Sobre o objeto memória
Mulher cuidando de cães | Aquarela/IA/IF/Canva
Uma lembrança do dia que meu bem se descobriu 52 anos mais velha.
Introdução
Colegas, bem-vindos à “Unidade 1” do nosso curso de “Educação, Cultura e Memória”. Espero que todos estejam com saúde e assim permaneçam durante as nossas atividades.
Nesta aula introdutória, vamos explorar o conceito de memória em várias perspectivas. O objetivo é oferecer um panorama de possibilidades de concepção e uso do termo, com vistas à orientação das pesquisas em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras da Universidade do Estado da Bahia (PPGEAFIN-UNEB).
Lembrem-se de que este texto registra a preleção do professor. É um trabalho de síntese que abre a discussão sobre o assunto e não substitui a leitura dos originais.
Os filmes não necessariamente tem a função de traduzir subtítulos ou categorias. Eles são também janelas para a leitura da bibliografia do curso.
Na primeira tarde do módulo, vamos explorar quatro ideias de memória disseminadas por muitos profissionais que explicam a nossa vida cotidiana.
Na segunda, vamos proceder de modo idêntico com os profissionais da Filosofia, História e Sociologia, explorando o termo em três dimensões: memória como universal antropológico, memória como substância de si, dos outros e dos próximos e memória como valor.
Ambas as possibilidades de uso podem muito auxiliar as escolhas de referencial teórico orientador da leitura de fontes, fatos e processos constituidores das suas dissertações.
Um modo inicial de definir memória é considerando a natureza da sua função. Assim, em quaisquer desses casos, podemos pensá-la instrumentalmente como: o conjunto de informações obtidas processos neurobiológicos que tem por finalidades: ligar o presente ao passado (reter o útil), ligar o passado ao presente (lembrar o útil), ligar passado, presente e futuro (agir), situar o presente (contextualizar), identificar o passado repetido e ligá-lo ao futuro (prever) e remediar o esquecimento do passado (rememorar).
Entre investigadores das ciências humanas e sociais, contudo, expressão “memória humana” é consumida dominantemente a partir da sua substância, o que gera quatro núcleos de definição: (1) habilidades mentais universais de reter e recuperar informação; (2) é o processo responsável pelo armazenamento e recuperação da informação; (3) é a própria substância armazenada e/ou recuperada; e (4) o equipamento ou suporte da informação que estimula o seu armazenamento (ou remedia o esquecimento).
As habilidades de reter e recuperar
O primeiro uso de memória é demandado por iniciativas clássicas de caracterização de entes designados seres humanos. Dentro do pensamento moderno, humanos são seres dotados de faculdades, dentre as quais está o poder (a capacidade ou a habilidade) de reter e recuperar informações para uso na vida cotidiