrique Pozzoli -quien además habría sido el fotógrafo. La hipótesis está basada en el estudio de fuentes bibliográficas realizadas por miembros de la congregación, en las que se alude a dicho viaje relacionado a los 50 años de la Congregación Salesiana en la Argentina. Éste se orientó a misionar, recolectar información y sacar fotografías para ser enviadas a la Exposición Misionera de Turín. Leia Mais

Freedom’s Price: Serfdom, subjection and reform in Prussia, 1648-1848 | Sean Eddie

Poucos momentos na história do Ocidente foram tão profundos quanto as reformas agrárias dos séculos XVIII e XIX. Surgidas no contexto europeu pré-revolucionário e parte dos processos de modernização da sociedade e quebra dos estamentos tradicionais, as reformas agrárias ultrapassaram fronteiras e se tornaram elementos de construção dos estados nacionais e de novas configurações sociais em diferentes partes do globo. Mesmo sociedades como a brasileira, que se estruturava em torno do escravismo e latifúndio exportador, ou seja, detentora de realidades agrárias e sociais muito distintas daquelas da Europa central, não escaparam de tal desenvolvimento (Carvalho, 2003, p. 350-351) iii. O distante Japão, a “Prússia da Ásia”, a partir do fim do Xogunato e ascensão Meiji Tenno igualmente elaborou suas reformas agrárias a partir do modelo do reino dos Hohenzollern (Chung, 2018, p. 78) iv. No século XX, reformas no campo recebem o impulso das revoluções socialistas; alterações no status quo das estruturas do mundo agrícola foram, geralmente, prioridade para governos revolucionários no sentido de mudanças sociais profundas (Filippi, 2005, p. 27) v. De fato, o fenômeno descrito pelo historiador britânico Sean Eddie, embora confinado em sua análise na via prussiana das reformas agrárias, insere-se numa perspectiva temática de possibilidades globais, que extrapolam o século por ele descrito. Leia Mais

Memórias, Narrativas e Patrimônios | Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)Biográfica | 2020

A vida humana e suas trajetórias, desde algum tempo, passaram a ter, nas práticas museológicas e de cunho patrimonial, uma centralidade e importância significativas, pois somente ao se considerar as experiências individuais e coletivas é que os atos de preservação se justificam. Tal perspectiva impõe-se, pois, se por um lado, a trajetória é marcada por conexões com territorialidades e materialidades, por outro, toda a produção de cultura material, matéria-prima das ações de preservação, não pode ser entendida afastada da vida humana e suas aventuras.

O dossiê Memórias, Narrativas e Patrimônios reúne 16 artigos que provocam e cruzam discussões sobre práticas patrimoniais, experiências e memórias de modos diversos como os sujeitos vivem e constroem patrimônios e potencializam ações dos agentes envolvidos nesses processos. Leia Mais

A História Antiga entre o local e o global: integração, conflito / Revista Brasileira de História / 2020

História Antiga: Diferentes Perspectivas

O presente dossiê surgiu em atendimento a uma chamada dos editores da Revista Brasileira de História e foi operacionalizado mediante uma rede de trabalho muito mais ampla do que aquela visível pelos nomes de seus organizadores. Desse modo, inicialmente, gostaríamos de agradecer aos colegas da coordenação do Grupo de Trabalho em História Antiga da Associação Nacional de História (GTHA-Anpuh), professores Alex Degan e Fábio Morales, ambos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que contribuíram para o sucesso dessa iniciativa ao lado do professor Dominique Santos, da Universidade de Blumenau (Furb), também integrante da Coordenação Nacional do GTHA-Anpuh e um dos editores do dossiê. O agradecimento é extensivo à comunidade de Antiquistas brasileiros, que atuou de forma intensa na divulgação deste dossiê tanto no Brasil quanto no exterior. A existência de diversos núcleos, laboratórios e grupos de pesquisa espalhados pelo Brasil [1] e com sólidas redes de colaboração internacional é a base sólida que permite que os estudos sobre a Antiguidade e suas recepções tenham se consolidado cada vez mais, a ponto de podermos construir um dossiê como este na Revista Brasileira de História. Essa ampla rede de cooperação representada pelas diversas ações regulares do GTHA-Anpuh [2] permitiu que o dossiê, apesar de ter sido lançado no final do ano e com prazo relativamente curto, encontrasse excelente acolhida. Desde o início, a contribuição da equipe da Revista Brasileira de História, muito particularmente do editor, professor Valdei Lopes de Araujo (Ufop), e do secretário, Marcus Vinicius Correia Biaggi (Anpuh), foi diligente, próxima e indispensável. As antiquistas que compõem o Conselho Editorial da Revista Brasileira de História, professoras Helena Papa (Unimontes) e Katia Pozzer (UFRGS), foram muito presentes, apoiando nosso trabalho em diversos momentos. Expressamos nossa gratidão!

Foram recebidas 15 excelentes contribuições de autores brasileiros e estrangeiros para a nossa chamada. Nesse ponto do processo, ganhou destaque e merece nosso mais efusivo agradecimento o trabalho dos pareceristas que se dedicaram não apenas a avaliar, mas também a qualificar com o máximo rigor e critério cada uma das propostas. A tarefa não era simples: havia 15 propostas muito qualificadas e só poderíamos publicar nove delas, por conta das normas do periódico. No total, trabalhamos com 36 pareceristas sediados no Brasil e no exterior para construirmos um quadro que permitiu a escolha cuidadosa dos artigos aqui apresentados. Essa seleção é ilustrativa, ainda que não seja exaustiva, da diversidade das pesquisas feitas pela nossa comunidade. Em que pese essa diversidade, há ainda alguma unidade que reflete o eixo proposto para o edital desde sua chamada inicial, que se expressava nestes termos:

Os desdobramentos dos vários processos de globalização e seus conflitos ao longo da história colocam em debate qual o papel das dinâmicas locais e de suas articulações ou interconexões em esfera global. Tal pauta assume relevância especial no tempo presente, em que a globalização apresenta paradoxalmente claros contornos de violenta exclusão. As pesquisas nesse campo para a Antiguidade são tão importantes que têm levado a uma redefinição do campo, como se vê em obras como Corrupting Sea, de Peregrine Horden e Nicholas Purcell (Horden; Purcell, 2000), e História Antiga, de Norberto Luiz Guarinello (Guarinello, 2013). As diversas abordagens teóricas, pensadas através dos processos de helenização, romanização, cristianização ou mediterranização, e também das críticas a seus limites, expressos sobretudo nas abordagens pós-coloniais e decoloniais, expressam a diversidade de estudos que temos produzido e debatido. Esse dossiê pretende servir como momento para um balanço e avaliação de possibilidades futuras de investigação.

Esses estudos sobre a Antiguidade que temos produzido e debatido no âmbito do GTHA-Anpuh, contudo, não se limitam à pesquisa sobre as sociedades antigas. Parte fundamental de nossas reflexões se volta para as tradições e representações que se produziram tendo como base fundamental a Antiguidade (tanto tradições intelectuais acadêmicas quanto culturais, expressas em linguagens tão diversas quanto as óperas e as séries em streaming, chegando aos jogos tradicionais ou de computador e narrativas populares e jornalísticas). Os estudos sobre os usos dos passados perpassam os vários momentos da existência de sociedades diversas ao longo do tempo. Isso ocorre com a nossa sociedade e com muitas e muitas outras que tomaram e tomam as várias Antiguidades como referência para se pensar a si mesmas (e é decisivo refletir criticamente sobre essas identidades construídas arbitrariamente por diferentes sociedades para si mesmas). O estudo da Antiguidade, sabemos, não pode ser pensado sem uma reflexão sistemática e aprofundada sobre os usos do passado, que são centrais para o estudo e releitura crítica desses passados (tanto os “antigos” quanto os que tomaram a esses “antigos” como elementos fundamentais para a construção de sua contemporaneidade, como apontam os estudos de François Hartog, na França, Francisco Murari e Pedro Paulo Funari, no Brasil, e José Antônio Dabdab Trabulsi com sua produção franco-brasileira).

Nesse campo dos usos do passado, ainda, assume relevância o ensino da História Antiga nos diversos níveis. O GTHA-Anpuh teve essa pauta no centro de seus debates desde sua criação (Silva, 2001), mas conheceu forte impulso a partir do debate sobre o lugar do Ensino da História com a reforma do Ensino Médio e a criação da BNCC no Brasil, além das mudanças que têm ocorrido na forma de se pensar o Ensino no mundo todo. Isso tem alimentado a discussão sobre esferas específicas no campo dos estudos sobre os usos do passado no que se refere especialmente à Antiguidade com a intensificação dos debates e o aprofundamento de práticas voltadas também para as atividades de Extensão. Esse movimento é percebido tanto pelo crescimento dos trabalhos apresentados nos encontros do GTHA-Anpuh quanto pelo aumento das publicações em nossos periódicos especializados.[3]

Em síntese, como expressa o título, este dossiê se volta à reflexão dos debates atuais na e sobre a História Antiga que têm sido produzidos no Brasil e no mundo, face aos dilemas e conflitos produzidos pela globalização e seus efeitos, sejam os positivos como os adversos. Trata-se, acima de tudo, de avivar e registrar um debate entre o mundo atual (em sua diversidade) e mundos antigos (idem), cuja conjunção permite fertilizar e tornar mais plural o próprio campo da História.

As contribuições publicadas neste dossiê refletem diferentes olhares para esse eixo geral proposto pelos editores. Problematizando as obras de Benjamin Isaac (2004) e Susan Lape (2010), Félix Jácome Neto faz importantes reflexões sobre racismo, etnocentrismo e preconceitos culturais. Localizando as deficiências conceituais e argumentativas dos discursos dos dois autores, Jácome Neto questiona a tese de uma suposta continuidade entre o racismo antigo e o moderno, pois as relações étnicas na Grécia Antiga seriam mais bem compreendidas se pensadas como formas não hereditárias de preconceito cultural ao invés de racismo, que tem uma história específica ligada à colonização europeia e ao tráfico negreiro da época moderna. Trata-se, então, de uma investigação sobre a relação entre etnicidade antiga e racismo moderno, com suas continuidades e permanências.

O estudo das recepções da Antiguidade e Usos do Passado se estabeleceu como um dos campos da área de História Antiga. Glaydson José da Silva, Pedro Paulo Funari e Renata Senna Garraffoni lembram, no entanto, que a reutilização do passado em contextos posteriores já era uma prática na própria Antiguidade. A frase de Horácio (epis., Il, 1, 156-7) “Graecia capta ferum victorem cepit et artes / Intulit agresti Latio” (“a Grécia conquistada conquistou a seu feroz conquistador e introduziu as artes no agreste Lácio”) é apenas um dentre tantos exemplos. Tais práticas tiveram continuidade com o Cristianismo, o Renascimento etc. Assim, há muito a ser explorado sob essa perspectiva. Objetivando compreender melhor esse fenômeno, os autores apresentam uma análise dessa dinâmica nos estudos de História Antiga e das definições, aproximações e distanciamentos entre recepção e usos do passado, contemplando, ainda, uma análise específica do caso de Curitiba, mostrando como a presença da Antiguidade greco-romana se manifesta na realidade brasileira.

Essas camadas temporais são exploradas e aprofundadas tanto nos artigos de Camila Ferreira Paulino da Silva e Leni Ribeiro Leite quanto no de Anderson Zalewski Vargas. No primeiro caso, investigam-se alguns usos do passado no próprio passado, quando as autoras discutem como o poeta Horácio se apropriou da tradição retórico-poética romana e grega de forma a estabelecer sua posição frente à sociedade romana, no contexto de alargamento de fronteiras e de fabricação de um novo regime político durante o Principado de Augusto. Ou seja, como estratégias retóricas foram utilizadas para fabricar, reinventar, atualizar, redefinir e reescrever o passado posicionando-o em relação aos jogos de poder em Roma. O tema da retórica também é predominante no segundo caso. No artigo de Vargas, porém, são avaliadas as dinâmicas entre Antiguidade e Contemporaneidade. O autor analisa como os recursos retóricos clássicos foram utilizados para persuadir os leitores do jornal Correio da Liberdade, publicado em Porto Alegre em 1831. A temática da recepção da Antiguidade no periódico gaúcho é percebida sobretudo a partir da peculiar apropriação da tirania ateniense de Pisístrato em matéria sobre o regime político brasileiro da época.

Em “Palavra de mulher”, Marta Mega de Andrade investiga a ação política das mulheres na história grega antiga, sobretudo na pólis. Compreendendo a questão como contemporânea, a autora analisa tragédias, comédias e epigramas funerários dedicados às mulheres no final do século V e início do século IV a.C, em Atenas, para pensar a persistência de requisições femininas aquém do direito políade, validadas pela comunidade e pela dimensão da “vida comum”, mesmo que as “vozes” não sejam passíveis de identificação a uma autoria feminina. A dimensão do cotidiano também é um espaço / tempo da política, e lá poderemos perceber esse logos gunaikos, uma “palavra de mulher”.

O estudo da chamada cultura material é fundamental para a compreensão das temáticas da área de História Antiga. Considerando isso, Gilberto da Silva Francisco, Haiganuch Sarian e Fábio Vergara Cerqueira partem do estudo de caso de uma ânfora de tipo panatenaico em figuras vermelhas atribuída ao artesão caracterizado como Pintor de Nicóxeno, conhecida na historiografia da área como “ânfora de Mississípi 1977.3.115”, para retomarem a Arqueologia da Imagem e posicioná-la entre a iconografia clássica e a cultura material. Para tal, discutem-se os conceitos de suporte e de contexto, elementos básicos para o tratamento arqueológico das imagens, realizando um debate teórico sobre esse tipo de metodologia. Pensando um mediterrâneo globalizado, os autores chegam à conclusão de que a integração não uniformizava a relação entre os povos específicos e o universo material ao seu redor. Assim, não se pode atribuir naturalmente um significado ático para imagens produzidas na Ática. Ao contrário, a imagem precisa ser pensada em um complexo quadro envolvendo materiais, circulação e recepção.

Essas complexas relações entre o local e o global também são temas das análises do austríaco Raimund Karl, da Bangor University. Autores clássicos, como Políbio, César, Estrabão e outros, escreveram sobre os “Celtas”, mas a Arqueologia permite realizar leituras diversas e aprofundar o conhecimento sobre esses atores históricos da Antiguidade. As fontes históricas clássicas e a Arqueologia não estabelecem uma relação simples de complementaridade, mas permitem colocar questões diversas e relativamente autônomas. A partir de algumas questões que percebeu quando coordenava um projeto sobre o sítio arqueológico de Meillionydd, na Península de Llŷn, localizada no País de Gales, Karl problematiza as diferenças, integrações e conflitos entre as várias sociedades “célticas” da Europa e seus vizinhos, bem como o próprio uso da temática “céltica”, tanto em passados mais recuados quanto em mais recentes.

Horacio Miguel Hernán Zapata questiona o pretexto de que não seria interessante para nós, latino-americanos, estudar a História Antiga oriental porque a temática não responderia aos interesses “nacionais” e não seria necessária para nosso contexto. Respondendo a esse tipo de provocação, o autor aponta três razões e algumas reflexões, defendendo que a História Antiga daquela parte do mundo é fundamental para nós e pode funcionar como uma espécie de “laboratório” que colabora para que possamos pensar todo um conjunto de diferenças socioculturais acerca dos modos de experiência social sob uma perspectiva histórica. Reconhecer essa diversidade de formas em que pode materializar-se a experiência humana ao longo da História é fundamental para nossa contemporaneidade.

Um exemplo da temática proposta por Zapata é apresentado no artigo de Jorge Elices Ocón, que aborda os monumentos antigos em contextos islâmicos. Analisando o discurso elaborado pelo DAESH, o autor aponta que, por trás de um caráter radical e destrutivo, a narrativa daquele grupo esconde complexos argumentos relacionados com a narrativa histórica que se objetiva construir a partir da Arqueologia, dos monumentos e dos museus. O grupo islâmico se apropria das ideias do discurso ocidental e colonialista e reinventa o passado, não somente ocultando a realidade de um tráfico de objetos antigos, mas também destruindo outras percepções dos monumentos elaboradas pelas comunidades locais a partir de suas memórias e tradições.

Como é possível perceber, desde que Eurípedes Simões de Paula – membro fundador da Anpuh e um de seus primeiros presidentes – deu as primeiras aulas de História Antiga em uma Universidade Brasileira, a área não parou de se ampliar, se ressignificar e se reinventar. Parte inseparável da historiografia brasileira, os debates produzidos pela área de História Antiga em nosso país têm colaborado para pensarmos questões sociais, econômicas e culturais próprias do nosso tempo, afinal, como dizia Benedetto Croce, “Ogni storia vera, è storia contemporanea” (Croce, 1912), e, de igual modo, Lucien Febvre, “L’histoire est fille de son temps” (Febvre, 1942, p. 2). Em um mundo cada vez mais glocal, é importante debatermos essas realidades interconectadas, evitando o que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie chamou de “the dangers of a single story” (Adichie, 2009). Este dossiê aponta alguns direcionamentos. Boa leitura!

Notas

  1. Para uma informação detalhada sobre os grupos de pesquisa a que nos referimos, cf. o (novo!) sitedo GTHA: https: / / www.gtantiga.com / laboratorios-e-grupos-de-pesquisa. Acesso em: 11 maio 2020.
  2. O GTHA realiza, entre outras ações, um Encontro Nacional bianual e participa regular do Simpósio Nacional de História com a promoção de Simpósios Temáticos. Além disso, o GTHA mantém uma fanpageno Facebook e contas em outras redes sociais. Para deta- lhes, cf. https: / / www.gtantiga.com / . Acesso em: 11 maio 2020.
  3. Silva; Oliveira, 2017. Cf. dossiê completo: www.revistas.usp.br / marenostrum / issue / view / 10208. Acesso em: 11 maio 2020.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. The Danger of a Single Story. TEDTalks, TEDGLOBAL, 2009. Disponível em: Disponível em: https: / / goo.gl / 3BdPCc . Acesso em: 11 maio 2020. [ Links ]

CROCE, Benedetto. Storia, cronaca, e false storie. Memoria letta all’Accademia pontaniana nella tornata del 3 novembre 1912 dal socio Benedetto Croce. Atti dell’Accademia Pontiana, v. XLII. Napoli: F. Giannini e figli, 1912. [ Links ]

FEBVRE, Lucien. L’incroyance au XVIe siècle: la religion de Rabelais. Paris: Albin Michel, 1942. [ Links ]

GUARINELLO, Norberto L. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013. [ Links ]

HORDEN, Peregrine; PURCELL, Nicholas. The Corrupting Sea: A Study of Mediterranean History. Oxford, UK; Malden, MA: Blackwell, 2000. [ Links ]

SILVA, Gilvan V. da. Editorial do GT de História Antiga. Hélade, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 6-7, 2001. Disponível em: Disponível em: http: / / www.helade.uff.br / Helade_2001_volume2_ numero2_NE.pdf . Acesso em: 11 maio 2020. [ Links ]

SILVA, Uiran G. da; OLIVEIRA, Gustavo J. D. Editorial. Mare Nostrum – Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo, v. 8, p. iv-vii, 2017. [ Links ]

Fábio Faversani – Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Mariana, MG, Brasil. E-mail: faversani@ufop.edu.br http: / / orcid.org / 0000-0002-3464-1020

Dominique Vieira Coelho dos Santos – Universidade de Blumenau (Furb), Blumenau, SC, Brasil. E-mail: vieiradominique@hotmail.com http: / / orcid.org / 0000-0002-0265-2921

Cristina Rosillo-López – Universidad Pablo de Olavide, Sevilla, España. E-mail: mcroslop@upo.es http: / / orcid.org / 0000-0001-5451-841X


FAVERSANI, Fábio; SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos; ROSILLO-LÓPEZ, Cristina. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.40, n.84, mai / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

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O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira – VENANCIO; POTENGY (HU)

VENANCIO, A.T.A.; POTENGY, G.F. (org.). O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira. Rio de Janeiro: Garamond, 2015. 336 p. Resenha de: PETRINI, Abigail Duarte. Colônia Juliano Moreira: seus sujeitos e lugares na história da psiquiatria e da loucura. História Unisinos 22(2):317-319, Maio/Agosto 2018.

O livro O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira, composto por nove capítulos, é apresentado e introduzido pelo texto de suas organizadoras Ana Teresa Acatauassú Venancio – pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz – e Gisélia Franco Potengy – pesquisadora sênior do Programa CNPq/Fiocruz. As organizadoras desse livro reuniram um florilégio de pesquisas que versaram sobre a Colônia Juliano Moreira e sua imersão na vida urbana e no imaginário social da cidade do Rio de Janeiro. Essa composição de textos está, em grande medida, comprometida com o rompimento de noções estagnantes ou simplificadoras da compreensão das relações sociais decorrentes do cotidiano e das experiências entre os diversos atores, individuais e coletivos, dessa instituição de assistência psiquiátrica. Contudo, as reflexões propostas ultrapassam os propósitos de suas organizadoras, colaborando para aprofundar questões sobre a operacionalização estatal das instituições psiquiátricas, sob a inserção de prismas nos quais os sujeitos da equação ganham espaço, independentemente de sua localização na teia traçada.

São trazidas para o centro das discussões as complexidades dos cuidados formais para com pessoas em sofrimento mental por vieses como a estruturação psiquiátrica e seu vínculo ao Estado, expressados pelas ações de diversos atores sociais; a situação daqueles sujeitos que lá foram reunidos pela premissa do cuidado, mas também do rompimento de suas vidas pregressas; a de todos aqueles que assistiram cotidianamente à presença desse singular espaço de sociabilidades em que claramente as relações de poder eram hierárquicas e desiguais; o albergamento de moradores naquele espaço, mantendo suas trajetórias individuais vinculadas ao passado vivido naquela instituição, e os conflitos gerados posteriormente à sua desativação e à ressignificação daquele lugar.

Com olhares que partiram de áreas diversas, incluindo Planejamento Urbano e Regional, Sociologia Rural, Antropologia Social, Ciências Sociais, Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural, História e História das Ciências, os/as pesquisadores/as devotaram suas investigações à Colônia Juliano Moreira na busca da formação social dessa instituição e de sua participação na história da cidade do Rio de Janeiro.  No artigo que inicia a coletânea, intitulado “Memória e história da ocupação e dos conflitos de terra do Sertão Carioca”, Renato de Souza Dória objetivou fazer um levantamento das imagens constituídas sobre o lugar onde foi instalada a Colônia Juliano Moreira – a região de Jacarepaguá, então pertencente à zona rural do Distrito Federal, nas primeiras décadas do século XX.

Buscou também situá-las em seus contextos histórico e social, para através delas perceber transformações daquela região quanto à sua estrutura fundiária, com atenção aos atores e grupos sociais que se inseriram nesse processo de resistência. Segundo o autor, a historiografia sobre a zona oeste do Rio de Janeiro procedeu a “[…] um silenciamento que obscureceu as experiências de organização e luta de trabalhadores que contestaram e desafiaram as relações de dominação e exploração […]” (p. 57), no conflito gerado pelas ofensivas de despejo engendradas por banqueiros, advogados, juízes, policiais, agentes da administração estatal e empresários, de um lado, e a oposição das famílias de pequenos lavradores e pescadores que habitavam a região, de outro.

O artigo subsequente, de Renato Gama-Rosa e Ana Paula Casassola Gonçalves, intitula-se “Evolução urbana da Colônia Juliano Moreira”. Os autores partem da identificação de momentos-chave da ocupação do espaço para refletir sobre o exame da arquitetura hospitalar no âmbito das políticas de saúde engendradas na Colônia Juliano Moreira, mesmo antes desta ser conhecida como tal. São foco da discussão os anos de 1750, 1912, 1941 e 1980, num trabalho analítico que parte dos mapas da área da Colônia nos séculos XVIII e XIX, e nos anos de 1922, 1936, 1941, 1945, 1953, 1964, 1975, 1984 e 2000. Estes mapas embasam a percepção de questões de maior complexidade sobre a ocupação daquele espaço, como a implantação do modelo pavilhonar europeu e do monobloco nas edificações da instituição, bem como a concretização do caráter urbano na área da instituição frente ao modelo heterofamiliar inicialmente adotado na ocupação do sítio da Colônia.

O terceiro artigo do livro, “‘E eu sei doutor?’: experiências de doença e falas sobre o Estado Novo em internos da Colônia Juliano Moreira (1941-1942)”, de Janis Alessandra Pereira Cassília, investiga as narrativas dos próprios internos sobre suas experiências de doença através de documentos clínicos, citando 19 casos e 52 Fichas de Observação de internos. Atentando para o filtro da transcrição médica que essas narrativas muitas vezes sofreram no processo de sua documentação, a autora explora a circularidade de ideias produzidas pelos internos enquanto excluídos e marginalizados tanto da história oficial quanto da própria sociedade. Quanto a seus sofrimentos e perturbações mentais, os internos expressaram seu cotidiano enquanto doentes por noções mais generalizantes e leigas do que as noções médicas sobre doença mental. Junto com esses relatos, eles também se manifestaram sobre temas como o Estado populista, as políticas trabalhistas e a cultura em que estavam inseridos, tornando Getúlio Vargas, a quinta-coluna, o comunismo e o integralismo participantes de suas narrativas de vida: “São histórias de vida e interpretações sobre o mundo que os cercava que apontam tanto para as tensões políticas do Estado Novo, quanto para as novidades culturais da época” (p. 123), esclarece a autora.

“Memórias coletivas e identidades sociais na história do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios (Colônia Juliano Moreira, RJ)” é o capítulo de autoria de Ana Teresa Acatauassú Venancio, Laurinda Rosa Maciel, Anna Beatriz de Sá Almeida, Bruno Dallacort Zilli e Silvia Monnerat. Destinado inicialmente a tratar a loucura e a tuberculose de suas internas, o Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios é abordado desde sua criação em 1940 até seu declínio e desativação enquanto unidade hospitalar, transformando-se em lugar de moradia para outras pessoas que não as internas, na década de 1970, e enfim seu desligamento final enquanto lugar de moradia em 2006, momento em que a área da Colônia Juliano Moreira já fazia parte da Fundação Osvaldo Cruz. “Mesmo antes de morar no Pavilhão, muitas daquelas famílias já viviam na Colônia e lá se enraizaram, fazendo daquele local um espaço físico e simbólico que dava sentido à sua existência” (p. 158). As relações tanto de internos e trabalhadores quanto de posteriores moradores do Pavilhão foram atravessadas por problemas como a falta de profissionais na fase em que foi devotado aos internamentos e a carência de infraestrutura básica durante todo o período em que foi ocupado, questões essas presentes nas discussões abordadas pelos pesquisadores.

No quinto capítulo, “Doença mental e tuberculose nas mulheres internas do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios da Colônia Juliano Moreira, 1940-1973”, escrito por Anna Beatriz de Sá Almeida, Ana Carolina de Azevedo Guedes e Pedro Henrique Rodrigues Torres, os autores seguem o rastro de internas da Colônia Juliano Moreira que foram possivelmente internas do Pavilhão Nossa Senhora dos Remédios, para construir entendimentos sobre os motivos de suas internações e a forma que suas vidas tomaram enquanto estiveram internadas na Colônia.

Ao explorar essas vidas e as relações históricas em que o gênero feminino se vinculava às perturbações mentais, as pesquisadoras e o pesquisador investigaram os parâmetros que foram preenchidos nas fichas de internamento (cor, idade, estado civil, profissão, diagnóstico) e as trajetórias de algumas internas. Perscrutaram, assim, “[…] não apenas as concepções médico-científicas a respeito, mas o imaginário social mais amplo que se fazia presente nas falas transcritas dos diferentes atores sociais envolvidos” (p. 192).

De autoria de Sigrid Hoppe, o capítulo “Práticas católicas na Colônia Juliano Moreira: a igreja da instituição e a festa de São Cristóvão” parte de fontes como entrevistas e conversas com moradores da Colônia Juliano Moreira, do Livro de Ocorrências da Capela Nossa Senhora dos Remédios e da observação de rituais para analisar as relações entre catolicismo, vida social e cuidados psiquiátricos. Conduzida pela narrativa deixada pelo Padre Joaquim del Rodrigues entre as décadas de 1950 e 1990, e pela presença e registro dos rituais entre 2011 e 2012, a autora analisa a atuação da igreja católica sobre os funcionários residentes na Colônia e em relação aos internos, bem como as disputas em torno de diferentes formas de professar a fé.

Na sequência, “‘O filho do povo’ de Jacarepaguá: o médico da Colônia e as lutas sociais no Sertão Carioca (1945-1962)”, capítulo de Renato de Souza Dória e Leonardo Soares dos Santos, acompanha a trajetória de vida do médico Jacinto Luciano Moreira, que, filiado ao Partido Comunista Brasileiro, militou pelo reconhecimento dos trabalhadores da saúde pública em sua atuação nas lutas sociais vivenciadas por lavradores, pescadores e demais categorias de trabalhadores no sertão carioca na primeira metade do século XX. Acompanhar a vida de Jacinto colabora para perceber as dinâmicas em jogo em diversos planos sociais, considerando tratar-se de um homem negro que de auxiliar de lavoura e guarda de sanatório passou a atendente da instituição e, posteriormente, a médico da Colônia Juliano Moreira. Da mesma forma interveio enquanto militante em diferentes esferas de atuação, tanto no comitê do bairro quanto como candidato a vereador ou no movimento de médicos do Distrito Federal.

O oitavo capítulo, “A assistência psiquiátrica da Colônia Juliano Moreira no governo JK”, de André Luiz de Carvalho Braga, explora o período entre 1956 e 1960 e a atuação do Serviço Nacional de Doenças Mentais no Distrito Federal, focando especialmente a Colônia Juliano Moreira, mas atentando também para as demais instituições psiquiátricas federais localizadas na cidade do Rio de Janeiro, como o Centro Psiquiátrico Nacional e o Ambulatório de Higiene Mental de Jacarepaguá. As políticas assistenciais do governo Kubitschek são exploradas em relação à potencialização dos investimentos, tais como o aparato de ambulatórios, o incentivo à terapia ocupacional e os procedimentos terapêuticos (como o eletrochoque e as injeções), mas também em relação às dificuldades encontradas pela direção da Colônia Juliano Moreira.

Encerrando o livro, o capítulo de Gisélia Franco Potengy e Sigrid Hoppe, “Identidade e apropriações do espaço no bairro Colônia”, seguiu o rastro das lembranças na recuperação de vivências dos moradores da Colônia Juliano Moreira, escutando outras versões das histórias sobre o bairro e a Colônia, sem prender-se às narrativas oficiais, na valorização de conhecimentos e práticas esquecidos.

“A convivência entre as famílias de funcionários e os pacientes era compulsória, no cotidiano da vida, devido à própria concepção terapêutica do hospital […]” (p. 284).

Além destes, também ocorreram ocupações do lugar por parte de outras pessoas, o que pode ser percebido no conflito entre os antigos moradores e os novos, enunciados como os “de dentro” e os “de fora”. Essas manifestações revelam conflitos surgidos em decorrência das mudanças das pautas do Estado para com os doentes mentais e as instituições psiquiátricas – a reforma antimanicomial e antipsiquiátrica – e também para com o funcionalismo público, integrando o lugar da então Colônia Juliano Moreira à cidade, visando à democratização de direitos.

O conjunto dos textos que compõem o livro “O asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira” expôs as ramificações sociais em diversos contextos e períodos daqueles que passaram pela instituição, seja como internos, funcionários ou mesmo moradores daquele lugar, acompanhando os significados da Colônia Juliano Moreira em suas vidas, tal como um sujeito maior de suas histórias.

O livro aponta para novas perspectivas de compreensão das dinâmicas sociais engendradas pelos asilos manicomiais, seja em suas relações com as políticas públicas de saúde mental, seja quanto às práticas culturais que perpassam as vidas daqueles que são recebidos sob seus auspícios, seja do ponto de vista dos conflitos decorrentes da instalação, manutenção e desenvolvimento de suas estruturas. A obra ultrapassa, assim, concepções superficiais como a de que o asilo é meramente um depósito de loucos, separados do mundo por seus muros, expandindo com riqueza o entendimento sobre as instituições psiquiátricas.

Abigail Duarte Petrini – Doutoranda no Programa de Pós- -Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Rua Pernambuco, 1777, 85960-000, Marechal Cândido Rondon, PR, Brasil. E-mail: abigail_petrini@hotmail.com.

Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália – ROLLEMBERG (HU)

ROLLEMBERG, D. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo: Alameda Editorial, 2016. 376 p. Resenha de: CODARIN, Higor. “Resistencialismo” e resistência: as tensões entre história e memória. História Unisinos 24(2):334-337, Maio/Agosto 2020.

A trajetória intelectual da historiadora Denise Rollemberg, professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF), é indissociável das temáticas, das tensões e dos dilemas envolvendo o passado recente, em específico relacionado às experiências autoritárias ao redor do globo, ao longo do século XX. Em um primeiro momento, sua produção acadêmica edificou-se através de análises consistentes a respeito dos caminhos e descaminhos das esquerdas brasileiras diante da ditadura civil-militar, seja a partir da construção analítica a respeito da perspectiva de revolução difundida por essas esquerdas, ou pela vigorosa análise a respeito do exílio experimentado por esses militantes ao longo da ditadura.2 Contudo, a partir de então, a historiadora, influenciada por parte da historiografia francesa empenhada em renovar as análises a respeito da resistência à ocupação nazista e/ou em relação à construção social do regime instaurado em Vichy, das quais falaremos adiante, passa a centrar seus esforços em outros aspectos dos regimes autoritários, buscando iluminar sua compreensão através de duas linhas centrais: por um lado, de que modo esses regimes foram construídos socialmente e se mantiveram por longos anos? Por outro, e de modo mais importante para o objetivo desta resenha, como se relacionam memória e história na construção do conhecimento a respeito dessas experiências? Mais especificamente: de que modo a construção da memória coletiva sobre esses regimes buscou criar oposições binárias entre Estado e Sociedade, sedimentando a perspectiva de sociedades oprimidas, manipuladas e, sobretudo, resistentes a esses regimes? Confirmação dessa nova vereda analítica são as obras organizadas em conjunto com a também historiadora da UFF Samantha Quadrat – A construção social dos regimes autoritários (2010); História e memória das ditaduras do século XX (2015) – e Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália (2016).

Neste que é seu mais recente livro, Rollemberg busca, como objetivo central, analisar o movimento de constante construção e desconstrução dos discursos memoriais a respeito das experiências de resistência francesa e italiana às ocupações nazistas que ocorreram durante a II Guerra Mundial. Dividido em cinco capítulos, Resistência parte de um consistente balanço historiográfico indicativo dos esforços e das dificuldades em conceituar o termo “resistência” (capítulo 1), para, em seguida, passar ao exercício analítico de sua ampla gama de fontes: os museus e memoriais franceses (capítulo 2), as cartas de despedida dos resistentes e reféns fuzilados (capítulo 3), que constroem a primeira parte do livro, dedicada à França, e, por fim, os museus e memoriais italianos (capítulo 4), com especial destaque à construção da memória e historiografia a respeito da trajetória da família Cervi, e do fuzilamento dos sete irmãos – os Sette Fratelli – integrantes da Resistência3 italiana (capítulo 5).

De modo inicial, é importante ressaltar, Rollemberg indica que as populações dos países ocupados “experimentaram comportamentos que variaram de país para país, ao longo do tempo, num amplo campo de possibilidades desde a colaboração mais aguerrida com os vencedores até a resistência mais combativa” (Rollemberg, 2016, p. 17). Nessa perspectiva, a autora, como cerne da argumentação que permeia todo o livro, busca desconstruir não apenas a visão maniqueísta entre Estado e Sociedade, conforme citamos anteriormente, mas também a visão que opõe, drasticamente, resistentes e colaboradores, como se resistir ou colaborar fossem as únicas possibilidades de atuação dentro desses contextos históricos. Para isso, inspira-se, essencialmente, no historiador Pierre Laborie, mais especificamente em seus conceitos de zona cinzenta e pensar-duplo, que realçam o amplo espaço de atuação entre os dois polos, marcado por contradições e ambivalências.4 Enveredando pela discussão conceitual, a autora busca explicitar que as experiências variadas de país para país deram origem, também, a conceituações diferentes. Assim, distingue as discussões historiográficas realizadas na França, Itália e Alemanha.

Sobre a França, campo com que Rollemberg tem maior familiaridade, a discussão é robusta. Demonstra, como prelúdio, que logo após o fim da ocupação, 1944, o termo resistência iniciou um processo de naturalização no seio da sociedade francesa, por intermédio da memória oficial que ia sendo desenvolvida pelo governo surgido do processo de libertação, comandado por Charles de Gaulle.

Criava-se, então, o mito da resistência, ou “resistencialismo”, no neologismo de Henry Rousso (2012). Ou seja, o mito de que a sociedade francesa havia, em sua totalidade, resistido aos alemães e ao governo instaurado em Vichy, sob o comando de Philippe Petain. Por muitos anos, o termo ficou sob o domínio dessa memória, estando fora dos objetivos e anseios dos historiadores. Realizando uma genealogia do conceito, a historiadora demonstra que a historiografia francesa se voltou à “resistência” apenas em 1962, com a tese de Henri Michel, que abre os debates acadêmicos a respeito do termo, ainda sob forte influência do processo de mitificação. Contudo, é com o livro de Robert Paxton, Vichy France (1972), que há uma guinada no debate. A revolução paxtoniana, como ficou conhecido o impacto da tese de Paxton, abriu novas temáticas e interpretações, pois deu início a uma corrente historiográfica indicativa de que o Estado de Vichy era produto da própria sociedade francesa e não uma marionete da Alemanha de Hitler. Iniciava-se, portanto, o processo historiográfico de problematização do mito da resistência.

Passeando com propriedade pelas contribuições de François Bédarida, Pierre Azéma, Pierre Laborie, Jacques Sémelin, François Marcot, Henry Rousso e Denis Peschanski, a historiadora apresenta, de forma nítida, reflexões a respeito da criação do mito de resistência como “necessidade social” (Rollemberg, 2016, p. 33) e, sobretudo, tentativas de conceituar o termo. Em uma diversidade de propostas de conceituação que, conforme diz a própria autora, engolfam-se, por vezes, em “excessivas filigranas e retórica” (Rollemberg, 2016, p. 37), vemos emergir a problemática fundamental do debate: resistência é apenas expressão coletiva, consciente, organizada e clandestina contra um invasor estrangeiro, como propõem alguns autores, ou também podem ser considerados resistentes as expressões individuais, cotidianas e anônimas, seja contra o regime alemão instaurado na zona ocupada ou contra o regime de Vichy? Cria-se, assim, um dilema, bem sintetizado por Jacques Sémelin: “ou bem se mergulha nas profundezas do social, mas sua especificidade [da resistência] tende a se diluir; ou bem se define exclusivamente através de suas [da resistência] estruturas e ações e ele se reduz à sua dimensão organizada” (Rollemberg, 2016, p. 32). Apesar de parecer intransponível, a historiadora apresenta um caminho possível para sua resolução, demonstrando a importância das propostas teóricas de Laborie para sua análise: A zona cinzenta, o pensar duplo, o homem duplo, segundo a perspectiva de Pierre Laborie que considera comportamentos ambivalentes nuançados entre resistir e colaborar, por outro lado, talvez seja a solução para o impasse levantado por Sémelin (Rollemberg, 2016, p. 148).

Seja como for, adotando-se ou não as posições de Laborie para resolver o impasse sintetizado por Sémelin, o exercício reflexivo que o desencadeou, segundo Rollemberg, demonstra, per se, a importância e a necessidade de reflexão a respeito do conceito de resistência, pois concei tuá-la “é mais lidar com as possibilidades e os limites das próprias definições, aproveitando as tensões e riquezas que são intrínsecas ao dilema observado por Sémelin, do que buscar resolvê-lo” (Rollemberg, 2016, p. 37).

Para o caso italiano, a discussão é menos densa. Segundo a autora, isso se deve ao fato de que para a historiografia italiana importa menos definir “o que foi e o que não foi resistir”, centrando os esforços, em contrapartida, no “papel de seus atores, principalmente das lideranças ou de militantes destacados” (Rollemberg, 2016, p. 47). Apesar da não importância da conceituação, a historiadora alerta que as contribuições historiográficas têm buscado desconstruir, também, o mito da resistência.

Por fim, finalizando o primeiro capítulo, está a reflexão a respeito do conceito de resistência proposto pela historiografia alemã. Rollemberg oferece destaque à definição proposta por Martin Broszat. Esta, ao contrário de utilizar o termo resistência (Widerstand), prefere utilizar Resistenz, cuja tradução é imunidade, termo devedor da biologia, que diz respeito a “reações espontâneas e naturais dos organismos vivos a micro-organismos como vírus e bactérias” (Rollemberg, 2016, p. 52). Assim, com essa nova definição, procurou-se jogar luz sobre a “resistência a partir de baixo”, como bem sintetizou Klaus-Jürgen Müller a respeito da definição proposta por Broszat.

Nos capítulos seguintes, sejam relacionados ao contexto francês ou italiano, notamos, com clareza, dois aspectos predominantes: por um lado, o esforço analítico da autora, buscando demonstrar e desenvolver as relações tensas e mutáveis entre história e memória, por intermédio, essencialmente, dos museus e memoriais como corpus documentais de análise. Por outro, o realce e a recorrência, ao longo de todo o texto, na importância de compreender as ações dos sujeitos que fizeram parte desse processo histórico a partir de suas ambivalências e contradições, buscando problematizar as visões romantizadas e heroicizadas construídas sobre esses indivíduos. Assim, a historiadora reforça a necessidade de compreendê-los sem operar distinções binárias e estéreis. Nas palavras da própria Rollemberg a respeito da criação de museus e homenagens aos resistentes:

A homenagem precisa incorporar a complexidade, as contradições, as ambivalências da realidade. A produção do conhecimento, resultado da incorporação das múltiplas dimensões dos acontecimentos e dos homens e mulheres neles envolvidos, submetidas à interpretação crítica, é a melhor homenagem que se possa fazer. A sacralização da memória afasta o herói de todos nós, condena-o ao desconhecimento, mesmo que inúmeros museus e memoriais sejam erguidos em seu nome (Rollemberg, 2016, p. 97).

Portanto, perseguindo essa trilha, Rollemberg empreende uma análise ampla acerca de 15 museus/memoriais ao redor da França, 130 cartas de resistentes ou reféns5 prestes a serem fuzilados e, por fim, analisa oito museus/memoriais italianos. É digno de nota demonstrar a metodologia empregada pela historiadora na construção dos museus/memoriais como corpus documentais para discussão das questões propostas na obra. Seguindo a senda proposta por Jacques Le Goff, a respeito do conceito documento/monumento6, a historiadora compreende a criação e, consequentemente, os próprios museus/memoriais através dessa dinâmica. Assim, a disposição dos museus/memoriais, os locais onde foram construídos, seus acervos, suas narrativas, dinâmicas e relações com o poder público são importantes ao olhar analítico da autora.

Todos os aspectos, constituintes da criação e perpetuação dos museus/memoriais, são vistos como esforços “das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si própria” (Rollemberg, 2016, p. 90). Outrossim, constatando que os museus/memoriais são criados com uma dupla-função, informativa e comemorativa, a historiadora compreende- os como espaços privilegiados de manifestação das tensões entre história e memória, analisando, assim, de que modo esses espaços incorporam ou recusam os avanços e novos temas propostos pela historiografia (Rollemberg, 2016, p. 90).

Sobre a França, vale ressaltar que a autora deslinda de que modo foi construído o “resistencialismo”. Apresenta a importância da memória nesse processo, a memória como construção social, como maneira de “lidar com a história, reconstruindo-a” (p. 84), formulada no período pós-ocupação, “comportando a lembrança, o esquecimento, o silêncio” (Rollemberg, 2016, p. 84), como aponta Beatriz Sarlo (2007), a memória como captura do passado pelo presente; o mito da resistência, o mito que explica a ausência, ao menos na grande maioria dos museus, de informações a respeito da colaboração dos franceses com os nazistas e com o regime de Vichy; o “resistencialismo” tornando ausente das narrativas dos museus “a zona cinzenta, o pensar duplo, a ambivalência” (Rollemberg, 2016, p. 142).

Com relação à Itália, deve-se atentar para a valiosa trilha percorrida pela historiadora ao confrontar a história e a memória do caso dos Sette Fratelli. Realizando uma genealogia da criação do mito, que remonta a dois textos de Italo Calvino publicados em 1953 (Rollemberg, 2016, p. 335), Rollemberg expõe as relações de legitimação dos mais diversos setores da sociedade italiana com a criação e manutenção de uma narrativa romantizada acerca dos sete irmãos fuzilados em 1943. Aponta não apenas para a necessidade do Partido Comunista Italiano (PCI) em vincular- se à história dos irmãos, mas, também, a necessidade do próprio governo italiano, simbolizado na recepção de Alcide Cervi, pai dos sete irmãos, pelo primeiro presidente eleito pós-ocupação, Luigi Enaudi, em 1954, no Palácio Quirinale, em Roma, além de diversas medalhas de honra que Alcide recebeu como representante dos filhos (Rollemberg, 2016, p. 318). A história dos irmãos resistentes e, consequentemente, da superação do sofrimento de um pai que teve a família devastada como símbolos da história italiana recriada pela memória, a Itália resistente, a exemplo dos sete irmãos, livre do nazifascismo, que buscava superar o sofrimento, como Aldo Cervi buscava superar a perda dos filhos.

Resistência, portanto, cumpre os objetivos a que se propõe, descortinando as relações problemáticas e, ao mesmo tempo, férteis entre história e memória em meio à construção da memória coletiva na França e na Itália a respeito das ocupações nazistas ao longo da II Guerra Mundial. Mais do que isso, o livro da historiadora é um interessante ponto de vista metodológico para os interessados em compreender as complicadas questões vinculadas à História do Tempo Presente.7 Se vivemos, como aponta o historiador François Hartog (2017), um regime de historicidade presentista, em que a Memória busca destronar a História de seu lugar privilegiado como intérprete hegemônica do passado, Resistência é uma contribuição fundamental à historiografia brasileira para aqueles que buscam fugir às armadilhas da Memória, que opera, na maioria das vezes, por intermédio de uma cultura binária de demonização ou sacralização de indivíduos e/ ou períodos históricos. Rollemberg, portanto, em seu novo caminho analítico, do qual Resistência é a reflexão mais profunda até o presente momento, apresenta os desafios dos historiadores que trilham as temáticas envolvendo experiências sociais traumáticas do passado recente. Ao buscar recolocar os personagens em seus respectivos contextos históricos, questionando as construções memoriais e realçando a importância de lançarmos luz às zonas cinzentas, contradições e ambivalências dos sujeitos históricos, a autora deixa-nos – aos historiadores – um sinal de alerta: o dever do historiador é compreender o passado, não o mitificar.

Referências

HARTOG, F. 2017. Crer em História. Belo Horizonte, Autêntica, 252 p.

LABORIE, P. 2010. 1940-1944: Os franceses do pensar-duplo. In: S.

QUADRAT; D. ROLLEMBERG (org.), A construção social dos regimes autoritários: vol. I, Europa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 31-44.

LE GOFF, J. 2013. História e Memória. 7ª ed. Campinas, Editora da Unicamp, 504 p.

PAXTON, R. 1973. La France de Vichy. Paris, Seuil, 475 p.

QUADRAT, S.; ROLLEMBERG, D. (org.) 2010. A construção social dos regimes autoritários. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 3 vols.

QUADRAT, S.; ROLLEMBERG, D. (org.) 2015. História e memória das ditaduras do século XX. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2 vols.

ROLLEMBERG, D. 2000. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro, Record, 375 p.

ROLLEMBERG, D. 2016. Resistência: memória da ocupação nazista na França e na Itália. São Paulo, Alameda Editorial, 376 p.

ROUSSO, H. 2012. Le Régime de Vichy. 2ª ed. Paris, PUF, 128 p.

ROUSSO, H. 2016. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro, Editora FGV, 341 p.

SARLO. B. 2007. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo, Companhia das Letras / Belo Horizonte, Editora da UFMG, 129 p.

2 Referimo-nos aqui, respectivamente, à sua dissertação de mestrado (A ideia de revolução: da luta armada ao fim do exílio (1961-1979)) e à tese de doutorado (Exílio. Entre raízes e radares), esta última publicada pela Editora Record (1999).

3 O termo Resistência, com letra maiúscula, consolidou-se na historiografia como modo de referir-se a posições e ações ligadas a organizações, partidos e movimentos (p. 175).

4 Para maior aprofundamento a respeito dos conceitos, cf. Laborie (2010).

5 “Reféns” denominam-se os indivíduos presos, seja na França ocupada ou na França de Vichy, em represália às ações da Resistência.

6 Para maiores detalhes, cf. Le Goff (2013).

Higor Codarin – Universidade Federal Fluminense. Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, s/n. 24210-201 Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Número do processo: E-26/201.860/2019. E-mail: higor.codarin@gmail.com.

História econômica, política e intelectual da África Ocidental: Lógicas de intercâmbio / Varia História / 2020

Em 2013, a revista Varia Historia publicou o dossiê “Nações, Comércio e Trabalho na África Atlântica”. Ao apresentarem esta quinquagésima primeira edição do periódico, Vanicléia Silva Santos e Alexsander Gebara, seus organizadores, destacavam:

É visível o crescimento do campo dos estudos africanos no Brasil ao longo da última década. Cada vez mais eventos dedicados ao tema ocorrem em diversos espaços no país, as agências de fomento investem no desenvolvimento de projetos vinculados à área, as traduções e publicações de livros de pesquisadores brasileiros também aumentaram significativamente nos últimos anos. O diálogo internacional, já em andamento, é mais um objetivo a ser perseguido e consolidado nos próximos anos (Santos; Gebara, 2013).

Naquele momento, as expectativas de investimento no ensino superior brasileiro eram positivas, com editais de fomento em diferentes linhas e, em especial, com financiamento para pesquisas dedicadas aos estudos africanos. No ano anterior, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) havia lançado o Edital Capes n.º 33 / 2012, referente ao Programa Internacional de Apoio à Pesquisa e ao Ensino por meio da Mobilidade Docente e Discente Internacional – Pró-Mobilidade Internacional. Entre os objetivos do programa, constava o oferecimento de oportunidades a estudantes e docentes brasileiros para realização de atividades de pesquisas, desenvolvimento tecnológico e inovação em países lusófonos localizados na África e Ásia. Oportunidades como essa foram fundamentais nas trajetórias de vários jovens pesquisadores que, com financiamento público, puderam, pela primeira vez, estabelecer parcerias e interlocução com pesquisadores angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos, são-tomenses e timorenses. Thiago Mota, um dos organizadores deste dossiê foi beneficiário dessa iniciativa, enquanto estudante de doutorado. Hoje, professor universitário, coordena um convênio de cooperação entre a Universidade Federal de Viçosa e a Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique, fruto do investimento público no ensino superior de outrora.

Além do Pró-Mobilidade Internacional, a disponibilidade de recursos às universidades e a oferta de bolsas de mestrado e doutorado também foram fundamentais à ampliação da pós-graduação, em geral, e dos estudos africanos pós-graduados, em particular. Este dossiê resulta dessas duas iniciativas, uma vez que foi por intermédio delas que os pesquisadores aqui reunidos iniciaram uma rede de colaboração. Em 2015, o então Centro de Estudos Africanos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) lançou a Chamada de Apoio à Realização de Eventos Científicos, que contemplou a proposta da I Jornada de Estudos sobre África Ocidental. Esse evento foi um dos primeiros do gênero no país a concentrar-se especificamente numa porção do continente africano, considerando suas articulações sociais, culturais, econômicas e políticas internas. Inspirado no Seminário Internacional Cultura, Política e Trabalho na África Meridional, que se realizaria na Unicamp em maio daquele ano, a I Jornada propunha verticalizar a agenda científica em estudos africanos, rumo a uma maior especificidade no campo, por meio de dinâmicas circunscritas ao espaço oeste-africano. Foi a semente deste número.

Do evento resultou o livro Estudos sobre África Ocidental: dinâmicas culturais, diálogos atlânticos (Reis; Resende; Mota, 2016), por intermédio do qual um dos organizadores do dossiê travou profícuo diálogo com Sílvio Marcus de Souza Correa, um dos colaboradores deste volume. A iniciativa fomentou uma segunda edição da Jornada, que tomou corpo através da V Jornada do Centro de Estudos Africanos da UFMG, em 2017, em parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), da Guiné-Bissau. Esse evento contou com ampla participação de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, muitos deles africanos vindos de países como Cabo Verde, Gâmbia, Guiné-Bissau e Nigéria. Dele resultou outro importante livro sobre a história intelectual e o patrimônio cultural na África Ocidental (Santos; Amado; Marcussi; Resende, 2019), estreitando ainda mais os laços entre a historiografia brasileira e aquela procedente do oeste africano.

Entre 2016 e 2017, em decorrência de uma bolsa de doutorado sanduíche a ser cumprida na Universidade de Lisboa, oferecida pela FAPEMIG, o outrora doutorando em História na UFMG estabeleceu trocas intelectuais com Cornelia Giesing, uma vez que ambos estavam vinculados ao Centro de História da Universidade de Lisboa. A estadia em Portugal também o colocou em contato com Juliana Barreto Farias, professora da UNILAB que se preparava para atividades de pós-doutorado em Portugal. Ademais, com o auxílio da bolsa conseguida, o então pesquisador pós-graduando pode deslocar-se ao Senegal e à Gâmbia, para realizar pesquisas em arquivos e bibliotecas desses países. Em Dacar, no Senegal, onde ficou institucionalmente vinculado à Universidade Cheikh Anta Diop, travou duradoura interlocução com Idrissa Ba, outro organizador deste dossiê, parceira que tem se mantido ao longo dos últimos anos e resultado em produtos como este número.

Assim, a rede que permitiu a constituição da presente edição da Varia Historia resulta de um trabalho longo e contínuo, de colaboração e constituição de relações acadêmicas que somente foram possíveis devido ao investimento público na pesquisa brasileira. Destacamos essas informações para evidenciar como o financiamento público à pesquisa tem seus resultados prolongados ao longo do tempo, não se restringindo ao produto imediato do projeto em voga. Num momento em que a academia brasileira vive um período de crise, especialmente no que tange às Humanidades, reconhecer o amplo e duradouro impacto dos recursos recebidos torna-se estratégia de sobrevivência. Apesar disso, o fortalecimento de redes de cooperação acadêmica não isenta a organização deste número do rigor científico e da ética na condução de publicações de resultados de pesquisa. Por isso, todos os artigos que compõem este dossiê foram duplamente avaliados por pares, no sistema de revisão às cegas, e evidenciam os pontos destacados por Santos e Gebara em 2013, no que concerne aos estudos africanos: o impacto positivo do investimento público das agências de pesquisa na área, a maturidade das pesquisas realizadas no Brasil e os avanços necessários rumo à internacionalização dos estudos, da interlocução intelectual e dos resultados.

No Senegal, país cujo território atual corresponde ao espaço de várias das análises inscritas neste dossiê, que abriga muitos dos interlocutores mobilizados nos artigos a seguir e que é casa de um dos organizadores do número, a pesquisa também encontra suas principais fontes de financiamento em órgãos públicos. Trata-se de estruturas nacionais ou universitárias que arcam com a concessão de bolsas a professores-pesquisadores e pesquisadores. Entre essas estruturas, podem-se citar a Academia de Ciências, a Direção da pesquisa e cooperação internacional, as Reitorias, os Decanatos, as comissões de pesquisa dos vários estabelecimentos, as escolas de doutorado. Contudo, sob o impulso das autoridades ministeriais, a pesquisa e seu financiamento estão passando por uma revisão completa, que consiste em reorganizar as escolas de doutorado, a formação doutoral e as equipes de pesquisa, que devem tornar-se equipes maiores, transcendendo as fronteiras epistemológicas para melhor racionalizar os recursos e impulsionar as investigações. Além desse primeiro modo de financiamento da pesquisa, que conta com recursos públicos nacionais, há também parcerias internacionais, como a que está sendo formada entre universidades senegalesas, portuguesas e brasileiras em busca de formas de financiamento advindas de órgãos internacionais, como a União Europeia. Lá e cá, o que se nota é que a construção de redes internacionais de colaboração torna-se paulatinamente uma condição para a prospecção de recursos e otimização dos resultados das pesquisas históricas.

Diante desse quadro, a historiografia brasileira amplia seu diálogo com a Escola de Dacar. Essa, por sua vez, permanece fiel à sua tradição historiográfica em duas de suas principais preocupações: ampliar, seguindo Boubacar Barry (1988), a grande e bela Senegâmbia até os rios do óleo de palma; interrogar e integrar fontes de língua portuguesa (além de outras línguas europeias) aos principais materiais de construção do conhecimento histórico, como já o fizeram Sékéné Mody Cissoko (1966)Saliou Sarr (1980)Yoro Khary Fall (19911992), e muitos outros. O dossiê “História econômica, política e intelectual da África ocidental: lógicas de intercâmbio” segue esse caminho. A proposta de regionalização da agenda africanista brasileira também resulta de reflexão amadurecida ao longo dos anos e das trocas realizadas em eventos acadêmicos, como as duas jornadas relatadas. Os artigos que os leitores encontrarão indicam, pois, como os estudos africanos têm crescido no Brasil, alcançando reconhecimento e visibilidade nacional e internacional,[1] em fundamental diálogo com historiografias africanas. Intercâmbios entre pesquisadores nacionais e estrangeiros são fundamentais à expansão das perspectivas sobre a História da África, seja em abordagem, metodologias ou debates nos quais se inserem. Atualmente, pesquisas sólidas, focadas na África Ocidental, encontram-se em curso em programas de pós-graduação em História, no Brasil, e indicam a relevância dessa discussão.[2]

A proposta deste dossiê é fomentar a ampliação do campo, trazendo outros problemas, fontes e abordagens. Nutrindo-se do dinamismo do cenário existente, da expertise já em curso na historiografia brasileira dedicada à África Ocidental e agregando colaboradores estrangeiros, apresentamos um conjunto de artigos que lida com o período entre os séculos XV e XIX. O foco está nas conexões, internas e externas, estabelecidas pelas sociedades da África Ocidental, lidas na perspectiva das últimas. Visa ainda ao estímulo a pesquisas em arquivos africanos pouco visitados por historiadores brasileiros, localizados no Senegal, Gâmbia e Guiné-Bissau, além dos bem conhecidos arquivos e documentos europeus. Através desse corpus documental, o dossiê destacará intercâmbios econômicos, políticos e intelectuais dentro do continente africano e desde esse espaço com o exterior. Nossa proposta parte das conquistas teóricas e metodológicas realizadas pela historiografia africanista brasileira, senegalesa e internacional, no que diz respeito ao uso de fontes orais (Henige, 1982Wright, 1991Green, 2012), às pesquisas em arquivos africanos (Nobili, 2016Ceesay, 2018Ngom, 2020) aos métodos de análise de fontes europeias que tratam da África (Jones; Heintze, 1987Horta, 2011) e à busca pela perspectiva africana da História (Sarr, 2016Cooper, 2016).

Dialogando com a bibliografia que aponta a complexidade na História africana, além das dicotomias branco / negro, colonizador / colonizado, estrangeiro / autóctone (Boilley; Thioub, 2004), este dossiê focará na inter-relação entre sociedades sul-saarianas, norte-africanas e europeias, em contextos transitórios, entre os séculos XV e XIX. O número é formado por cinco artigos, escritos por historiadores vinculados a instituições do Brasil, Senegal e Portugal. Trazem temas variados, orientados por diferentes metodologias: 1) justaposição de fontes narrativas europeias, tratados filosóficos africanos e fontes orais para o entendimento da formação de uma cultura política islâmica na Senegâmbia; 2) abordagem historiográfica das diferentes formas de acomodação entre o comércio transsaariano e o trato atlântico, na longa duração; 3) cruzamento entre fontes escritas e orais para estudo das transformações de identidades culturais e dinâmicas de ocupação e reivindicação do espaço; 4) análise de um inquérito produzido no Senegal, em 1844, sob encomenda da administração francesa, acerca dos significados da escravidão, liberdade e sentidos do trabalho; 5) estudo da produção, reprodução e circulação de imagens sobre a conquista europeia na África através do estudo comparado de dois casos oeste-africanos.

Em conjunto, essas pesquisas apontam um panorama sobre a África Ocidental, com destaque para a região conhecida como Grande Senegâmbia, que compreende os territórios dos atuais Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e alcança o norte da Serra Leoa (Barry, 1988Dias; Horta, 2007), além de uma incursão no atual Benim, em perspectiva comparativa. Nossa proposta é estimular o interesse de pesquisadores brasileiros por esse espaço, no período entre os séculos XV e XIX, marcado por intenso dinamismo. Ademais, buscamos evidenciar ao leitor as possibilidades de pesquisa em arquivos africanos, metodologias de trabalho com tradições orais e análises construídas a partir de textos e imagens produzidos na África e / ou na Europa, por agentes africanos e / ou europeus, ao longo do tempo. As fontes utilizadas e as abordagens recorridas indicam a riqueza do diálogo entre tais tipologias e coleções documentais publicadas ou presentes em arquivos europeus. Entendemos que a valorização desse intercâmbio documental e intelectual é necessária à ampliação e aprofundamento dos estudos africanos no Brasil, como já demonstrado pela Escola de Dacar. Dessa forma, este dossiê contribui para esse processo.

O presente número conta com cinco artigos, que abordam desde estudos de casos a análises inscritas na longa duração. A primeira contribuição é “Um coração de rei: cultura política islâmica como antecedente das revoluções muçulmanas na África Ocidental (Senegâmbia, séculos XVI e XVII)”, de Thiago Henrique Mota. Nesse artigo, o autor argumenta que os jihads que ocuparam a agenda política da África Ocidental, com maior fôlego entre os séculos XVIII e XIX, tiveram raízes mais profundas, que germinaram a partir do estabelecimento de uma cultura política islâmica sediada na África atlântica. Os elementos constitutivos dessa cultura política são uma base filosófica islâmica; sua difusão institucional a amplo número de pessoas por meio de escolas corânicas; a produção da ideia de um passado comum e o estabelecimento de expectativas de futuro fundadas num projeto de moralidade islâmica. Tais elementos teriam se articulado diante da ampliação do tráfico de pessoas através do Atlântico e seus variados impactos nas comunidades africanas. Por um lado, ampliação da violência endêmica, da escravização e das desigualdades sociais com rápido enriquecimento das elites locais envolvidas com o tráfico. Por outro, o fortalecimento das demandas por soluções jurídicas para o problema, que protegessem os muçulmanos da arbitrariedade da escravização. A isso se soma maior afluxo de papel procedente do comércio atlântico, aplicado na produção textual religiosa e jurídica islâmica através da região.

Em seguida, temos “Le commerce transsaharien et ses logiques d’accommodation par rapport au commerce transatlantique entre le XVe et le XIXe siècle”, de Idrissa Ba. Esse artigo pretende uma análise historiográfica. Ele convoca amplamente, de uma perspectiva crítica, trabalhos relacionados a três espaços intimamente ligados pela lógica comercial: o Saara, o Mediterrâneo e o Atlântico. No centro do debate, encontram-se as contribuições de David Robinson e de Vitorino Magalhães Godinho. A partir de Robinson, aborda o conceito de acomodação, redefinindo-o e recontextualizando. Em seguida, o conceito é aplicado para demonstrar como os atores e os beneficiários do comércio transsaariano adaptaram-se à abertura e ao comércio transatlânticos: por superposição, competição, colisão, captura de produtos, etc. Neste processo, o autor elabora uma contraposição à famosa fórmula de Vitorino Magalhães Godinho, relativa à vitória da caravana sobre a caravela.

“‘Le loup dans la bergerie’: narrations et identités des sujets de l’ancien royaume de Kasa en Sénégambie – Hommage à Stephan Bühnen (1950-2015)”, de Cornelia Giesing, é a terceira contribuição. Giesing é uma historiadora dedicada às fontes, como demonstrado por sua tradução e comentários acerca do Ta’rikh Mandinka de Bijini, na Guiné-Bissau (Giesing; Vydrine, 2007). Conforme a autora, o “artigo enfoca as divisões territoriais do país ajaa no interior do reino de Kaasa (séculos XV a XIX) através de narrativas sobre seu ocupação”. Na realidade, é por modéstia que Cornelia assim caracteriza sua contribuição, que explora vários documentos, constituídos principalmente por fontes portuguesas e pesquisas que ela própria conduziu em campo, para nos apresentar diferentes aspectos da história de Kaasa e dos reinos vizinhos, ao longo de cinco séculos. Tudo lhe toca: a estrutura política do espaço, em torno da capital Brikama e outras cidades secundárias; uma intensa mistura étnica e cultural (Mandinka-Sooninkee, Bañun, Joolaa, Balantes); o comércio entre o interior e a costa dominada, é verdade, pelo tráfico de pessoas; religiões locais; a exploração da terra e seus recursos. Em filigrana, a autora mostra que todas essas lógicas e dinâmicas foram feitas em detrimento dos povos Bañun que, de mestres e dominantes, tornam-se vítimas, minoritários e em vias de desaparecer. Esse processo macabro para os Bañun é reproduzido por uma frase bem escolhida, que Cornelia toma de tradições orais através da narrativa do comandante de um navio francês. Supostamente qualificando a atitude dos Balantas em relação aos Bañun, tem a seguinte redação: “um Balanta em uma de nossas aldeias é uma raposa no galinheiro”[3].

“‘Não há cativo que não queira ser livre!’: significados da escravidão e da liberdade entre marinheiros do Senegal, século XIX”, de Juliana Barreto Farias, é o quarto artigo. Aqui, o objetivo é compreender os significados da escravidão e da liberdade para os trabalhadores negros que atuavam em embarcações, nos rios e mares do Senegal. O principal aporte documental utilizado é um inquérito realizado em Saint Louis e Gorée, em 1844, no qual homens e mulheres escravizados, entre outros sujeitos, puderam se expressar e dizer o que pensavam sobre o cativeiro e sobre a liberdade. Trata-se de um documento sui generis, pouco explorado pela historiografia, ao qual se somam outras fontes, procedentes de arquivos senegaleses, franceses e publicações. Através da análise dessa seleta documentação, a autora aponta complexidades num sistema escravista vivido entre a ilha de Saint Louis e o continente africano, marcado pela mobilidade dos sujeitos escravizados, pelas relações de trabalho no contexto comercial da goma arábica e pelas hierarquias que estruturavam sociedades mestiças nos primórdios da colonização europeia na África. O sentido da liberdade construído por sujeitos negros – escravos ou livres – passava por uma ideologia marcada pela centralidade do trabalho, tema que era a ocupação central das autoridades coloniais naquela região.

O artigo que encerra o dossiê é um estudo comparado da produção, reprodução e usos de imagens, intitulado “Imagens itinerantes de potentados banidos da África Ocidental (1894-1899)”, de autoria de Silvio Marcus de Souza Correa. O texto é cronologicamente definido pelas capturas de potentados africanos diante da consolidação do colonialismo francês na África Ocidental. Em 1894, Béhanzin, oba do Daomé, foi deportado para a Martinica, após sua rendição diante das tropas francesas; em 1899 foi a vez de Samori Touré, almamy do Futa Jalom, ser deportado para o Gabão, após sua captura no ano anterior. Diante desses eventos, interessa ao autor refletir sobre as imagens desses governantes produzidas após sua captura, o trânsito delas, suas recepções e resignificações ao longo do tempo. Correa argumenta que tais representações fizeram parte da “ocupação imagética” da África Ocidental, termo que faz referência à fragilidade do controle exercido pelas metrópoles sobre os territórios africanos. Por outro lado, diferentes formas de apropriação das mesmas imagens, ao longo do tempo, transformaram-lhes os significados: de potentados africanos capturados como índice do poderio francês, foram lidas no período pós-colonial como ícones da resistência africana frente ao colonialismo. Nos dois casos, trata-se de representações pouco matizadas diante do complexo jogo de poder envolvido na captura desses sujeitos e na relação mantidas por eles com a França, antes e depois de seus exílios.

Portanto, esses textos se complementam, restauram diferentes dinâmicas e lógicas (comerciais, políticas, religiosas, etc.) que ocorreram na África Ocidental, esse vasto espaço constantemente redescoberto à luz das fontes e de sua exploração, entre os séculos XV e XIX. Aqui, as lógicas de intercâmbio são várias. Por um lado, remetem à natureza das trocas, compartilhamentos, acomodações e transformações ocorridos no espaço oeste-africano sob escrutínio. Por outro, dizem respeito aos diálogos e partilhas entre historiadores de distintos pontos da bacia Atlântica, unidos pelo interesse comum na história da África Ocidental. A continuidade desse tipo de intercâmbio depende de investimentos dedicados a pesquisas, por órgãos públicos e privados, nacionais e estrangeiros, e do fortalecimento das relações intelectuais trans-fronteiriças. Tais recursos permitiram a realização deste dossiê, que busca contribuir para nosso maior conhecimento da história africana e suas conexões com outras partes do mundo. Assim, ajuda-nos a compreender o passado da humanidade e a refletir sobre as escolhas feitas e os limites impostos a homens e mulheres, que ecoam na caracterização das sociedades do nosso tempo. Como as lógicas de intercâmbio através do tempo e do espaço bem o demonstram, ninguém é uma ilha, nenhum lugar existe fora do tempo, fora de suas conexões com o mundo. A história e sua construção estão, pois, em andamento, e a elaboração deste dossiê em tempo recorde, por historiadores de várias origens, é um exemplo disso e abre caminho para futuras colaborações, que esperamos que sejam frutíferas.

Notas

  1. Green (2019)publicou um artigo na revista Atlantic Studies discutindo o contributo de vários trabalhos realizados no Brasil à historiografia internacional, concernente aos estudos africanos.
  2. Para ficar em um exemplo, destacamos os resultados já publicados de Malacco (2017).
  3. A expressão original utilizada pela autora, loup dans la bergerie, corresponde a “lobo no curral”. Contudo, trata-se de expressão empregada por um europeu para expressar seu entendimento de tradições orais oeste-africanas, uma vez que o lobo não é uma espécie nativa do Kasa. Diante disso, optamos por uma frase mais familiar aos leitores de língua portuguesa, mantendo o entendimento central da metáfora utilizada.

Referências

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MOTA, Thiago Henrique; BA, Idrissa. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.36, n.71, mai. / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

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História da Historiografia Medieval: Novas Abordagens / História da Historiografia / 2020

Decolonizar a historiografia medieval: Introdução à ‘História da Historiografia Medieval – Novas Abordagens’

“Entendemos por consciência histórica o privilégio do homem moderno de ter plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião.”

Hans-Georg Gadamer, 1963

“Há muito tempo acredito que as formas medievais e pós-modernas de consciência histórica são similares, de modo que a narrativa fundamental da ruptura modernista com o passado medieval encontra pouco crédito e que, em realidade, é o modernismo que representa o momento estranho da concepção ocidental de história”.

Gabrielle Spiegel, 2016

“Os passados subalternos são indicações dessa fronteira [temporal]. Com eles atingimos os limites do discurso da história. A razão de ser disto reside, como afirmei, no facto de os passados subalternos não fornecerem ao historiador um princípio de narração que possa ser racionalmente defendido na vida pública moderna”

Dipesh Chakrabarty, 2000

Nossa relação com o período medieval é ambígua. Por vezes, a Idade Média é negada, distante e estrangeira. Por outras, é muito próxima, senão presente, um passado vivo que nunca se furta aos mais criativos usos. Dentro dessa oscilação entre identidade e alteridade, nesse jogo entre a imagem de uma “origem” e o papel de um “outro ausente”, alguns desejam conhecê-la, outros querem sê-la (SPIEGEL 1997, p. 59; ANKERSMIT 2005, p. 327; CHAKRABARTY 2005, p. 227). O passado, afinal, não costuma aflorar sem a agência humana. Para tanto, é preciso que se organize, na esteira das políticas do tempo, toda uma série de “práticas de sincronização” (JORDHEIM 2014). As mais vulgares dessas práticas utilizam o procedimento clássico dos paralelos: vociferam Deus Vult e inundam a internet com releituras da “descoberta” do Brasil no âmbito de uma “Última Cruzada” (PACHÁ 2019; LANZIERI JÚNIOR 2019; COELHO; BELCHIOR 2020). As mais sofisticadas argumentam sobre a permanência de estruturas de longa duração, relegando-nos, ainda assim, à condição de débito eterno para com a Europa. Outras perspectivas abrem contra as primeiras um combate de morte, e em seu lugar performam os símbolos dos excluídos, das bruxas em luta e dos camponeses em jacquerie. Nelas, alegorias mobilizadas pelos feminismos decoloniais chegam a questionar as consequências políticas da própria sincronização (Cf. OLIVEIRA 2020). No centro dessas tensões, e tentando atravessar tais fenômenos como problemas históricos, estão os dois sentidos tradicionalmente atribuídos ao termo historiografia: o estudo da escrita da história pelos medievais, interessado pela pesquisa de um conjunto limitado de fontes narrativas que permitam a problematização de uma “operação historiográfica” êmica; e os estudos historiográficos que discutem modelos interpretativos, fazem análises de recepções, identificam apropriações, registram efeitos e simultaneidades entre tempos heterogêneos, chegando a denunciar usos e abusos ético-políticos que da Idade Média são feitos desde o mundo contemporâneo (GUENÉE 1980, p. 11-12). Em suma, continuamos a encontrar o presente no passado e o passado no presente. Leia Mais

Martín García Mérou. Vida intelectual y diplomática en las Américas | Paula Bruno

En 1878 el argentino Martín García Mérou obtuvo un reconocimiento en un concurso literario del colegio que le valió el apoyo y la protección, entre otros, de los intelectuales Miguel Cané y Manuel Estrada. Con tan sólo diecinueve años fue nombrado oficial secretario de Cané en Venezuela y Colombia abriéndose así una nueva etapa en su vida de donde surgió la obra Impresiones (1884). Desde entonces, y hasta su muerte en 1905, García Mérou vivirá la mayor parte de su vida fuera de Argentina para representarla y lo hará en un contexto muy específico, el cambio del siglo XIX al XX. Aprovechará sus estancias en los distintos países tanto para recopilar materiales como para escribir sus experiencias y análisis que le permitirán a su vez proponer sus propias reflexiones ante sucesos internacionales. Estas reflexiones propias, así como su distanciamiento de los temas predominantes de la época, hacen que el perfil de García Mérou deba ser estudiado desde otra perspectiva distinta a la de varios de sus contemporáneos que también realizaron labores en el exterior. Precisamente, Paula Bruno con esta obra nos presenta a un intelectual-diplomático, ya que en García Mérou la vida intelectual y diplomática se unen, y nos invita a volver a pensarlo y leerlo de manera integral a través de sus textos.

Este interés de Bruno por las “vidas intelectuales”, por la aproximación biográfica para estudiar una época, no es reciente. Fue promotora de la Red de Estudios Biográficos de América Latina –REBAL– y desde hace años esta historiadora ha publicado varias obras que se enfocan en esa cuestión, distanciándose del modelo de biografía intelectual e inscribiéndose en la historia social de los intelectuales. Para ello, combina en sus trabajos rasgos y circunstancias biográficas con ideas y tramas sociales culturales que le permiten reconstruir los distintos perfiles. Caben mencionar sus libros Paul Groussac. Un estratega intelectual (2005) o Pioneros culturales de la Argentina. Biografías de una época, 1860-1910 (2011). En este último propone un acercamiento a la vida cultural del país de la segunda mitad del siglo XIX e inicios del XX a través de distintas biografías, entre ellas las de Paul Groussac, José Manuel Estrada o Eduardo Wilde, hombres a los que también hará referencia en la obra reseñada y que muestran junto con García Mérou las singularidades de la vida cultural de la época. Por ejemplo, Wilde y García Mérou son dos casos de la conformación de nuevas interpretaciones optimistas acerca del ascenso de Estados Unidos desarrolladas a partir de una experiencia diplomática con el propio país. Leia Mais

El pensamiento conservador y derechista en América Latina, España y Portugal, siglos XIX y XX | Fabio Kolar e Ulrich Mücke

El pensamiento conservador y derechista en América Latina, España y Portugal, siglos XIX y XX, el libro compilado por Fabio Kolar y Ulrich Mücke, asume el desafío de analizar los conservadurismos y derechas en América Latina y la península Ibérica en el extenso período que abarca dos siglos, lo que implica estudiar procesos y actores muy diversos. Las dificultades del cometido están señaladas en la muy sugerente introducción que realizan los editores, quienes plantean que hasta las décadas finales del siglo XX las sociedades iberoamericanas eran consideradas comunidades atrasadas, estancadas en el pasado y ajenas a toda forma de revolución. Las transiciones democráticas y la renovación historiográfica que se produjo en torno a los cambios políticos, trajo una nueva perspectiva sobre los procesos históricos y se comenzó a atender la implantación del orden constitucional, los procesos electorales y la constitución de la ciudadanía. Hoy, existe un consenso en que las independencias introdujeron cambios políticos radicales e incluso revolucionarios. Sin embargo, se ha producido un desequilibrio entre los numerosos estudios acerca del liberalismo y los más escasos análisis sobre los conservadurismos y las derechas. Solo en las dos últimas décadas se empezó a consolidar un campo de estudios que aborde esos idearios y sus prácticas. Kolar y Mücke entienden que se trata de estudios todavía muy limitados a las fronteras nacionales. Si bien, en principio no deja de ser cierto, la afirmación debería matizarse, pues como se puede ver en el propio libro y en los encuentros, simposios y dossiers, cada vez son más los investigadores y las investigadoras que apuntan a trabajos comparativos y enfoques trasnacionales.

Por otro lado, los compiladores señalan las dificultades que generan la ambigüedad, el uso confuso y hasta arbitrario de los términos derecha y conservador. Como solución reclaman conceptos analíticos viables, que superen lo etimológico, las determinaciones clasistas y se enmarquen en su origen y en su propio contexto histórico. El término conservadurismo, tal como lo muestran los artículos del libro fue predominante en el siglo XIX, en tanto que en el siglo XX se impuso el concepto derecha (condicionado relacionalmente con el término izquierda). La derecha se definirá por su contrariedad con las formas igualitaristas, ya que conciben que la desigualdad es natural e inmutable. Conservadurismos y derechas se relacionan en el respeto a las tradiciones. No obstante, reconocen que resulta muy difícil, sino imposible, formular una definición universal para todas las variantes históricas y geográficas. Los editores entienden que las nuevas derechas fueron y son herederas del pensamiento conservador del siglo XIX, pero al mismo tiempo son creaciones del siglo XX, con sus propias características (pp. 7-36). Leia Mais

Quirón. Medelin, v.6, n.12., 2020.

Guerra y Paz en América Latina

Editorial

Artículo

Memorias

Reseña

Transcripciones

Publicado: 2020-05-01

Secuencia. México, n.107, mayo/agosto, 2020.

Artículos

Que história pública queremos? Ana Mauad, Ricardo Santhiago e Viviane Trindade

Organizado por Ana Maria Mauad, Ricardo Santhiago e Viviane Trindade Borges, o livro “Que história pública queremos?” (What public history do we want?) convida os leitores a participarem de um debate que caracteriza o campo e os caminhos da história pública no Brasil. Como novidade, essa produção de 2018, escrita por historiadores brasileiros e brasilianistas, oferece a tradução dos seus vinte capítulos para o inglês, o que ressalta não só a relevância dos percursos reflexivos (Que história pública queremos?) e práticos (Que história pública fazemos?) estabelecidos em território nacional, mas suas perspectivas de alcance internacional, que não descartam, segundo os organizadores, influências e diálogos do Brasil com as tradições teóricas estrangeiras referentes à área.

Adicionam-se ao catálogo editado pela Letra e Voz1 esses textos em que os autores compartilham suas visões sobre história e história pública ao mesmo tempo que repensam seus próprios campos, temas, objetos, métodos e objetivos de pesquisa. Assim, o que caracteriza a contribuição do livro perante a pretendida história pública brasileira é exatamente a união entre uma espécie de autoavaliação das trajetórias e experiências teóricas e práticas do ofício do historiador e a redescoberta da “dimensão pública do conhecimento histórico” (MAUAD; SANTIAGO; BORGES, 2018, p. 11). Leia Mais

Plínio Salgado: um católico integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975) | Leandro Pereira Gonçalves

O filósofo da ciência Karl Popper (1980) costumava afirmar que o conhecimento científico é, acima de tudo, uma luta contra o marasmo e as supostas verdades preestabelecidas dentro do próprio campo científico. Podemos compreender esse “marasmo” e as “supostas verdades estabelecidas”, em parte, como os próprios estudos científicos que marcam época e criam um establishment em determinada área de pesquisa. Leia Mais

Infâncias e juventudes no século XX: histórias latino-americanas – AREND et al (RBH)

“Atenção! atenção! É uma nova era no Brasil, menino veste azul e menina veste rosa” (Pains, 2019). O ano de 2019 acabara de desabrochar quando a recém-empossada ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, proferiu tais palavras sob coro e aplausos calorosos. Carregada de significados e intenções, a declaração de Damares também dá voz, involuntariamente, ao questionamento: quais os atributos da infância na História do Tempo Presente? Se existem, quem os criou e com quais interesses? Leia Mais

Cinema e território na história audiovisual da América Latina, África e diásporas / Revista Transversos / 2020

O cinema mantém relação com o território desde o berço, se for considerada apenas a dimensão mais basal de territorialidade – o espaço. A fotografia, que lhe antecedeu, já era capaz de fixar as distâncias em imagens, mas o cinema inaugurou a possibilidade de representar sua ocupação. Entre as primeiras fitas produzidas no século XIX, são comuns as cenas apresentando pessoas e objetos deslocando-se entre as margens estáticas da câmera e da tela, apossando-se do vazio. Em uma espécie de arqueologia do cinema, Vanessa R. Schwartz explora o gosto do público pela realidade em Paris, no fim-de-século. Entre as práticas analisadas pela autora, estava o apreço de espectadoras e espectadores pelos panoramas, que consistiam em montagens fotográficas conectadas de modo a gerar a impressão de uma vista “real” de uma paisagem, efeito propiciado por uma série de elementos técnicos, tais como iluminação, ruídos e movimento. Embora o primeiro cinema não tenha correspondido logo a esse desejo, seus desdobramentos iriam se ocupar em dar a ver e interpretar paisagens, por meio de uma flânerie (perambulação despreocupada) virtual:

Não é mera coincidência que, além do interesse das pessoas pela realidade, as atividades descritas [neste texto] se deram com os grandes grupos de pessoas em cuja mobilidade residiam alguns dos efeitos realistas dos espetáculos. Essas práticas revelam que a flânerie não foi simplesmente privilégio do homem burguês, mas uma atividade cultural para todos os que participavam da vida parisiense. (SCHWARTZ, 2001: p. 436)

Esse traço incipiente seria aprimorado ao longo do século XX, conforme aumentavam os recursos narrativos à disposição dessa novidade tecnológica, que se consolidava como indústria e arte. Iniciaram-se as representações qualitativas do espaço – as cidades e, mais tarde, as áreas rurais, passaram a protagonizar películas e a propiciar um debate sobre o direito de ocupá-las; alguns países começaram a incorporar o cinema como parte de seus patrimônios culturais, formando-se a ideia de cinemas nacionais; povos sem território usaram o cinema na luta pela ocupação de um e a guerra de fronteiras se tornou tema de filmes; no século XXI, a busca por representações diferenciadas de um mesmo território, de ângulos inexplorados ou interditos, ganhou impulso com a democratização dos meios de produção de imagens.

Seguindo as observações de Dolores Hayden (2014), a palavra “lugar” é carregada de sentidos e, entre eles, está a referenciação do pertencimento ao mundo social, o que pode ser notado em expressões corriqueiras, como “mostrar a alguém o seu lugar” ou “o lugar da mulher”. Esse uso social do termo lhe dá uma história política, que pode sem esforço ser associada aos territórios – pertencer ou não a um lugar é matéria de formação identitária. Nesse percurso, o cinema habitou territórios contínuos ou multisituados, como no cinema de diáspora e de exílio. Territórios fractais, nos quais noções como cidadão e estrangeiro não se sustentam mais. E não apenas de espaços geográficos fala a longa relação entre cinema e território. Como no filme de Isaac Julien (Territories, 1984), territórios também dizem respeito a raça, classe e sexualidade, traçando uma geografia de terras e de corpos.

Ao longo da história, cinema e território seguem refazendo seus mapas, das imagens coloniais usadas como instrumentos de dominação às novas cenas realizadas por cineastas indígenas e africanos. Em terras latino-americanas, a relação com o território inaugurada pelo Cinema Novo / Nuevo Cine se desdobra em cinematografias diversas, especialmente as que são feitas nas margens – Cinema Negro, Indígena, Periférico. Talvez seja possível traçar rotas que levem do Pátio (1959) baiano de Glauber ao Quintal (2015) de periferia mineira de André Novais de Oliveira. De Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, a Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. De memória do subdesenvolvimento (1968), de Tomás Gutiérrez Alea, a Nostalgia da luz (2010), de Patricio Guzmán, passando por sertões, desertos, becos, vielas, quebradas e favelas.

No cinema português, Pedro Costa destaca as vivências periféricas de Vitalina Varela e Ventura, cabo-verdianos que deambulam por Lisboa, outrora capital de um império colonial, enquanto Filipa César trabalha o arquivo fílmico da Guiné-Bissau como território identitário de um dos mais singulares processos de descolonização em África. Cineastas afrodescendentes, como o santomense Silas Tiny ou os guineenses Vanessa Fernandes e Welket Bungué, enfatizam a auto- representação na revisão da história e memória do colonialismo. Noutro sentido, Salomé Lamas trabalha de forma concêntrica a ideia de fronteira como mutação humana imposta aos territórios, nomeadamente o complexo mapa geo-político do Leste europeu após o colapso soviético (Extinction, 2018), as explorações mineiras nas cordilheiras andinas de La Rinconada e Cerro Lunar (El Dorado XXI, 2016), ou a floresta de concreto paulistana (Horizon Noziroh, 2017).

Em um momento em que vivemos as consequências de incapacidade histórica (branca ocidental) de compreender e de reverter o estrago que fizemos e seguimos fazendo na natureza, em nós mesmos e no outro, nessa barbárie operada desde a Modernidade e que é chamada de civilização, progresso e desenvolvimento, talvez seja o cinema a arte que possui mais recursos para realizar a quebra que Denise Ferreira da Silva vem experimentando a partir da idéia de “po-ética”: aquilo que vai contra o tempo linear que separa, classifica e ordena. A po-ética opera por composição e decomposição, juntando e compondo uma imagem. O cinema como o que nos retira do tempo linear ao colocar passado, presente e futuro simultaneamente. Histórias feitas são refeitas, denunciadas. Experiências de trauma, violência, amor, cuidado e cura podem ser compartilhadas e trabalhadas nos complexos processos de construção e afirmação de identidade, que passam tanto pela memória, quanto pela criação.

A po-ética do cinema é poética, é ética, é política. No jogo co(i)mplicado entre imagens, narrativas e sons, o cinema pode escolher fazer da tela um território para tudo o que a história deixou sem arquivos e sem vestígios, pois um filme é capaz de mobilizar sensações e experiências e de ir além, contribuindo para que novos sentidos históricos com relação a corpos e lugares sejam instituídos.

Para que novos sentidos históricos sejam instituídos é preciso multiplicar e garantir a presença de muitos e variados territórios, compondo o que a maioria dos espectadores entendem por “cinema”, para além das produções euro-americanas. Isso implica não apenas em um cinema que traga diferentes territórios e seus povos, modos de vida e perspectivas como tema, mas também a territorialização de recursos financeiros para fomentar produções de grupos situados à margem dos circuitos mainstream (que existem não apenas fora, mas também dentro mesmo do sul global) e sua distribuição, para que possam deixar cada vez mais de ser apenas um encarte, um suplemento, uma edição especial ou uma breve menção em festivais, cursos de cinema e na mídia.

Não poderíamos deixar de mencionar que este dossiê foi organizado ao longo da pandemia de Covid-19, na qual a relação entre desigualdade e territórios se tornou ainda mais evidente. A vulnerabilidade extrema de territórios quilombolas, indígenas, campesinos, de favelas e bairros proletários, constatada mesmo em um cenário de subnotificação de casos de pessoas infectadas e de mortes, expõe mais do que nunca as consequências das políticas de segregação, abandono, expropriação, exploração e extermínio da população afro-pindorâmica.

A pandemia tornou ainda mais explícito um cenário no qual uma parte hiper privilegiada da população pode manter seu estilo de vida, sua segurança “em casa” ou mesmo seus deslocamentos, valendo-se de e colocando em risco os mesmos corpos que sempre foram usados para garantir sua sobrevivência e conforto, enquanto esses últimos lidam com essa nova ameaça sem que as antigas cessem ou mesmo diminuam. Os territórios das favelas e periferias seguem perdendo o sono, a saúde e a vida (majoritariamente as vidas negras) em operações policiais, terras indígenas e quilombolas seguem sofrendo desapropriação ou sendo ameaçadas, assentamentos rurais são removidos. Reverter esse quadro envolve que a voz e a câmera estejam nas mãos desses povos e daqueles que a eles se juntam na luta por um mundo igual e justo. Segue a longa história entre cinema e território – passados, presentes e futuros; utópicos e distópicos; simbólicos e reais – fazendo-se presente mais uma vez.

Nosso dossiê explora o tema “Cinema e Território” em perspectiva transversal, entendendo, inclusive, que a própria ideia de território possa ser desfeita e refeita a partir de outras cosmovisões.

No seu texto, Tatiana Hora Alves de Lima investiga o imaginário utópico da construção de Brasília nos cinejornais financiados pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap), empresa pública responsável pela construção e controle da cidade, abordando os encadeamentos entre tempo histórico e tempo narrativo nas mitologias do bandeirantismo e do “descobrimento” atualizadas nesses filmes, vinculadas aos ideais da refundação e do desbravamento do país e sob a égide do progresso. Nesses cinejornais, as menções a acontecimentos históricos situados no passado (a exemplo do “descobrimento” e do bandeirantismo) são sempre articuladas a referências ao futuro, num movimento constante entre historicizar e desistoricizar, havendo uma clara distinção entre sujeito e objeto. Há uma associação entre o olhar e o pensamento, em que os personagens capazes de pensar e criar são aqueles que podem assumir o ponto de vista da câmera, a exemplo do presidente Juscelino Kubitschek, o arquiteto Oscar Niemeyer, ou o urbanista Lúcio Costa, enquanto os operários são corpos unicamente engajados na ação física e numa relação de simbiose com as máquinas, como se a mão de obra compusesse o maquinário da construção da nova capital.

Wallace Andrioli Guedes, em A vida provisória: um conto de três cidades no pós-golpe de 1964, aborda o filme A vida provisória (Maurício Gomes Leite, 1968), realizado no imediato pós-golpe de 1964. O foco do artigo está no modo como o filme utiliza os espaços de três grandes cidades brasileiras – Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília – na narrativa, construindo um olhar melancólico para o contexto em que foi realizado. Além disso, explora os recursos narrativos mobilizados pelo filme para caracterizar cada um desses territórios, representativos de qualidades políticas (entendidas numa acepção ampla, que abarca a micropolítica) definidora do momento histórico enfrentado pelo país no contexto da criação da obra.

Amanda Danelli Costa, em A “Bahia de Todos os Santos” de Jorge Amado e Maurice Capovilla: na encruzilhada entre guia e documentário, realiza análise comparada de Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios de Salvador, publicado em 1945 por Jorge Amado, e o documentário Bahia de Todos os Santos realizado por Maurice Capovilla à luz do guia, e exibido no programa Globo Repórter, da Rede Globo, em 1974. A abordagem demonstra como a crueza das condições de vida do povo baiano, e o encantamento de sua múltipla cultura urbana, são observadas de forma engajada pelo romancista e pelo diretor. Ainda, explora o modo como essa “baianidade” é entendida por ambos como sinônimo de brasilidade, tomando o território urbano e suas especificidades como um dos loci definidores da nacionalidade.

Pode a corporalidade expressar territorialidades e reterritorializações? O artigo Construção de Territorialidades Ancestrais por Meio do Samba em Aniceto do Império: em dia de alforria? de Fábio José Paz Rosa, transita por essa pergunta, regido pelo olhar de Zózimo Bulbul em seu filme Aniceto do Império (1981). O texto nos lembra como o cineasta, já em Alma no olho, seu primeiro curtametragem, realizado em 1973, “demonstra uma nova e potente estética ao apresentar os sujeitos negros livres em territórios africanos e sem os subjugamentos corpóreos, históricos e sociais nos processos pós-abolicionistas, por meio da mise en scène”. Busca então processos parecidos que evidenciaram também em Aniceto do Império a corporeidade como estética que referencial o passado para refazer o presente a partir de ancestralidades africanas e afro-brasileiras. Através da corporeidade e musicalidade de Aniceto, testemunhamos a favelização do Rio de Janeiro, mas também os afetos, o trabalho e a religião como espaços da luta entre liberdade e opressão. Pelo olhar e genialidade de Bulbul, a vida e obra de Aniceto do Império nos convida a revisitar Madureira, região do Porto e Morro da Serrinha, dando a eles novos sentidos e materialidade a partir da presença e herança negra.

Utilizando o método comparativo para traçar relações entre os modos de representação do trabalhador mexicano, o artigo Mãos à Obra: a Representação do Trabalhador Mexicano nos Estados Unidos em Salt of the Earth e Espaldas Mojadas, de Maurício de Bragança, nos guia pelo universo de dois filmes cronologicamente próximos e ideológica e simbolicamente separados por uma linha fronteiriça, que separa mais do que territórios geográficos (uma produção é mexicana e a outra, estadunidense). O contexto histórico-social do trabalhador mexicano nos Estados Unidos vai sendo delineado em uma retrospectiva inversa, dos tempos atuais até os anos de 1950, época de produção dos filmes. No trajeto por narrativas, imagens e canções dos filme Salt of the Earth, dirigido por Herbert J. Biberman em 1954, e de Espaldas Mojadas, dirigido por Alejandro Galindo em 1955, enriquecidos por dados oficiais e pela escolha de uma bibliografia latino-americana, emergem as distinções éticas que regem e sustentam cada olhar.

Em Corpos pós-coloniais e desterritorialização: gestos e movimentos afetivos em Bom trabalho (Claire Denis, 1999), Mariana Cunha e Catarina Andrade propõem uma análise do filme de Claire Denis, cuja narrativa se concentra nas memórias do sargento Galoup, expulso da Legião Francesa em Djibouti, e que retrata a ocupação colonial enquanto alerta para a sensorialidade dos corpos dos soldados da Legião através de imagens ritualísticas desses corpos nos espaços e na paisagem desértica de Djibouti. Mariana e Catarina refletem sobre a forma como o filme compõe os espaços e os corpos a partir da noção de desterritorialização em uma ampla acepção – ou seja, no sentido de deslocamento físico, mas também no sentido trazido por Gilles Deleuze (1983) em relação à imagem-percepção e à imagem-afecção. As autoras concluem ainda que as escolhas estéticas e narrativas evidenciam a tendência de Denis a priorizar os gestos e as performances dos corpos, assim como a inscrição desses corpos no espaço pós-colonial, em detrimento de uma narrativa pautada na causalidade histórica que pudesse estabelecer uma relação simbólica direta entre a violência e o trauma das identidades pós-coloniais.

Michelle Sales e Ana Cristina Pereira oferecem, em Contracinema: Mulher e Território nos filmes Yvonne Kane (2015), de Margarida Cardoso, e Praça, Paris (2017), de Lucia Murat, uma reflexão sobre o “cinema de mulheres” como “contracinema”, numa proposta de analisar o olhar da mulher branca sobre a “outra”, no caso, a mulher negra. Nos dois filmes, produzidos nos dois lados do Atlântico, as autoras analisam a relação construída entre a subjetividade feminina das personagens em relação com a paisagem / território (seja em África ou no Brasil), que parece sublinhar uma tensão racial entre a mulher branca e a mulher negra, partindo de um olhar analítico construído a partir da teoria e crítica feminista de cinema e do feminismo interseccional.

Alexsandro de Sousa e Silva, em Cinema e transterritorialidade: uma entrevista com Suleimane Biai (Guiné-Bissau), conversa com o cineasta, formado em direção de cinema na Escola Internacional de Cinema e Televisão (EICTV), de San Antonio de los Baños (Cuba) e que trabalha no Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual (INCA), na Guiné-Bissau. A entrevista explora a multiterritorialidade desse trabalhador do cinema em terras africanas, em relação com os legados sociais herdados do período de colonização europeia sobre a África. A pluralidade dos territórios que atravessam e são (foram) atravessados por Suleimane podem ser notados nas viagem físicas possibilitadas por sua formação e atuação profissional, e nas suas parcerias, como aquela empreendida com a artista visual portuguesa Filipa César, responsável pelo processo de digitalização do patrimônio fílmico do país, no projeto Luta ca caba inda (“A luta ainda não acabou”, em crioulo).

Na seção Experimentação, Clementino Luiz de Jesus Junior, Celso Sánchez e Dulce Maria Pereira narram o processo de realização do filme A Padroeira – Por um direito ao olhar, de Clementino Junior. Contam como o cineasta, que viaja para Mariana – MG com duas missões audiovisuais iniciais, acaba sendo surpreendido por um pedido local que se desdobra na obra que dá título ao artigo. O primeiro objetivo seria filmar depoimentos de atingidos pelo desastre criminoso da Barragem de Fundão e imagens do derramamento “de cerca de 55 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos de mineração ainda presentes mesmo três anos depois, do derramamento de cerca de 55 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos de mineração”. O segundo seria promover uma formação audiovisual para os atingidos da Barragem de Fundão, na intenção de buscar formas possíveis para uma educação ambiental emancipatória a partir de uma pedagogia que não se separasse do território. Ao chegar no município, Clementino recebe o pedido de Luzia, uma ativista local, o para que filme a festa da padroeira na igreja de Santo Antônio, única edificação que resistiu à “enchente de lama que praticamente extinguiu a localidade do mapa”. O resultado é o filme A Padroeira, que, em uma paisagem coberta pela lama e pela impunidade, retrata a resistência e a fé de um povo compulsoriamente deslocado de seu território.

Na seção de artigos livres, Mariana Queen Ifeyinweze Nwabasili, em Carnaval, carnavalização e discursos de representação negra no Brasil na construção estética e narrativa do filme Xica da Silva analisa a película de Cacá Diegues (1976) e seu contexto de criação, considerando a influência da literatura ficcional e científica sobre relações raciais e de gênero. O conceito de carnavalização, conforme trabalhado por Mikhail Bakhtin, tem papel central em sua abordagem. A autora mapeia os modos como Chica / Xica da Silva foi reelaborada pela literatura, desfiles de escolas de samba e pelo cinema, demonstrando o quanto a representação das pessoas negras (em especial, as mulheres) é devedora dessa trajetória seguida pela personagem.

Por fim, agradecemos às autoras e autores pela confiança e a todos e todas pareceristas pela valiosa colaboração, que muito contribuíram para garantir a qualidade das publicações. Esperamos que a leitura dos artigos deste número da Revista TransVersos contribua para a ampliação de debates e pesquisas sobre a exploração audiovisual de múltiplos territórios. Que o contato com esses textos possa incentivar leitores e leitoras a se lançar à busca de si, por meio de filmes e territórios.

Referências

HAYDEN, Dolores. “Urban Landscape History”. In: Jack Gieseking et al (eds.). The people, place and space reader. New York: Routledge, 2014.

FERREIRA DA SILVA, Denise. Toward a Black Feminist Poethics: The Quest(ion) of Blackness Toward the End of the World. The Black Scholar, Vol. 44, No. 2, States of Black Studies (Summer 2014), pp. 81-97.

MERCER, Kobena. Travel and See. Black Diaspora Art Practices Since the 1980s. London: Duke University Press. 2016.

NAFICY, Hamid. An Accented Cinema. Exilic and Diasporic Filmmaking. New Jersey: Princeton University Press, 2001.

ROSÁRIO, Filipa; VILLARMEA ÁLVAREZ, Iván (eds.). New Approaches to Cinematic Space. London: Routledge, 2018.

SCHWARTZ, Vanessa R. “O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público pela realidade na Paris fim-de-século”. In: Leo Charney; Vanessa R. Schwartz (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2011.

Paulo Cunha – Professor Auxiliar no Departamento de Artes da Universidade de Beira Interior, na qual é diretor do Mestrado em Cinema. Membro do LabCom – Comunicação e Artes e colaborador do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares do Séc. XX da Universidade de Coimbra. É Doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, com uma Bolsa de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Actualmente, desenvolve pesquisa de pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense. Investigador do projeto “O Império colonial português e a cultura popular urbana: visões comparativas da metrópole e das colónias (1945-1974)”, desenvolvido no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, com financiamento da FCT (PTDC / CPC-CMP / 2661 / 2014). Coordenador Editorial da Aniki: Portuguese Journal of the Moving Image (2018-2020), do Seminário Temático Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos SOCINE (2016- 2019), do Grupo de Trabalho Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos da AIM (2015-). Vice-Presidente da Federação Portuguesa de Cineclubes (2018-2020) e programador do Cineclube de Guimarães e do festival internacional de cinema Curtas Vila do Conde. Conferencista convidado em diversas conferências e palestras, nomeadamente: Universidade de São Paulo (USP, Brasil), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, Brasil), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil), Universidade Federal do Paraná (UFPR, Brasil), Universidade do Estado do Amazonas (UEA, Brasil), Universidade Estadual do Maranhão (UEMA, Brasil), Universidade Federal do Tocantins (UFT, Brasil), Universidad de Salamanca (USal, Espanha), Università degli Studi di Firenze (Itália), entre outras.

Liliane Leroux – Procientista na área de Artes (Faperj / UERJ). Pós- doutorado em Cultura em Periferias Urbanas – UERJ (bolsa Capes). Graduada em Ciências Sociais (Sociologia) pelo IFCS / Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (bolsa Capes). Professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tema de Pesquisa: Cinema em periferias urbanas, Criadora e co-coordenadora do Núcleo de Estudos Visuais em Periferias Urbanas – NuVISU (CNPq / UERJ) e do projeto Caxias du Cinéma (FEBF / UERJ). Co-coordenadora do GT Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos da AIM – Associação de Investigadores em Imagem em Movimento. Foi co-coordenadora do ST Cinemas Pós-Coloniais e Periféricos da Socine (2017-2019). Ampla atuação profissional em avaliação e pesquisa de projetos culturais (foco em cultura, audiovisual e novas tecnologias). Atuação como avaliadora do Programa Cultura Viva (MinC), parecerista da Secretaria Estadual de Cultura (Cultura digital e audiovisual). Consultora em projetos do INEP e SEEDUC (RJ) e pesquisadora da UNESCO. Atuou em projetos de telecentros comunitários em periferias do Brasil, África e países da América-latina. Membro da AIM – Associação de Investigadores da Imagem em Movimento de da International Sociological Association – ISA (WG – Visual Sociology e TG Senses and Society). Membro da SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. Co-diretora (com Rodrigo Dutra) do filme Armanda (2017).

Carlos Eduardo Pinto de Pinto – Professor adjunto do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciência Humanas (IFCH) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em que atuou como Subchefe entre 2018 e 2019, sendo professor permanente do Programa de Pós- Graduação em História (PPGH-UERJ). Possui bacharelado e licenciatura em História pela UERJ (2001), mestrado em História Social da Cultura pela PUC-Rio (2005) e Doutorado em História pela UFF (2013). Usufruiu, no primeiro semestre de 2012, de Bolsa CAPES de Doutorado Sanduíche no Exterior, com atividades na Université Paris VIII e no Laboratoire d’Histoire Visuelle Contemporaine (Lhivc), vinculado à École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividades / UERJ (NUBHES), do Laboratório de História Oral e Imagem / UFF (LABHOI) e do Núcleo de Estudos Visuais em Periferias Urbanas / FEBF-UERJ (NuVisu). É membro do GT Imagem, Cultura Visual e História da Anpuh-Rio e do GT Audiovisual, Ensino de História e Humanidades. Tem experiência na área de História do Brasil República, atuando principalmente nos seguintes temas: história do Rio de Janeiro, cidades, arquitetura, representações, imagens, cinema, Cinema Novo, Chanchadas, subjetividades. É autor de romances, contos e poemas, utilizando o nome literário EDUARDO CHACON. Em 2019, publicou o romance A perna de Sarah Bernhardt, pelo Kindle / Amazon (e-book).


CUNHA, Paulo; LEROUX, Liliane; PINTO, Carlos Eduardo de. Apresentação. Revista Transversos, Rio de Janeiro, n.19, mai. / ago., 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

História Militar. [?],v.11, n.27, maio, 2020.

Edição 27 (Ano XI, maio de 2020)

  • Pax Assyriaca: sem vitória não há paz
  • Luiz Alexandre Solano Rossi
  • De como a Rússia chegou aos Mares
  • William Carmo Cesar
  • O colapso do figurino francês: a crescente americanização do Exército Brasileiro nas páginas da Revista Militar Brasileira
  • Cesar Alves da Silva Filho
  • A Força Aérea Brasileira na Segunda Guerra Mundial: questão social e étnica
  • Heitor Esperança Henrique
  • Trauma, guerra e arte: um estudo de caso do filme “Vá e veja” e sua relação com o culto da Grande Guerra Patriótica na União Soviética
  • Jorel Musa de Noronha Lemes e Rafael Licinio Tavares
  • Militares estaduais do Paraná e a Força Expedicionária Brasileira: de 1942 a 1951
  • José Eleutério da Rocha Neto
  • Entre armas e pincéis: o quadro “Batalha do Avaí” e o seu contexto histórico de produção
  • Ricardo Luiz de Souza
  • Livro em destaque: “A Face da Batalha”
  • História Militar. [?], v.28, nov., 2020.

Disputar la ciudad – MONTEALEGRE; ROZAS-KRAUSE (EURE)

MONTEALEGRE Pía merreader emol cl Ciudad
MONTEALEGRE Pía Disputar la ciudad CiudadPía Montealegre / www.merreader.emol.cl

MONTEALEGRE, Pía; ROZAS-KRAUSE, Valentina. Disputar la ciudad: sometimiento, resistencia, memorialización, reparación. Talca: Bifurcaciones, 2018. 200 pp. Resenha de: VIVANCO, Lucero de. Disputar la ciudad: sometimiento, resistencia, memorialización, reparación. EURE (Santiago) v.46 n.138 Santiago mayo 2020.

El extenso desarrollo de los estudios sobre autoritarismos, violencia política, derechos humanos y memoria social en América Latina y el mundo no hace más que expresar la necesidad de continuar profundizando estos temas, labor indispensable para la consolidación de prácticas, instituciones y regímenes democráticos. Bajo la convicción de que estas problemáticas deben ser tratadas interdisciplinarmente si se quiere capturar la complejidad que las caracteriza, Disputar la ciudadsometimiento, resistencia, memorialización, reparación, constituye una significativa contribución, al ingresar desde la perspectiva contemporánea y global de los estudios urbanísticos y sus vínculos con el campo de la memoria.

En consecuencia, el primer aporte que hay que reconocerle a este libro es su aproximación enriquecedora, pues añade una dimensión espacial a las interpretaciones temporales y simbólicas del problema. Se rebasan así tanto las reflexiones historiográficas como los estudios sobre memoria hechos desde la literatura y los estudios culturales, usualmente anclados en las representaciones estéticas y el develamiento de las ideologías políticas dominantes. Disputar la ciudad, alternativamente, despliega las relaciones teóricas –y sus correspondientes estudios de casos– entre procesos de memorialización y transformaciones urbanas, entendiendo que los contextos urbanos y las disputas de poder entre la ciudadanía y los regímenes autoritarios promueven e instauran los espacios de memoria.

En efecto, en la “Introducción”, de las editoras, y en los ocho capítulos que conforman este libro subyace, por un lado, el entendimiento de que la memoria –siguiendo a Elizabeth Jelin– es una zona de batalla, una instancia en la que narrativas, subjetividades y afectos ingresan a la arena del poder en busca de visibilidad, reconocimiento y legitimación; y, por otro lado, la idea de la ciudad como una geografía contenciosa, de enfrentamiento continuo entre grupos hegemónicos y subalternos, centro y periferia, gentrificación y desplazamiento, transformación y tradición, regulación y segregación, violencia y resistencia. La vinculación entre violencia de Estado y disciplinamiento urbano, primero, y entre espacio y memoria histórica, después, se explica y justifica entonces como una instancia relacional, bajo la impronta de la “disputa”. En este sentido, el libro está alineado sobre dos pilares: uno teórico, que amplía el concepto de memoria con el de pugna de poder; y otro metodológico, que explora las transformaciones urbanas que son suscitadas por los procesos de memorialización.

Otro de los aportes de este libro es que los ocho capítulos que siguen a la introducción se organizan en cuatro secciones funcionales a cuatro conceptos clave, señalados ya en el título del libro: “sometimiento”, “resistencia”, “memorialización” y “reparación”. Estos conceptos son comprendidos, según las propias editoras, como “espacios relacionales de la memoria” (p. 9), donde el espacio no se limita a ser definido como un escenario contenedor, y la memoria no se constriñe a ser concebida como proceso social anclado en el tiempo. Sometimiento, resistencia, memorialización y reparación son, bajo esta perspectiva, operaciones de disputa urbana.

Como explican las propias editoras, pero también como se desprende de los estudios de caso, el sometimiento, primer eje conceptual del libro, está dado, desde la perspectiva racionalista de la modernidad, por “la metáfora de la ciudad como un cuerpo enfermo, como un enemigo del orden que debe ser dominado” (p. 9). En este marco, urbanismo es la marca del poder jerarquizado actuando sobre el espacio, para sanar, higienizar, controlar la ciudad; para someterla. Los estudios que conforman esta sección tienen el foco puesto en dos ciudades europeas: Roma y Sofía.

Respecto de Roma, Federico Caprotti, en “Patologías de la ciudad: hipocondría urbana en el fascismo italiano”, recuerda y discute la particular visión negativa que el fascismo tenía de esta ciudad, y que expresaba mediante un discurso dualista explícito que contraponía la “naturaleza prístina” a la “sociedad enferma”. El estudio analiza las razones que cimientan este rechazo: por un lado, el temor ante el potencial subversivo de la ciudad y, por otro lado, el peligro de la ciudad en tanto portadora de afecciones sociales y morales. Se explica así la orientación de las políticas de dicho régimen hacia la ruralización y la desurbanización.

Respecto de Sofía, en “Sobre los sin-casa: caos, enfermedad y suciedad en la Sofía de entreguerras”, Veronika Dimitrova aborda críticamente el tema de las transformaciones urbanas experimentadas por esta ciudad en el marco de su designación como capital de Bulgaria. Explica la autora que la ciudad se reguló casi exclusivamente en su parte central, dejando la periferia fuera de la planificación, lo que tuvo como consecuencia el desarrollo de barrios de personas “pobres sin-casa”. Dimitrova sostiene que, a diferencia de otros Estados europeos, “aquí es posible hablar de modernización y expansión urbana en cuanto proceso de negociación” (p. 47) que se lleva a cabo como una expresión de resistencia al poder.

“Si el sometimiento es una acción relacionada al poder jerárquico, la resistencia es inherente al poder ciudadano” (p. 11), plantean las editoras siguiendo a Michel De Certeau. Se entiende así que el espacio se configura como una táctica de resistencia urbana, segundo eje conceptual, frente a un amplio arco de violencias: desde las más visibles y materiales de los regímenes autoritarios, hasta los violentos eufemismos del capital. Bajo este segundo apartado se presentan dos importantes estudios sobre las ciudades de Santiago de Chile y São Paulo.

Diene Soles, en “Reconfigurando lo público y lo privado en el Santiago de Pinochet: un análisis de género”, releva la capacidad articuladora de las mujeres para crear organizaciones ciudadanas, no solo frente al empobrecimiento de la población derivado de la implementación de políticas neoliberales, sino también demandando la vuelta a la democracia como un modo de rechazar la violencia inmanente del régimen. Argumenta la autora que, mediante estas tácticas de resistencia, se quiebra la distribución tradicional de género entre lo privado y lo público. Se logra así que los espacios íntimos y domésticos sean usados como lugares de acciones colectivas y, más importante aún, que las mujeres se conciban a sí mismas como actoras sociales y agentes de cambio.

En “Procesos de significación en los modos de resistencia urbana”, Beatriz Dias y Eneida de Almeida levantan el caso de la megaciudad de São Paulo, para reconocer en ella diversos colectivos de arte urbano que actúan desde una periferia marginada, excedente directo del poder económico. Estos colectivos se despliegan desde el pensamiento-acción, como faces de la lucha por el derecho a la ciudad y la resistencia a la segregación urbana. Un punto central de la argumentación radica en la construcción de identidades, en tanto que los sujetos que interactúan con los colectivos, “al transformar la ciudad a partir de los deseos y necesidades colectivas, su propia identidad también es reconfigurada” (p.102).

Por memorialización, tercer eje conceptual, las editoras entienden “la concreción de un recuerdo en un lugar”, la instancia en la que “la relación entre memoria y espacio se materializa” (p. 13). Santiago de Chile y Medellín son las ciudades que reciben la atención de los dos estudios de esta sección. Coinciden ambos en expresar las disputas por la memoria cuando se trata de conmemorar a las víctimas, ya que la “víctima” –su definición, su identificación, su reconocimiento–, muchas veces imposibilitada de abandonar una “zona gris”, en el decir de Primo Levi, es también motivo de pugnas y exclusiones.

Carolina Aguilera, en “Santiago de Chile visto a través de espejos negros. La memoria pública sobre la violencia política del periodo 1970-1991 en una ciudad fragmentada”, hace el seguimiento histórico y crítico a la inscripción de memoriales en el espacio público en conmemoración de las víctimas de violaciones a los derechos humanos, perpetradas desde 1970 hasta el fin del régimen pinochetista. Su argumento busca demostrar la interconexión entre la distribución urbana de los memoriales y la propia segregación socioeconómica de la ciudad, develando así la heterogeneidad subyacente a los procesos de memorialización y la naturaleza combativa de la memoria. Cabe destacar que la autora facilita a sus lectores una línea de tiempo y una cartografía de los memoriales erigidos durante este periodo.

Medellín viene de la mano de Pablo Villalba en “Entre ruinas, lugares y objetos residuales: la memoria en la ciudad de Medellín”. En línea con los “ejercicios de memoria” que están en la base de los procesos de paz en Colombia, el autor afirma que se ha admitido un pluralismo en las marcas y los eventos urbanos de memorialización. Sin embargo, advierte de una serie de fenómenos que, al darse en paralelo, parecen promover una política de la amnesia: la condición efímera de las acciones conmemorativas, junto a la vertiginosidad del ritmo citadino; la destrucción del patrimonio arquitectónico y la comercialización para el consumo masivo y turístico de la memoria (por ejemplo, la narco-memoria) convergen así para forjar, más bien, una memoria sin historia.

El cuarto y último eje conceptual de este libro, reparación, asume que, “así como la memoria requiere de lugares para situarse, la reparación también tiene una dimensión espacial” (p. 15). Los memoriales cumplen, entonces, una doble función: pública, de rememorar el trauma social y generar espacios para rituales de reparación; e íntima, al ser una instancia de recogimiento efectivo para los procesos de duelo y sanación individual, especialmente cuando no se cuenta con los cuerpos de las víctimas para realizar los correspondientes ritos funerarios. Los estudios que se desarrollan bajo este eje abordan ambas dimensiones de la reparación. Pero también retoman la idea de la ciudad como organismo vivo, para plantear que esta puede y debe ser atendida en la recuperación de sus heridas.

Bajo el concepto de reparación, el estudio de Yael Navarro, “Espacios afectivos y objetos melancólicos: la ruina y la producción de conocimiento antropológico”, se focaliza en Chipre en el contexto de su división en 1974. Ese año, como consecuencia de la invasión turca, chipriotas griegos y turcos tuvieron que desplazarse dentro de la isla a las zonas que les habían sido asignadas en función de sus respectivas nacionalidades. En este contexto, y con una impronta teórica fuerte, Navarro discurre por una serie de categorías como afecto, melancolía, ruina, huella y fantasma, para indagar ya no en las relaciones intersubjetivas de la memoria, sino en las interacciones de lo humano y lo material, teniendo en la superficie del discurso la pregunta implícita por la posibilidad de reparación.

Finalmente, Estela Schindel, en “«Ahora los vecinos van perdiendo el temor». La apertura de ex centros de detención y la restauración del tejido social en Argentina”, se focaliza en la recuperación de los espacios que funcionaron como centros clandestinos de detención en la dictadura, y en su conversión en espacios de memorialización. Se trata de una geografía del terror recapturada y reapropiada por la ciudadanía, para revertir las narrativas del miedo, contribuir con la reconstrucción de “los lazos sociales quebrados” y promover “prácticas y usos del espacio contrarios a los impuestos por el régimen dictatorial” (p. 185).

De acuerdo con lo dicho, este libro resulta imprescindible por varios motivos. Entre ellos, por la acuciosidad del tratamiento teórico llevado a cabo por las editoras y por los autores y autoras en los distintos casos de estudio. También porque el conjunto de capítulos constituye un catálogo de calidad de las variadas metodologías y aproximaciones críticas con las que se puede acometer reflexivamente las relaciones entre ciudad, violencia y memoria. Por último, porque el libro en su organicidad amplía desde las disciplinas espaciales el necesario e inagotado campo de los estudios sobre memorialización y derechos humanos.

Este libro llega para reforzar la colección Cuervos en Casa de la editorial Bifurcaciones –Conocer la ciudad, filmar la ciudad, mover la ciudad (próximo)–, que reúne valiosos trabajos que aportan, desde distintas temáticas y perspectivas, a una comprensión más integral y compleja de los fenómenos urbanos.

Referências

De Certeau, M. (1984). The practice of everyday life. Berkeley, ca: University of California Press. [ Links ]

Halbawchs, M. (1992). On collective memory (The Heritage of Sociology Series). Chicago, il: University of Chicago Press. [ Links ]

Jelin, E. (2012). Los trabajos de la memoria (Serie Estudios sobre Memoria y Violencia). Lima: Instituto de Estudios Peruanos (iep). [ Links ]

Levi, P. (2011). Trilogía de Auschwitz. Barcelona: El Aleph. [ Links ]

Lucero de Vivanco – Universidad Alberto Hurtado, Santiago, Chile. Email: lvivanco@uahurtado.cl.

World heritage and sustainable development. New directions in world heritage managemen – LARSEN; LOGAL (EURE)

LARSEN, P. B.; LOGAN, W. World heritage and sustainable development. New directions in world heritage management. Londres / Nueva York: Routledge, 2018. 310 p. Resenha de: NAVAS-CARRILLO, Daniel; NAVARRO-DEPAPLOS, Javier. Patrimonio mundial y desarrollo sostenible: ¿hacia un nuevo modelo de gestión? EURE (Santiago) v.46 n.138 Santiago mayo 2020.

La publicación que nos ocupa, editada por P. B. Larsen y W. Logan (2018), es el resultado de una ambiciosa iniciativa colectiva surgida tras la aprobación de la “Política para la incorporación de la perspectiva del Desarrollo Sostenible en los procesos de la Convención del Patrimonio Mundial”, adoptada por la Asamblea General de las Naciones Unidas en noviembre de 2015 (Unesco, 2015a). A través de dieciocho capítulos organizados en cuatro secciones, los editores presentan un riguroso análisis donde recogen la amplia y diversa red de perspectivas que se tejen en torno a los bienes culturales, naturales o mixtos declarados o incoados como Patrimonio Mundial. De esta forma, Larsen y Logan exponen, en voz de reconocidos autores, desde una muestra de las posiciones oficialistas vinculadas al Centro del Patrimonio Mundial (incluyendo a los organismos asesores del Comité del Patrimonio Mundial y otras administraciones públicas involucradas), hasta abiertos e innovadores puntos de vista provenientes del ámbito universitario y profesional.

Incluido en la colección Key Issues in Cultural Heritage, este número busca aportar una visión internacional y transdisciplinar al debate abierto sobre la actualización de la gestión de estos bienes. El panel de los autores, formado por catorce mujeres y trece hombres, tiene representación de los cinco continentes, a través de más de quince países (Francia, Australia, Bélgica, Bruselas, Colombia, Dinamarca, Alemania, Italia, Rusia, Surinam, Suecia, Suiza, Tanzania, Turquía, Reino Unido y Vietnam, entre ellos). La edición trata de motivar así un espacio de encuentro de especial interés entre investigadores y expertos en este campo de estudio desde múltiples disciplinas, que van desde la Arquitectura, la Antropología, la Arqueología o las Artes Gráficas hasta la Administración de Empresas, la Ecología, la Etnología, la Geología o el Urbanismo. Esta doble característica, multidisciplinar e internacional, establece a su vez una doble entrada a la publicación: por una parte, a partir de la reflexión y conocimiento proporcionados por los autores, se constituye como material de referencia para avanzar en la implementación del documento aprobado en 2015 por la Asamblea General de las Naciones Unidas; por otra, sirve de manual para conocer las posiciones tomadas en la materia desde campos científicos adyacentes o complementarios. El resultado es, por lo tanto, una colección de textos de necesaria consulta no solo para la actualización del conocimiento de los profesionales de diferentes generaciones, sino que también resulta indispensable su incorporación como material docente en forma de abecé para la correcta capacitación de los futuros responsables de la protección, conservación y gestión del Patrimonio Mundial.

El capítulo introductorio juega un papel determinante en la comprensión de las claves que subyacen en la estructura y organización de las distintas contribuciones. El primer bloque se completa con dos ensayos que profundizan en los principales hitos acontecidos en la evolución conceptual y legislativa de la relación entre la noción de Desarrollo Sostenible y la Convención de Patrimonio Mundial. Los autores de estos capítulos ubican el inicio de este proceso en el “Informe Brundtland”, de octubre de 1987, y en las “Directrices Operativas de 1994”. A pesar de la aparición de estos dos hitos a finales del siglo xx, los avances más significativos han tenido lugar en la última década, aunque sin haber trascendido más allá de la dimensión teórica. Este hecho nos lleva a resaltar la validez de esta monografía, la cual queda respaldada por su reciente fecha de publicación y por su potencial para convertirse en un necesario manual para la implementación de las determinaciones y directrices incluidas en la mencionada Política de Desarrollo Sostenible y Patrimonio Mundial.

La segunda sección, aunque construida a partir de enfoques teóricos, está alineada con la dimensión instrumental, por su planteamiento de retos para la modernización de las herramientas de gestión. Sus seis capítulos recogen en detalle los principios generales (Derechos humanos, Igualdad, Sostenibilidad a largo plazo), así como las cuatro dimensiones centrales (desarrollo económico inclusivo, desarrollo social inclusivo, paz y seguridad, sostenibilidad ambiental) a partir de los cuales se ha estructurado el documento de la Unesco. Es reseñable que mientras cuatro de los seis capítulos se centran respectivamente en cada una de estas dimensiones, los otros dos discuten sobre dos aspectos específicos dentro de la dimensión social de la sostenibilidad: los derechos de los pueblos indígenas y la igualdad de género. En opinión de estos autores, esos dos capítulos son especialmente pertinentes y necesarios. El patrimonio se ha argumentado tradicionalmente desde un punto de vista elitista, eurocéntrico y masculino. La atención en las comunidades rurales, las clases trabajadoras o los pueblos indígenas ha aumentado considerablemente durante el último siglo, mientras que la perspectiva de género está comenzando a incluirse en los discursos patrimonialistas. En este sentido, el desafío no solo reside en considerar a estos otros actores en la valoración patrimonial. También implica garantizar el respeto de sus derechos en el entorno de los enclaves declarados Patrimonio Mundial, especialmente en relación con los efectos del turismo y la globalización y las amenazas que suponen las concatenadas crisis económicas globales o el auge de los proteccionismos nacionalistas. La pertinencia de la inclusión de estos grupos o derechos viene determinada, además, por la necesidad de contribuir en el camino hacia la plena igualdad y el empoderamiento de los grupos de exclusión como actores vitales para la consecución y consolidación de un desarrollo sostenible.

A continuación, los editores recogen la visión de la Unión Internacional para la Conservación de la Naturaleza (uicn), el Consejo Internacional de Monumentos y Sitios (icomos), y el Centro Internacional para el Estudio de la Conservación y Restauración de los Bienes Culturales (iccrom), los tres organismos internacionales que asesoran al Comité del Patrimonio Mundial en sus decisiones. Por un lado, esta tercera parte está destinada a que neófitos comprendan el esfuerzo que realizan estas instituciones para garantizar la preservación del Patrimonio Mundial. Cada capítulo sintetiza la trayectoria de una de estas organizaciones desde su fundación, de acuerdo con los cambios conceptuales experimentados al respecto. Por otro lado, buscan aclarar la posible integración de sus funciones y responsabilidades (evaluaciones de las propiedades del patrimonio natural, cultural y mixto, así como la provisión de instrumentos, conocimientos y habilidades para su conservación) en las pautas de Desarrollo Sostenible. A este respecto son particularmente interesantes las recientes iniciativas desarrolladas por icomos para promover la implementación de la política desde una perspectiva ética.

La última parte se centra en proporcionar enfoques empíricos y de escala múltiple a través de una amplia selección de estudios de casos internacionales. Este apartado recoge el análisis del conjunto de sitios del Patrimonio Mundial de Vietnam, incluidos cinco sitios culturales (Ciudadela Imperial de Thang Long-Hanoi, Ciudadela de la Dinastía Ho, Complejo de Monumentos Hué, Ciudad Antigua de Hoi An y Santuario de My Son), dos sitios naturales (Bahía de Ha-Long y Parque Nacional Phong Nha-Ke Bang) y un sitio mixto (Complejo Paisajístico de Trang An). Otros llevan a cabo el estudio detallado de un sitio cultural único, como en los casos de El Cairo histórico (Egipto), Ciudad de Bamberg (Alemania), Paisaje Cultural Cafetero Colombiano o Ciudad de Piedra de Zanzíbar (Tanzania). El último de los aportes se ocupa del centro histórico incluido en la zona de amortiguamiento del Sistema de Irrigación de Dujiangyan (China). Los argumentos que motivan la selección podrían ser discutidos; de hecho, en ella se refleja el desequilibrio que persiste actualmente entre los sitios culturales y las otras dos categorías, bienes naturales y mixtos, exigiendo una mayor proporción de estos últimos. Sin embargo, los casos seleccionados cubren las cinco regiones de la Unesco (África, Estados Árabes, Asia y el Pacífico, Europa y América del Norte, América Latina y el Caribe), las tres categorías, los diez criterios de selección y un amplio marco temporal (1979-2014). Los editores parecen así haber tratado de incorporar las directrices recogidas en el documento Estrategia global para una Lista del patrimonio mundial equilibrada, representativa y creíble (Unesco, 2015b), alineándose y aplicando el equilibrio geográfico como piedra fundamental de un reparto justo y certero.

Antes de concluir esta recomendación, es necesario resaltar el interesante índice terminológico que se incluye al final del libro. Con más de 300 entradas, permite profundizar en el conocimiento particularizado de los conceptos, temas y agentes recogidos a lo largo de los diferentes capítulos. En este sentido, el libro de Peter Billie Larsen y William Logan no solo nos permite abordar los desafíos actuales en la adaptación de los procesos del Patrimonio Mundial a los Objetivos de Desarrollo Sostenible, sino que se presenta como un texto oportuno y de gran actualidad que abre la puerta a múltiples investigaciones transversales. El visible esfuerzo de la edición por reconocer, desarrollar y divulgar los distintos sistemas de gestión de los bienes del Patrimonio Mundial, una fase fundamental para garantizar el legado del patrimonio a las generaciones presentes y futuras, es quizás el aspecto más definitorio y singular de la publicación. El marco teórico-práctico que queda definido por Larsen y Logan parece poder convertirse en un referente crucial para gestores noveles, investigadores experimentados o administraciones públicas interesadas en aplicar políticas conscientes y sostenibles en torno a un Patrimonio Mundial que deberá enfrentarse en próximas fechas a retos consustanciales a su viabilidad.

Referências

Brundtland, G. H. (1987). Our common future. Brundtland Report. Oxford: Oxford University Press. En http://netzwerk-n.org/wp-content/uploads/2017/04/0_Brundtland_Report-1987-Our_Common_Future.pdf [ Links ]

Jokilehto, J., Cleere, H., Denyer, S., & Petzet, M. (2005). The World Heritage List “Filling the Gaps – an Action Plan for the Future. Munich: International Council on Monuments and Sites (icomos). En http://openarchive.icomos.org/433/1/Monuments_and_Sites_12_Gaps.pdf [ Links ]

Unesco (1994). Directrices Prácticas para la aplicación de la Convención del Patrimonio Mundial. París: Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura. En https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000138676_spa [ Links ]

Unesco (2015a). Policy for the integration of a Sustainable Development perspective into the processes of the World Heritage Convention. Paris: United Nations Educational Scientific and Cultural Organization. En https://whc.unesco.org/document/139146 [ Links ]

Unesco (2015b). Estrategia global para una Lista del patrimonio mundial equilibrada, representativa y creíble: Informe sobre el seguimiento de la resolución. París: Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Culturahttp://whc.unesco.org/archive/2015/whc15-20ga-9-es.pdf [ Links ]

Daniel Navas-Carrillo – Universidad de Sevilla, Sevilla, España. E-mail: D. Navas-Carrillo dnavas@us.es

Javier Navarro-De-Pablos – Universidad de Sevilla, Sevilla, España. E-mail: J. Navarro-De Pablos, fnavarro@us.es.

O comércio de marfim no mundo atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX) | Vanicléia Silva Santos, Eduardo França Paiva e René Lommez Gomes

Lançada em 2018 pela Clio Gestão Cultural e Editora, a obra O comércio de marfim no mundo atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX) integra o sétimo volume da série Estudos Africanos, promovido pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade Federal de Minas Gerais (Diretoria de Relações Internacionais). A proposta da série é fomentar um pensamento multidisciplinar e etnicamente diverso ao criar e fortalecer parcerias entre pesquisadores brasileiros e estrangeiros em diferentes áreas de atuação. Sônia Queiroz, professora do departamento de Letras da UFMG e membra do Centro de Estudos Africanos (CEA), na apresentação da série, afirma ser pretensão do volume “dar materialidade à cooperação Brasil-África” (SANTOS; PAIVA; GOMES, 2018, p. 10).

O livro faz parte de uma consistente parceria de pesquisa entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Lisboa (UL), que objetiva realizar o levantamento de novas fontes e dados sobre a produção, circulação e usos do marfim no contexto atlântico. Tal parceria foi criada em 2013 e reafirmada em 2015 no projeto Marfins Africanos no Mundo Atlântico: uma reavaliação dos marfins luso-africanos, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) de Portugal. A intenção do projeto, e das produções acadêmicas financiadas por ele, como o volume em questão, é compreender a circulação atlântica dos marfins africanos e suas articulações com o Índico; investigar a diversidade de centros produtores de objetos de marfim na África e suas linguagens artísticas; complexificar os estudos do marfim africano em seus aspectos cultural, intelectual e material; e trazer novas informações a respeito da multiplicidade de intercâmbios culturais estabelecidos em diversas áreas do Atlântico e do Índico. Os pesquisadores buscam, assim, preencher a lacuna historiográfica sobre o tema em relação ao Brasil, à África em suas diversidades culturais e econômicas e às rotas atlânticas. Leia Mais

Cultura escolar, cultura política educacional e comemorações no Brasil / Revista do IHGSE / 2020

8 de julho de 1920. Há cem anos, o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe realizava a sua sessão solene em comemoração do centenário da Emancipação política de Sergipe, em um evento que reuniu número significativo de autoridades políticas, militares e religiosas, incluindo o presidente da República. Naquela ocasião, o sodalício reafirmava o seu lugar institucional, de defensor da memória, de celebração dos heróis, da história e das efemérides de Sergipe.

Mesmo vivenciando um contexto socioeconômico desfavorável, após uma guerra mundial e uma grande epidemia de gripe espanhola, a emancipação política foi amplamente festejada pelos sergipanos, tanto em instituições científicas, como o IHGSE, quanto nas instituições escolares, por meio dos pomposos desfiles cívicos. Muitos desses aspectos foram registrados no quinto volume da Revista do IHGSE, publicado em 1920. Infelizmente, a escrita sobre as efemérides, comemorações, festas cívicas e cotidiano escolar demoraram em se tornar objetos reconhecidos como legítimos para a história, sendo muitas vezes considerados objetos menores.

Felizmente, essa realidade historiográfica tem mudado consideravelmente. Desde a década de 80 do século XX a historiografia educacional brasileira vem passando por um importante processo de renovação, a partir das discussões pautadas na compreensão da cultura escolar, fato que possibilitou a inserção do cotidiano escolar como problema histórico, bem como a edificação do protagonismo de outros sujeitos da História da Educação. Assim, emergem as experiências de professores, alunos e inspetores como sujeitos da história. Do mesmo modo, as práticas educacionais passam a ser vislumbradas nas instituições escolares, com ênfase para o cotidiano escolar, mas também buscando outras narrativas possíveis, como os desfiles cívicos, as feiras e as exposições.

Com isso, foram amplificadas as possibilidades de leitura do cotidiano escolar, com a inserção das políticas educacionais e das culturas políticas educacionais pensadas e difundidas no espaço escolar. Pensando em tais dimensões da historiografia educacional contemporânea, no âmbito das celebrações do bicentenário da Emancipação Política de Sergipe, apresentamos a nova edição da prestigiada Revista do IHGSE. O dossiê reúne artigos que têm a cultura escolar, as culturas políticas educacionais e as comemorações como problema de investigação.

O dossiê é aberto com o empolgante artigo da Professora Beatriz Góis Dantas “Independência: celebrações, memórias e símbolos”. Trata-se de um texto que a partir das memórias de Serafim Santiago, descreve e analisa as celebrações de 24 de outubro em descompasso com 8 de julho, data do Decreto Real que declara a autonomia, e mostra a elaboração de símbolos no contexto de construção do imaginário social da identidade coletiva emergente. Além disso, a antropóloga sergipana discute como o hino sergipano e a representação do caboclo / índio formam uma unidade significativa com funções cívico-pedagógicas procurando atingir mentes e corações.

O segundo texto que compõe o dossiê é intitulado “Por trás daquele quadro tem vida!”, escrito pelas pesquisadoras Danielle Virginie e Josefa Eliana Souza. É um texto que busca atribuir sentido a parte da narrativa visual do painel Instrução, Cultura, Ciência e Arte, pintado por Jenner Augusto e entregue à Universidade Federal de Sergipe em 10 de junho de 1980. É uma interessante leitura que parte do cruzamento de olhares artísticos, e que tem como fonte principal a entrevista com a atriz Virginia Lucia da Fonseca.

O terceiro artigo, intitulado “A Pedagogia da Feira”, de Maria José Dantas, é um exercício de escrita da História da Educação que repensa o cotidiano escolar e enfatiza a feira cultural do Colégio Deputado Elísio Carmelo, evidenciando a existência de uma “Pedagogia da Feira” no processo de aprendizagem. A investigação se debruça sobre a escola, retratando o surgimento da atividade e apontando reflexões sobre a prática educativa.

Os três últimos artigos que compõem o dossiê apresentam as comemorações como problema de investigação. Com o texto “Dia de festa na Penitenciária Modelo de Aracaju”, Marcia Terezinha Oliveira Cruz investiga a participação dos estudantes da Faculdade de Direito de Sergipe (FDS) nas atividades comemorativas integrantes do “Dia do Encarcerado”, realizadas na Penitenciária de Aracaju entre os anos de 1950 e 1968. Era um evento organizado por meio da atuação da Sociedade Santo Ivo, entidade que congregava professores da FDS e os acadêmicos em Direito. Trata-se de um texto que busca desvendar o cotidiano de uma instituição de ensino superior em Sergipe.

Por meio do artigo “Memórias Escolares de uma Celebração Identitária”, Solyane Lima e Sérgio Guerra analisam a importância do Desfile de 25 de junho no cotidiano escolar na cidade de Cachoeira, no recôncavo da Bahia. Esta celebração é uma data importante não só para a localidade, mas para a Bahia, posto que, há alguns anos, a sede do governo é transferida para a cidade nesse dia. É um estudo que repensa o lugar das comemorações em uma das principais datas do calendário cívico baiano.

Por fim, no artigo “Uma das mais bellas páginas de vosso brilhante passado”, Magno Santos analisa as comemorações de inauguração do monumento a Inácio Joaquim Barbosa, fundador da cidade de Aracaju, nos idos de 1917. O foco da análise foi a mobilização de intelectuais que operacionalizaram diferentes atributos no intuito de forjar a biografia de Inácio Barbosa como herói da cidade e torná-lo apto para o culto cívico.

Por meio desta edição, o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, através de seu periódico, cumpre com a missão institucional de cultora da história sergipana e de ser o espaço privilegiado dos saberes históricos de homens e mulheres deste chão. Mesmo em um contexto permeado de incertezas acerca do porvir, em decorrência da lamentável proliferação da pandemia do coronavírus, devemos seguir o exemplo dos confrades de 1920 e celebrar a data magna dos sergipanos. Como bem expressa o hino estadual, “Alegrai-vos, sergipanos”. “Vamos festejar” e fazer boa leitura da nova edição da Revista do IHGSE.

Magno Francisco de Jesus Santos

Natal, maio de 2020


SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Apresentação. Revista do IHGSE. Aracaju, n.50, v.2, 2020. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Rememorar a Independência de Sergipe / Revista do IHGSE / 2020

Rememorar a Independência de Sergipe: histórias, processos e experiências

A reunião de textos desta edição tem especial sentido de celebração de efeméride, palavra que, de forma simples e direta, alude ao ato comemorar acontecimento ou fato ocorrido em data específica. Contudo, mais do que a forma e a expressão com que o passado se faz presente para uma coletividade, as comemorações de fatos históricos são indissociáveis do ato de lembrar, identificando os significados que dão sentido e coerência a seu presente. Mas qual a finalidade das comemorações que envolvem datas históricas?

Não é novidade que as sociedades sempre comemoraram os referenciais de sua existência ao longo do tempo. Na Antiguidade, os feriados eram eventos valorizados, principalmente entre os romanos, que usavam esses momentos para celebrar acontecimentos importantes de guerra, honrar divindades ou mesmo festejar em homenagem a algum imperador falecido. Nas sociedades do Antigo Regime, etapas da vida dos monarcas e seus familiares, como nascimentos, casamentos, aniversários e falecimentos, eram motivo de celebração, sem falar no calendário frequentado por santos e fatos do catolicismo, a serem festejados no reino e nos domínios além-mar. Após a Revolução Francesa, que marca a modernidade política burguesa no Ocidente, o ato e a maneira de comemorar assumiram dimensões cívicas e institucionais laicizantes. No Brasil, as lutas de independência e a necessidade de comemoração simbólica da separação de Portugal, em 7 de setembro de 1822, assinalam a naturalização dessas celebrações justamente por remontarem ao nascimento político da nação e à pertinência da criação de tradição comemorativa e de mito na figura de D. Pedro I.

Datas importantes e sua celebração (uma vez que há episódios que devem ser lembrados. mas não comemorados) marcam a passagem do tempo com construções simbólicas que ressignificam momentos considerados relevantes em razão da ocorrência de lutas, conquistas, experiências ou traumas adquiridos ou por definirem nova condição. Nos documentos e comunicações oficiais do período imediato à independência, por exemplo, tornou-se comum registrar o número de anos passados desse fato, como demarcação de nova era, novo presente, nova realidade. Mas sua comemoração também pode significar o momento em que a sociedade se debruça sobre si e reflete sobre o acontecimento, que, convertido em símbolo e representação, contribui sobremaneira na elaboração de referenciais de identidade(s), processo que, embora orientado e disputado, flui no tempo e opera, por incursão seletiva no passado, a construção de consciência histórica, moldada pela percepção de singularidade / alteridade também histórica.

Pela interpretação de fragmentos do passado de que os historiadores dispõem em sua época, acrescidos do desafio de entender os valores de temporalidade que não é a sua, como num quebra-cabeça, vão se refazendo e trazendo atos, sentidos, trajetórias de sujeitos históricos e seus efeitos para a realidade presente. Cabe a esse profissional dar sentido a esse emaranhado e, assim, promover, para além da esfera individual, ressignificação da experiência vivida, que, por operação memorialística, passa a constituir repertório de elementos formativos de sentimento de coletividade. Tão importante quanto esse processo, é a dimensão física da memória captada por produtos criados em torno da celebração, como selos, bustos, discursos, cartazes, estátuas, músicas, hinos, convites, bandeiras, livros, vídeos, entrevistas, placas e exposições, que precisam ser entendidos em seu contexto original, uma vez que pretendem promover a apropriação social, simbólica e discursiva, do tempo e sua passagem.

Assim, a própria organização da celebração e sua efetivação também se tornam material para ser rememorado, o que revela a importância de se atentar não apenas para o que se comemora, mas também para maneira de lembrar o evento, correspondência e resultado dos projetos políticos e das relações de poder vigentes. François Pierre Nora, historiador e referência incontornável de teorização sobre os campos da memória social e coletiva, aponta o presente como gerador dos “instrumentos da comemoração, moldando-os conforme suas necessidades e especificidades, bem como a própria simultaneidade das efemérides assumem relevância nas relações políticas e no imaginário nacional” (apud Lisboa, 2008, p. 36).

Mas o que se comemora em 8 de julho, feriado para os sergipanos? Há 200 anos ocorria a emancipação da capitania de Sergipe, que, por intricado processo político, lutou para conquistar e confirmar sua independência. A autonomia oficial tem sua origem nas transformações administrativas da primeira década do século XIX, postas em vigor pelo governo de D. João VI (que, supõe-se, ocupa espaço afetivo na história sergipana), quando o monarca e sua Corte se fixaram no Brasil, a partir de 1808, e, ainda, na conjuntura revolucionária do conturbado contexto europeu oitocentista. A especificidade da análise desse processo se insere no entrelaçamento de duas lutas concomitantes por autonomia: a da capitania, para sair da tutela administrativa e da exploração econômica e tributária da capitania da Bahia; e a da colônia, em meio a seu dilema entre projetos políticos liberais das Cortes portuguesas ou construção de um país independente liderado por D. Pedro I.

Mais do que dar destaque e mostrar como a Independência ocorreu nas “partes” da América Portuguesa, trata-se de fundamental contribuição intelectual para melhorar o conhecimento sobre a nossa separação de Portugal e reavaliar a construção do Brasil, enquanto corpo político autônomo, por perspectiva local, confirmando a sempre necessária refutação da difusão de dita “história nacional” contada a partir do eixo sul do país, que não conhece outros espaços, outras experiências, outras gentes. Acredita-se fortemente que a análise da experiência histórica da autonomia da capitania de Sergipe evidencia a pertinência de buscar a compreensão das dinâmicas políticas como formadoras de identidades sociais e regionais e seu papel na construção do Estado nacional brasileiro, com todos os seus dilemas, dificuldades e traços, que ajudaram a compor quem nós somos e como compreendemos essa árida, mas criativa, trajetória.

Este dossiê reúne, relembradas de forma qualificada, abordagens de pesquisadores sobre essa experiência. O artigo que abre o conjunto de textos, intitulado Comemoração do primeiro centenário da emancipação política de Sergipe: Um olhar a partir das revistas do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), de Cristiano Ferronato, Maristela Andrade e Patrícia Batista, apresenta reflexões de investigação realizada sobre o processo de construção da memória coletiva do povo sergipano a partir da organização da comemoração de data cívica 8 de julho, ocorrida no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe – IHGSE, em 1920.

O historiador Wanderlei de Oliveira Menezes problematiza em seu artigo a carta régia de 8 de julho de 1820, explorando o significado de independência e a sujeição administrativa da Capitania de Sergipe à Bahia, por meio da análise das relações de dependência administrativa entre as duas capitanias do período entre 1763 e 1820, e percorrendo as nomeações dos capitães-mores (governadores), autoridade mais afetada com a subalternidade administrativa, para sugerir entendimento da carta régia como mecanismo de fortalecimento do poder central da monarquia portuguesa em detrimento dos interesses regionais da Bahia.

No artigo Memorável dia 8: os significados da prisão de um Governador, da fuga do malvado Vigário e da trama de um Coronel corrompido (Sergipe, 1820-23), o historiador Anderson Pereira dos Santos analisa a articulação entre a prisão do Governador Carlos Burlamaqui, a fuga do Vigário da Freguesia de N. Sra. do Socorro de Cotinguiba, Antônio José Gonçalves de Figueiredo, e a trama do Coronel José de Barros Pimentel, com o objetivo de evidenciar a multiplicidade de posições políticas e de interesses pessoais em jogo no difícil processo de consolidação da autonomia de Sergipe. Por essa via de reflexão, argumenta que a identidade sergipense foi ressignificada e que a autonomia local se conecta com diferentes conjunturas dentro e fora do Império Português.

Tema bastante original se encontra no texto A composição gráfica dos impressos informacionais em Sergipe Imperial, de Germana Gonçalves de Araújo, Jeane Santana e Vicent Bernardo Alves Santos, em que se examina o modo de produção técnico-artístico utilizado na produção impressa dos suportes de comunicação e de expressão literária. Esse estudo contribui para a história da tipografia no Brasil, da educação e da imprensa sergipana do século XIX no Sergipe Imperial. Fundamentado em pesquisa bibliográfica e documental em acervos físicos (arquivos públicos e particulares) e na hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional, permite conhecer aspectos compositivos gráficos de periódicos e da informação impressa da época, fundamental para o conhecimento da produção de periódicos em Sergipe.

No texto intitulado Juntas de Governo Provincial no processo de Independência: conflitos e disputas em torno de noções de autonomia e autoridade militar (Bahia 1821-1823), Edna Maria Matos Antônio e Antônio Cleber da Conceição Lemos exploram o significado da montagem das Juntas de Governo no quadro da instalação de instituições liberais como peça de reforma política do liberalismo português em seu esforço de transformar a sociedade lusa, sem deixar de dialogar com tradição absolutista (religiosa e política). A partir da análise da experiência da Junta da Província da Bahia, focalizam as dificuldades de seu estabelecimento e funcionamento captadas no complicado relacionamento com o comando militar naquela Província no momento de intenso conflito político na dinâmica da transição de domínio colonial para autonomia nacional.

Este dossiê reitera a oportunidade e a importância de se construir conhecimento atualizado e reflexão histórica crítica sobre evento especial, como o da comemoração dos 200 anos da Independência de Sergipe, notadamente quando sua veiculação se dá através da revista do Instituo Histórico e Geográfico de Sergipe, que corajosamente mantém o espírito da missão pensada por intelectuais sergipanos, no já distante ano de 1912, de “verificar, coligir, arquivar e publicar os documentos, crônicas e memórias relativas às datas históricas (…) do Brasil e especialmente de Sergipe” [2] . É oportunidade excepcional de conhecer ou reconhecer os vários aspectos que envolvem a compreensão da ação / agentes políticos atuantes naquele contexto e suas escolhas, através da abordagem por diferentes campos de investigação, perspectivas de análise, espaços e problemas imbricados nas independências e seu aprendizado. Fica evidente, ainda, a importância das datas conformadoras da memória social e atuantes na construção de referenciais de pertencimento e comunhão de um passado, que, alicerçado em história e memória, alimentando uma festa que amálgama política, identidade e liberdade.

Notas

2. Revista do IHGSE, Aracaju, Ano I (1913) | 1º Trimestre. Disponível em https: / / seer.ufs.br / index.php / rihgse / issue / view / 869.

Aracaju, maio de 2020.

Referências

ANTONIO, Edna Maria Matos. A “independência do solo que habitamos”: poder, autonomia e cultura política na construção do Império brasileiro. Sergipe (1750-1831). São Paulo / UNESP; Cultura acadêmica, 2012.

LAVABRE, Marie-Claire. La commémoration: mémoire de la mémoire? http: / / bbf.enssib.fr / consulter / bbf-2014-03-0026-002. Acesso em 13 / 05 / 2020.

LISBOA, Karen Macknow. Comemorações, Memória, História e Identidade. In: RODRIGUES, Jaime (Org.). A Universidade Federal de São Paulo aos 75 Anos: ensaios sobre história e memória. Ed. FAP-UNIFESP, 2008. Disponível em http: / / books.scielo.org / id / hnbsg. Acesso em 13 / 05 / 2020

Edna Maria Matos Antônio – Doutora em História e Cultura pela UNESP. Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe e pesquisadora de História do Brasil Colonial e Imperial, com ênfase em poder e relações sociais; Coordenadora Titular do Programa de Mestrado em História da UFS.


ANTÔNIO, Edna Maria Matos. Apresentação. Revista do IHGSE. Aracaju, n.50, v.1, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000 – BURKE (S-RH)

BURKE, Peter. Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000. São Paulo: Editora Unesp, 2017. Resenha de: SANTOS, Jair. O conhecimento sem pátria. SÆCULUM – Revista de História, João Pessoa, v. 25, n. 42, p. 222-226, jan./jun. 2020.

Todos os que acompanham a atualidade política sabem que um tema em particular está quase sempre presente no debate público, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos: a imigração. A polêmica discussão é animada não somente pelos jornalistas e atores políticos, com posicionamentos nem sempre apaziguadores, mas também pelos intelectuais. São inúmeros os acadêmicos – filósofos, historiadores, sociólogos, cientistas políticos, juristas – que tentam, através de uma análise mais serena e por meio dos instrumentos fornecidos pela ciência que professam, analisar a imigração como um fenômeno social complexo, com diferentes causas e diversas consequências para a sociedade. O último livro de Peter Burke, fruto de conferências proferidas na Historical Society of Israel em 2015, é um belo exemplo de como um historiador, de quem se costuma esperar apenas um olhar crítico sobre o passado, também pode enriquecer a reflexão acerca de problemas atuais. A obra Perdas e ganhos: exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, publicada em 2017, estuda um tipo específico de imigração: a dos intelectuais que deixaram seu país natal, de modo espontâneo ou forçado, e prosseguiram a sua produção intelectual em outras terras. A partir desse grupo seleto de imigrantes, o autor examina os efeitos do encontro – ou eventualmente do choque – entre duas culturas na produção e difusão do conhecimento. Este é o pressuposto central do livro: a imigração é um fato social de efeitos recíprocos, isto é, tanto os indivíduos que imigram quanto a sociedade estrangeira que os acolhe são de algum modo afetados e transformados pelo intercâmbio que se opera. Está claro, portanto, que o livro refuta o argumento, às vezes invocado em âmbito político, segundo o qual a influência estrangeira é necessariamente nociva para a cultura nacional. Leia Mais

Nordeste do Brasil na Segunda Guerra Mundial – Flávia Pedreira

PEDREIRA Flávia de Sá Ciudad
Da esquerda para direita: autores Armando Siqueira, Gabriella Cordeiro e Luiz Gustavo; Flávia Sá (organizadora) e convidados /  

PEDREIRA, Flávia de Sá. Nordeste do Brasil na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: LCTE Editorial, 2019. 340 p. Resenha de: VAINFAS, Ronaldo. Nordeste flagelado pelos nazistas. Varia História. Belo Horizonte, v. 36, no. 71, Mai./ Ago. 2020.

A Segunda Guerra Mundial terminou há 75 anos. Terminou na Europa em maio de 1945, com a rendição alemã aos soviéticos após o suicídio de Hitler e no Japão em setembro, após as bombas lançadas pelos EUA, em agosto, sobre Hiroshima e Nagasaki. O Brasil passou por tudo isso. Viveu a crise da democracia liberal nos anos 1930, tempo do Estado Novo; participou da Segunda Guerra, enviando tropas para a Itália.

Mas o que aqui nos interessa é o Brasil no tempo da Segunda Guerra Mundial. Memórias de combatentes e pesquisa historiográfica reconstruíram a atuação brasileira na Itália. Elogio do alto comando dos aliados à bravura dos soldados brasileiros. Risco alto que alguns enfrentaram, depois da guerra, desmontando minas em diversos países ocupados pela Alemanha. Heróis de guerra, foram desprezados na volta ao Brasil, sobretudo a soldadesca, porque os oficiais foram condecoradíssimos. A maioria dos “pracinhas” que lutaram na Itália foram recrutados nas regiões Norte e Nordeste do país. A região foi sistematicamente atacada pelos submarinos alemães em 1942.

O livro organizado pela historiadora Flávia de Sá Pedreira, Nordeste do Brasil na Segunda Guerra Mundial, publicado pela LCTE Editorial em 2019, não deixa dúvida a respeito. Os ataques começaram no Sergipe, em agosto de 1942, quando o submarino U-507 afundou seis cargueiros brasileiros de diversas tonelagens que, acrescente-se, também faziam transporte de passageiros. Luiz Pinto Cruz e Lina Aras abrem o livro com texto bem documentado sobre tais ataques. Eles ocorreram entre 15 e 17 de agosto, afundando os navios Baependy, por ironia de fabricação alemã, o Araraquara, o Aníbal Benévolo, o Itagiba e o Arará. A cada navio torpedeado, pânico total na capital e até no interior. Parentes desesperados à procura de sobreviventes. Corpos despedaçados nas praias. Medo de uma iminente invasão alemã. Blackouts.

Dilton Maynard nos conta como o medo assolou Aracajú naqueles dias, com a explosão do Baependy. Os ataques prosseguiram na costa baiana, onde os alemães torpedearam outros quatro navios brasileiros. Total de desaparecidos no Sergipe e na Bahia: 612. Luana Quadros Carvalho analisa as consequências dos ataques ao litoral de Salvador: crises de abastecimento, inflação, mercado paralelo, o que atingiu sobretudo a população pobre da cidade.

É sabido que o número de navios mercantes brasileiros afundados por submarinos alemães – e também italianos – foi muito maior do que os torpedeados na costa nordestina. Mas a Segunda Guerra alcançou o Nordeste de forma implacável, antes de tudo porque os ataques ocorreram em mar brasileiro. O impacto social dos eventos foi tremendo. Como a censura do DIP levou dias para permitir a divulgação das notícias, o Nordeste vivenciou uma autêntica caça às bruxas nos primeiros dias da tragédia. Casas e lojas de estrangeiros, suspeitos de espionagem, foram vandalizadas. Quando a imprensa é censurada, predomina o boca-a boca e todo abuso se torna banal.

Seja como for, havia uma rede de espionagem alemã espalhada pelo Brasil e por outros países sul-americanos, como a Argentina e o Chile. Juliana Leite reconstrói a rede de espionagem nazista, que contava com cerca de dez células ramificadas em vários estados do país. A autora particulariza o caso pernambucano, onde empresas alemãs instaladas no Recife funcionavam como locais de recrutamento, a exemplo da Siemens Schukert S.A e a Dreschler & Cia. Os grandes espiões, porém, provinham da diplomacia alemã instalada no país, e não era desconhecida das autoridades brasileiras, com sua DIP sempre atenta.

A obra em foco inclui estudos sobre várias cidades nordestinas, examinando a reação popular aos afundamentos de cargueiros brasileiros e outros aspectos da entrada do Brasil na guerra. Osias Santos Filho analisa o impulso que a guerra mundial deu à indústria têxtil maranhense. Mas, a partir de 1942, algumas atividades refluíram, como a exportação de babaçu, cujo principal importador era a Alemanha, além da carestia, inflação, racionamentos e falta de combustível. No vizinho Piauí, Clarice Lira analisa a grande mobilização popular em 1942. Não faltaram perseguições a alemães, italianos e japoneses residentes em Teresina.

A Paraíba, como expõe Daviana da Silva, foi estado dos mais destacados na mobilização do Brasil, com passeatas e comícios em Campina Grande e João Pessoa. O jornal A União publicou fotografias de paraibanos que viajavam nos navios afundados, incluindo notícia sobre a vida de cada um. A autora sugere que tais eventos despertaram não apenas um surto de brasilidade como a emergência de um sentimento de paraibanidade, assunto caro à história regional, como a de outros estados que por séculos gravitaram na órbita pernambucana. Sérgio Conceição estuda o caso de Alagoas e concentra o capítulo na história socioeconômica da região, analisando a ascensão da produção de borracha, incentivada pelo regime Vargas, vista com grande entusiasmo por algumas lideranças, criticada por outros apegados à produção de cana e de algodão.

Antônio Silva Filho examina o cotidiano de Fortaleza nos anos 1940, cidade que também abrigou base militar dos EUA, discorrendo sobre os primórdios da “americanização” de certos costumes locais. Na abertura do capítulo, uma alusão ao carnaval de rua na capital, em 1946, em especial a formação de um bloco chamado “Cordão das Coca-Colas”, formado por sargentos brasileiros da FAB, que satirizava “as moças da sociedade local que haviam namorado soldados norte-americanos” (p.37). O autor é cauteloso na análise do tal desprezo pelas moças que “namoravam ianques”, citando mesmo uma crônica de Raquel de Queiroz, datada de 1944, para quem “só os rapazes são um pouco contra os nossos aliados, rosnam bastante, falam em mentalidade colonial (das mulheres cearenses)” (p.38). Por minha conta, digo que esse bloco era tremendamente misógino e machista, conforme sugeriu, com elegância, a grande escritora brasileira.

Em obra com tal recorte regional, é certo que não poderia faltar capítulos sobre o Rio Grande do Norte, antes de tudo por causa do famoso Parnamirim Field, então distrito de Natal, hoje município autônomo, que abrigou duas bases norte-americanas nos anos 1940. Parnamirim Field não foi a única base aeronaval dos EUA no Brasil, como muitos sabem, mas era a principal, designada em mapas militares dos EUA como Trampoline of Victory porque estava na rota ofensiva dos norte-americanos nas campanhas da África e do sul da Itália. Foi nela que ocorreram os contatos mais intensos entre a população brasileira e os norte-americanos, tema que já foi objeto de estudos sérios e documentados.

A obra contém três capítulos sobre a terra potiguar. Anna Cordeiro estuda o bairro da Ribeira, em Natal, favorecido pelo boom populacional ocorrido na cidade; Luiz Gustavo Costa contribui com biografia de um natural do Rio Grande do Norte, veterano da FEB na Itália; e enfim, Flávia Pedreira contribui com trabalho sobre os intelectuais potiguares em face da base norte-americana erigida em Natal. Entre eles, Câmara Cascudo, que se mostrou ambivalente, segundo Flávia, diante da influência de Paranamirim Field sobre a cultura local: ora reconhecia o valor da “boa música” tocada pelas orquestras norte-americanas nas praças natalenses, ora depreciava a difusão de artigos como a “borracha açucarada”: os chicletes.

As balizas teórico-metodológicas do livro aparecem na apresentação da organizadora. Em primeiro lugar, uma alusão ao clássico de Hannah Arendt, Origens do totalitarismo (2000), para realçar que as atrocidades do nazismo contaram com o apoio das massas. Isso é válido para a Alemanha hitlerista, e o seria para a Itália fascista e para a o regime stalinista na URSS. Para o Brasil não, apesar de que o regime liderado por Getúlio Vargas, após 1937, aspirava a ser um Estado fascista, do tipo definido por Mussolini: “Tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”.

A historiografia brasileira, porém, com a exceção da produzida em São Paulo, qualifica o Estado brasileiro entre 1937 e 1945 como autoritário, mas não fascista, muito menos totalitário. A própria aliança do Brasil com os EUA, em 1942, contribui, factualmente, para relativizar, ou mesmo negar, a vocação fascista do Brasil na ditadura de Getúlio Vargas. Com a eclosão da guerra, em 1939, o governo permaneceu no attentisme, atento ao desenrolar do conflito, como diria o historiador francês Pierre Laborie (2010), ao caracterizar a atitude dos franceses em face da ocupação alemã. A maioria não resistiu à ocupação nazista, tampouco foi colaboracionista, senão agiu conforme as circunstâncias, transitando no que chama, com acuidade, de zona cinzenta.

Getúlio Vargas parece ter esposado o attentisme, atuando em uma zona cinzenta no campo diplomático. Muitos historiadores brasileiros preferem tratar o Estado Novo como berço do Trabalhismo, com seu viés nacionalista e popular, ao invés de assimilá-lo aos totalitarismos alemão e italiano. Nesse ponto, o paradigma teórico adotado no livro é um tanto anódino, em especial porque a imensa maioria dos textos da coletânea descreve experiências de ataques alemães ao Nordeste e sua repercussão, sem operar com o conceito. O totalitarismo funciona, antes de tudo, como pano de fundo histórico, em geral atribuído ao regime nazista. Mas vale dizer que, em todos os textos, os autores apontam, de várias maneiras, a contradição visceral do Estado Novo, uma ditadura inspirada nos regimes autoritários europeus, que depois se alia aos EUA na luta pela democracia no mundo.

Por outro lado, a alusão de Flávia Pedreira a Paul Ricoeur (2008) parece-me exata para exprimir as pesquisas que dão corpo ao livro. Nas palavras da organizadora, “faz-se a inclusão de entrevistas orais com aqueles que vivenciaram a época e/ou seus descendentes, trazendo à tona um verdadeiro exercício de memória que muito tem a esclarecer os fatos e personagens envolvidos” (Pedreira, 2019, p.8). Uma opção metodológica que atravessa todos os ensaios e nisso acerta em cheio o seu propósito.

Mas penso que não vale a pena alongar tais considerações teórico-metodológicas, por vezes nominalistas, a propósito de livro tão relevante. A história não deve, a meu ver, demonstrar teorias, senão valer-se delas para reconstruir o passado. O livro em causa faz isso à perfeição, malgrado o que afirmei acima. Vista no conjunto, a obra conta uma história do Nordeste para além das secas e da exploração da miséria, desafiando mitologias. Mostra ao vivo o Nordeste atacado pelo nazismo em 1942. Assunto fascinante e obra à altura do tema.

Referências

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. [ Links ]

LABORIE, Pierre. 1940-1944. Os franceses do pensar-duplo. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (org.). A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX, vol. 1: Europa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. [ Links ]

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008. [ Links ]

Ronaldo Vainfas – Universidade Federal Fluminense Departamento de História Campus de Gragoatá, Niteroi, RJ, 24220-900, Brasil. rvainfas@terra.com.br.

The Identitarians: the Movement against Globalism and Islam in Europe – ZÚQUETE (VH)

ZÚQUETE, José Pedro. The Identitarians: the Movement against Globalism and Islam in Europe. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2018. 484 p. Resenha de: GUIMARÃES, Gabriel. O movimento etnonacionalista europeu. Uma análise dos Identitários. Varia História. Belo Horizonte, v. 36, no. 71, Mai./ Ago. 2020. 

O livro analisado é de José Pedro Zúquete, investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa que tem se dedicado à análise comparada de movimentos políticos radicais. Sua obra The Identitarians: the movement against Globalism and Islam in Europe, publicada pela University of Notre Dame Press, em 2018, é de grande relevância para a compreensão de um conjunto de movimentos políticos da direita euroamericana, analisados a partir de seus fundamentos teóricos, discursos e práxis. Tais fundamentos se ancoram nos líderes da chamada Nouvelle Droite, uma escola de pensamento voltada para as origens e traços culturais dos europeus, criada no fim dos anos 1960 com o Groupement de Recherche et d’Études pour la Civilisation Européenne (GRECE). Grupo criado por Alain de Benoist, o GRECE faz uma crítica do que considera visão monoteísta de mundo, cujas raízes judaico-cristãs, na modernidade, levariam a grandes propostas supranacionais, como o liberalismo e o marxismo. A esses grupos acrescenta-se a alt-right estadunidense, conjunto de organizações que partilham de um enquadramento de mundo bastante parecido, porém com um discurso ainda mais explicitamente racialista.

Esse enquadramento é a chamada “grande substituição”. O termo vem da obra do autor francês Renaud Camus, Le Grand Remplacement (2012), onde são enfatizadas as mudanças etnodemográficas ocorridas nas grandes cidades da Europa Ocidental, nas quais o número de habitantes de origem não europeia é cada vez maior. O suposto risco, no caso, é o da transformação das maiorias europeias em minorias numéricas dentro de algumas décadas.

Em torno da visão neopagã de Benoist, onde cada núcleo social e cultural teria seu conjunto de valores sacros voltados apenas para os membros de sua comunidade fechada, como na Gemeinschaft de Herder (2004), orbitam vários outros temas e propostas teóricas. Destaca-se, nesse sentido, o tema do “globalismo”, identificado geralmente em estruturas de poder supranacionais, como a ONU e a União Europeia, e pelo arcabouço ideológico que as sustenta. Isto é, o multiculturalismo, que levaria ao enfraquecimento dos controles fronteiriços, a políticas públicas voltadas cada vez mais para a inclusão de minorias, entre outras coisas, diluindo o que Smith (1991) chamou de core ethnies, os núcleos linguísticos e culturais com uma memória coletiva comum que estão no centro da formação da maioria das nações modernas, e a congruência entre cultura e política, que constitui o nacionalismo para Gellner (2013).

Outro importante tema é o Islã. Apesar de não ser visto como a única ameaça à identidade dos povos europeus e seus descendentes, é considerado a presença extraeuropeia mais significativa existente no continente. Isso se deve ao fato do número de muçulmanos ser bastante alto, pela sua alta taxa de natalidade, pela sua capacidade de converter novos fiéis oriundos de comunidades não originalmente muçulmanas e, ainda, de se organizar a fim de propor políticas públicas específicas.1

Uma dimensão teórica trabalhada em The Identitarians é o da geopolítica. Embora constituam movimentos nacionalistas, os identitários pensam na formação de um bloco político transnacional, articulado por interesses que seriam comuns aos povos de origem europeia. Em relação a esse debate, é central a obra do autor russo Alexander Dugin (2013), na qual é retomado o projeto do eurasianismo.2 O “abraço euroeslavo” é um projeto que defende uma comunhão de interesses entre as civilizações europeias que se estenda da “Ibéria à Sibéria”, pelo eixo Paris-Berlin-Moscou. Apesar da inclinação comunitarista dos identitários, no sentido cultural de Tönnies (2011) e Herder (2004), a discussão em torno à identidade, no sentido biológico, também ocorre com grande relevância para a etologia de Konrad Lorenz (2002) e a paleoantropologia de Robert Ardrey (2014).3

Embora dentro da miríade de movimentos e agrupamentos analisados existam alguns grupos que se assemelhem muito a movimentos fascistas, como o italiano Casa Pound, falar apenas de um “retorno ao fascismo” seria um tanto reducionista, de forma que o fenômeno identitário aponta para algo mais amplo. Ele é parte da crise dos modelos cívico-territoriais de nacionalismo e da ascensão de propostas nacionalistas mais comuns na Europa centro-oriental, onde o Estado nacional se formou posteriormente aos países da Europa Ocidental. As tensões frente à migração, sentidas por alguns setores dessas populações, traz à tona tipos de conflito que caracterizavam a Europa centro-oriental do século XIX, até 1945, e mesmo décadas depois em algumas áreas da Europa (Mazower, 1991), onde a formação de bolsões e enclaves étnicos dentro de seus Estados-nação fazia com que as populações majoritárias desenvolvessem um discurso étnico bastante arraigado.

A proposta dos primeiros eurasianistas de inícios dos novecentos era pensar uma saída para organizar politicamente o multiétnico Império Russo. Para eles, o patriotismo estatal de nada valia,4 se esse Estado não fosse preenchido e conduzido por uma coletividade étnica consciente de seu lugar único no mundo (Ivanov; Fotieva; Shishin; Belokurova, 2016). A etnosociologia eurasianista, da qual falavam e falam seus defensores, constitui uma sociologia voltada para a descoberta dos traços fundamentais etnoculturais e etnonaturais de um povo, convergindo ciências sociais e ciências naturais, proposta semelhante à dos identitários,5 frente a um cenário social também bastante semelhante. A resposta dos identitários ao novo quadro multiétnico da Europa, sobretudo ocidental, se assemelha àquela dada pelos eurasianistas aos desafios enxergados na formação da identidade e administração do Império russo de então.

Portanto, o livro de Zúquete, através da análise dos identitários, estabelece um quadro analítico que adentra a problemática mais profunda do continente europeu, assim como do nacionalismo em geral, proporcionando uma explicação clara e objetiva para os interessados no tema dos movimentos nacionalistas e anti-imigração. É uma obra importante também no sentido da análise do crescimento do nacionalismo não apenas na Europa, mas em países como Índia, Turquia, Indonésia, Japão, Brasil, tendo em vista, evidentemente, as grandes diferenças entre essas experiências. Ainda assim é possível notar pontos em comum em todos eles, denotando certas tendências do século XXI que o livro de Zúquete ajuda a compreender.

1Como a carne hallal nas escolas.

2Retomado no sentido de que o eurasianismo foi uma escola de pensamento criada pelo historiador e linguista russo Nicolai Trubetzkoi em inícios do século XX.

3Os autores oriundos das ciências biológicas utilizados muitas vezes não são membros ou mesmo simpatizantes dos movimentos. Ainda assim, suas teorias são utilizadas como meio de validação científica daquilo que defendem em um plano político.

4Aqui nota-se a semelhança com o nacionalismo cívico-territorial. Um nacionalismo voltado para traços mais abstratos de um Estado e uma constituição modernos.

5Vale lembrar que os trabalhos que tentavam compreender a identidade dos europeus a partir de análises biológicas abundavam também na parte ocidental do continente até 1945. Não desapareceram totalmente após o fim da segunda guerra, mas não exerciam mais tanto impacto no ambiente acadêmico universitário como antes.

Referências

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CAMUS, Renaud. Le Grand Remplacement suivi de Discours d’Orange. Plieux: Chez l’auteur, 2012. [ Links ]

DUGIN, Alexander. La Cuarta teoria política. Barcelona: Publidisa, 2013. [ Links ]

IVANOV, Andrey Vladimirovitch; FOTIEVA, Irina Valevjna; SHISHIN, Michail Yurevitch; BELOKUROVA, Sofja Michailovna. The Ethno-Cultural Concept of Classical Eurasianism. International Journal of Environmental and Science Education. vol. 11, n. 12, p.5155-5163, 2016. [ Links ]

GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Ithaca: Cornell University Press, 1983. [ Links ]

HERDER, Johann Gottfried. Another Philosophy of History and Selected Political Writings. Indianapolis/Cambridge: Hackett Classics, 2004. [ Links ]

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TÖNNIES, Ferdinand. Community and Society. Mineola/New York: Dover Publications, 2011. [ Links ]

ZÚQUETE, José Pedro. The Identitarians: the Movement against Globalism and Islam in Europe. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2018. [ Links ]

Gabriel Guimarães – ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa Av. das Forças Armadas, Lisboa, 1649-026, Portugal. gfrgs@iscte-iul.pt.

As várias faces dos feminismos: memória, história, acervos/Acervo/2020

Feminismo anarquista, feminismo negro, feminismo cristão, feminismo islâmico, ecofeminismo, feminismo decolonial (ou descolonial), feminismo latino-americano, feminismo imigrante… Em tempos e espaços diversos, empunhando várias bandeiras de luta, enfrentando violentas críticas e embates, perpassados por tensões teóricas e políticas fragmentadoras, os feminismos estão presentes em todos os continentes e cumprem um papel fundamental na sociedade contemporânea. Mas, para melhor compreendê-los em sua historicidade e complexidade, torna-se cada vez mais necessário refletir sobre a importância da preservação de acervos que guardam as memórias do engajamento feminino em lutas políticas fundamentais pelos direitos das mulheres, contra as discriminações e os preconceitos de gênero, contra a escravidão de africanas(os), contra o racismo e as desigualdades sociais e econômicas, pela democracia, entre muitas outras. Leia Mais

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, v.181, n.483 mai./ago. 2020.

Revista IHGB – Número 483

arta ao Leitor

I – ARTIGOS E ENSAIOS

  • ARTICLES AND ESSAYS
  • Por que e para que comemorar os feitos do passado?
  • Why and for what purpose should past achievements be celebrated?
  • Jean Marcel Carvalho França
  • As relações entre Brasil e Áustria e a viagem de Johann Natterer pelo Brasil Relations between Brazil and Austria and Johann Natterer’s Journey Through Brazil
  • Jéssica Uhlig Amorim Vasconcelos de Araujo
  • Absolutismo político e liberalismo econômico: o reformismo ilustrado de José da Silva Lisboa (1800-1821)
  • Political absolutism and economic liberalism: the illustrated reformism of José da Silva Lisboa (1800-1821)
  • Christian Edward Cyril Lynch
  • Eleições na Bahia: impactos sobre a definição político-administrativa do território provincial (1828-1834)
  • Elections in Bahia: impacts on the political-administrative definition of the provincial territory (1828-1834)
  • Nora de Cassia Gomes de Oliveira
  • A narrativa de viagem de Henry Walter Bates: Edições, traduções e adaptações de The Naturalist on the River Amazons
  • The travel narrative of Henry Walter Bates: Editions, translations and adaptations of The Naturalist on the River Amazons
  • Anderson Pereira Antunes
  • Ildeu de Castro Moreira
  • Luisa Medeiros Massarani
  • O rescaldo da pacificação: ideias de conciliação e de representação política nos primeiros anos de Caxias no Senado Imperial (1846-1848)
  • In the aftermath of peace: Conciliation ideas and political representation in the early years of Caxias in the Imperial Senate (1846-1848)
  • Leonardo dos Reis Gandia
  • Rui Barbosa e o pleito por justiça nas relações internacionais
  • Rui Barbosa and the plea for justice in international relations
  • Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo
  • Raphael Spode
  • Gênese do modelo austríaco de controle de constitucionalidade: construção eminentemente racional voltada à proteção dos direitos fundamentais?
  • Genesis of the austrian constitutionality control Model: an eminently rational construction aimed at protecting fundamental rights?
  • Marcus Flávio Horta Caldeira
  • Vinda dos Koutakusseis para a Amazônia: uma migração atípica
  • The arrival of the Koutakusseis in the Amazon: an atypical migration
  • Reiko Muto
  • Luis E. Aragón
  • Paraguai, Uruguai, a II Guerra Mundial e o reequilíbrio de forças no Rio da Prata
  • Paraguay, Uruguay, World War II and the rebalancing of forces in the River Plate
  • Francisco Fernando Monteoliva Doratioto
  • Resistência e derrota do Presidente João Goulart, em abril de 1964, em Porto Alegre
  • Resistance and defeat of President João Goulart in april 1964 in Porto Alegre
  • Gunter Axt

II – ENTREVISTAS

  • INTERVIEWS
  • Memória, história e profissionalização da Geografia no Brasil: entrevistas com Pedro Pinchas Geiger
  • Memory, history and professionalization of Geography in Brazil: interviews with Pedro Pinchas Geiger
  • Patrícia Aranha

III – DOCUMENTOS

  • DOCUMENTS
  • Percurso acadêmico de Manoel Botelho de Oliveira em Coimbra (1657-1665). Documentação conservada no Arquivo da Universidade de Coimbra
  • The academic path of Manoel Botelho de Oliveira in Coimbra (1657-1665). Records housed in the Archive of the University of Coimbra
  • Enrique Rodrigues-Moura

VI – RESENHAS

  • REVIEW ESSAYS
  • Três historiadores, três Brasis e a apologia da História: entre lições e trajetórias
  • Lucas Cabral da Silva
  • Normas de publicação
  • Guide for the authors

História da Historiografia. Ouro Preto, v.13, n.32, 2020.

Expediente

Editorial

Diretrizes para autores

Publicado: 2020-04-30

Ars. São Paulo, v.18, n.38, 2020.

ENSAIOS VISUAIS

ARTIGOS

TRADUÇÕES

PUBLICADO: 2020-04-30

Si je reviens un jour… Les lettres retrouvées de Louise Pikovsky – TROUILLARD; LAMBERT (APHG)

TROUILLARD, Stéphanie, LAMBERT, Thibaut. Si je reviens un jour… Les lettres retrouvées de Louise Pikovsky. Paris: Des Ronds dans l’O, 2020. Resenha de: CHANOIR, Yohann. Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie (APHG). 30 avr. 2020. Disponível em: <https://www.aphg.fr/Si-je-reviens-un-jour-Les-lettres-retrouvees-de-Louise-Pikovsky-4019> Consultado em 11 jan. 2021.

Un livre, une histoire, l’Histoire

Tout livre, même dessiné, a une histoire. Celui-ci encore plus que les autres. En 2010, dans un lycée parisien, sont retrouvées des lettres et des photographies appartenant à une ancienne élève, Louise Pikovsky. Arrêtée le 22 janvier 1944, transférée à Drancy avec ses parents, elle est déportée à Auschwitz, d’où elle ne reviendra pas. Le destin de Louise et de sa correspondance épistolaire avec sa professeure de latin-grec est en soi déjà émouvant. Mais il l’est davantage encore par la suite. Retrouvées, les lettres sont lues, mises en valeur dans le lycée de Louise, où une plaque commémorative sur les élèves déportés a pu être posée. Elles ont servi ensuite à nourrir un webdocumentaire réalisé par Stéphanie Trouillard en 2017, auteure que nos lecteurs connaissent bien avec son très beau livre Mon oncle de l’ombre, sur son grand-oncle exécuté en 1944 par les Allemands. Elles sont devenues aujourd’hui une bande dessinée. On retrouvera d’ailleurs quelques-unes de ces lettres et photos à la fin de l’album.

La vie d’une jeune lycéenne parisienne

Née en 1932, Louise est une élève dont la maturité surprendra plus d’un lecteur. Non seulement par la beauté de son raisonnement, par son souci des autres, mais aussi par sa prescience en 1944 que son destin est scellé et qu’elle accepte avec une incroyable résolution. Louise est cependant une jeune fille, comme bien d’autres, avec ses amitiés, ses inimitiés. Elle est aussi une de ces élèves, toujours trop rares, qui saisissent la beauté d’un texte, qui s’accaparent l’enseignement donné, le questionnent, le transforment et lui donnent une plus-value. De fait cet album est aussi celui d’une rencontre, entre une élève et son enseignante. La classe n’épuise pas évidemment la vie de Louise. On plonge dans son quotidien, les repas avec la famille, les chamailleries avec les sœurs et son frère. Le dessinateur a su rendre le caractère spartiate du logement par les couleurs plutôt ternes (seuls les rideaux rouges sous l’évier cassent la palette chromatique). Il a su également l’enrichir par une foule de petits détails, ces « effets de réel » dont parlait Roland Barthes : le torchon qui enveloppe le pain (p. 23), le seau pour les détritus (p. 19) etc. Le sérieux du propos n’exclut pas l’humour. Nos lecteurs attentifs retrouveront le clin d’œil à Hergé et aux aventures de Tintin, une allusion référentielle typique de l’école belge.

La guerre en arrière-plan

Drame singulier en même temps qu’expérience collective subie par des millions de personnes, le destin de Louise n’est pas décontextualisé. Par petites touches, à la manière d’un impressionniste, le dessinateur place des éléments de contexte dans les planches. On y découvre un Paris bien sûr occupé, avec la présence de soldats allemands, un Paris déjà martyrisé par les bombardements (p. 49) mais aussi une capitale où la mort sociale de la population juive est mise en œuvre, avec le dessin bien connu d’une pancarte dressée devant un parc à jeux réservé aux enfants mais interdit aux Juifs (p. 34). L’album offre ainsi un résumé saisissant de la politique de collaboration des autorités avec les nazis : policiers français qui saluent, au détour d’une rue, une patrouille allemande, policiers français qui viennent arrêter Louise et sa famille pour les emmener à Drancy, antichambre de la mort, policiers enfin qui livrent les familles aux nazis. En quelques images, sans le renfort de cartouches, tout est montré, tout est dit. Ces images sont d’autant plus poignantes que les grands-parents de Louise avaient quitté la Russie pour échapper aux pogroms et qu’ils pensaient être libres, heureux, en sécurité. Le destin de Louise est aussi la mort d’une certaine idée de la République.

Un album à lire et à faire lire

Si l’intérêt de cette bande dessinée est naturellement d’ordre mémoriel, il nous semble que l’album joue un rôle tout aussi déterminant dans la pédagogie de la Shoah. Expliquer à des élèves aujourd’hui ce qu’est cet assassinant industriel de masse, n’est pas simple. Cela ne peut se réduire à une collection de mesures et de chiffres. Il est nécessaire d’incarner la « Solution finale », par des exemples précis. Comme le cinéma ou les séries télévisées, la bande dessinée dispose du pouvoir de l’image. À ce titre, en raison de sa richesse, cet album doit s’inviter dans nos pratiques.

Il y a d’abord l’empathie pour une jeune fille de leur âge. Il y a ensuite l’explication sobre et efficace de la mécanique implacable de la Shoah, de l’exclusion à l’arrestation puis à la déportation. La bande dessinée souligne également l’héroïsme au quotidien d’une enseignante, qui fait retirer à Louise pour la photo de classe, sa veste avec l’étoile jaune, car elle est « une élève comme les autres » (p. 45). On imagine la tranquille résolution de notre collègue qui, elle, n’a pas démérité de la haute idée que l’immense majorité du corps enseignant, hier comme aujourd’hui, se fait de la République.

Les larmes de notre collègue s’expliquent ainsi sans doute, pour ne pas avoir pu sauver une jeune vie si prometteuse et par là tout un monde. Qu’elle soit toutefois assurée et rassurée, grâce à elle, et grâce au travail des auteurs de cet album, au soutien de la Fondation pour la Mémoire de la Shoah, Louise ne sera plus oubliée.

Site web de l’éditeur

Yohann Chanoir – Agrégé d’histoire, professeur en classe européenne allemand au Lycée Jean Jaurès de Reims, rédacteur en chef adjoint d’Historiens & Géographes.

Consultar publicação original

[IF]

 

Revista TEL. Irati, v 10, n.2, 2019.

Dossiê: Gênero, discursividades e transversalidades

Expediente | Editorial Board | Cuerpo Editorial

Editorial | Editor’s Note | Presentación

Dossiê | Special Issue | Dossier

Artigos | Articles | Artículos

Tradução | Translation | Traducción

Publicado: 2020-04-28

História.Com. Cachoeira, v.6, n.12, 2019.

Revista Eletrônica Discente História.com

Artigo Livre

História da África

Resenha

Publicado: 2020-04-28

Revista de Arqueologia. Pelotas, v.33, n.1, 2020.

Museu Nacional (volume 2)

Editorial

  • Fernanda Codevilla Soares, Luis Cláudio Pereira Symanski, Rafael Guedes Milheira
  •  PDF

Especial

Notas de Pesquisa

Resenha

Publicado: 2020-04-25

Navigator. Rio de Janeiro, v. 15, n.29 2019.

Revista Navigator – Dossiê Interfaces da arte no universo da história marítima e militar: estética, linguagens e representações

Apresentação

Dossiê

Artigos

Publicado: 2020-04-15

Intelligere. São Paulo, n.9, 2020.

APRESENTAÇÃO E SUMÁRIO

TRADUÇÕES

PESQUISA

EXPEDIENTE

PUBLICADO: 2020-08-23

Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.13, n.37, 2020.

Carta Internacional. Belo Horizonte, v.15, n.1, 2020.

Escritas. Araguaína, v.11, n.2, 2019.

“Trampas” do (des)envolvimento

Seção Livre

Publicado: 2020-04-17

Humanas

Humanas Pesquisadoras em Rede Ciudad

Humanas – Pesquisadoras em Rede (2020-) é constituído por mulheres. Em 13 de abril de 2020, na vigência do isolamento social imposto pelo agravamento da pandemia da Covid-19 no Brasil, um grupo de pesquisadoras e professoras de História realizou uma reunião virtual.

Nesse primeiro encontro, houve consenso entre as participantes de que precisamos enfrentar os problemas de gênero e suas interseccionalidades que, sob formas variáveis, condicionam e estruturam o mundo acadêmico.

Consideramos que, historicamente, a pesquisa e o ensino sempre funcionaram como instâncias de reprodução da invisibilidade da produção intelectual das mulheres em todas as áreas de conhecimento.

Compartilhamos o desejo de enfrentamento mais efetivo de questões que incidem sobre a nossa atuação profissional, tais como a precarização das condições de trabalho e a carga de vulnerabilidades específicas das pesquisadoras/professoras; as disparidades no acesso aos espaços públicos de fala; os limites e constrangimentos no ingresso em postos na hierarquia administrativa das instituições de ensino; a cooptação, o assédio e o preconceito sexista no ambiente escolar e acadêmico.

Com a designação de “rede”, reforçamos a proposta de formação de um grupo cujo critério norteador está na aglutinação, no acolhimento e na aliança solidária de mulheres que pesquisam, ensinam e atuam na História e em áreas afins das Humanidades.

Pretendemos, assim, promover ações orientadas por relações acadêmicas mais colaborativas, que mantenham no horizonte a construção de reflexões críticas, o diálogo transdisciplinar, a intervenção efetiva nos espaços públicos e a defesa dos valores e ideais democráticos.

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Boletim Cearense de Educação e História da Matemática. Fortaleza, v.7, n.19, 2020.

Boletim Cearense de Educação e Hist´ória da Matemática

EDITORIAL

ARTIGOS

INICIAÇÃO À PESQUISA

PUBLICADO: 2020-04-11

História e Literatura: diálogos e interações | História, histórias | 2020

O dossiê História e Literatura: diálogos e interações apresenta um corpus meditativo cujas reflexões procuram estabelecer pontos de contatos entre a criação ficcional e a realidade histórica nela representada. Não é de hoje que história e literatura andam de mãos dadas, as interações e divergências entre as duas encontram ecos no pensamento ocidental desde a Antiguidade.

Aristóteles talvez tenha sido o primeiro a notar a relevância desta intersecção, conferindo-lhe legitimidade ao reformular a noção de mimese proposta no pensamento platônico. Isto porque a importância atribuída ao poeta na filosofia aristotélica resulta do reconhecimento das experiências humanas no mundo sensível, algo anteriormente negado pelo idealismo platônico. Na Poética de Aristóteles, a imitação ganhou novo status por meio da noção de verossimilhança e da experiência daquele que se relaciona com o objeto artístico, bem como os efeitos sobre ele também adquiriram novos contornos, caso das reflexões acerca da catarse. Leia Mais

História, Histórias. Brasília, v.8, n.15, 2020.

Revista História, histórias

DOI: https://doi.org/10.26512/rhh.v8i15

Dossiê

Artigos

Publicado: 2020-04-11

Educação a Distância e Práticas Educativas Comunicacionais e Interculturais. São Cristóvão, v.20, n.1, 2020.

Expediente

Editorial

Artigos Gerais

Publicado: 2020-04-08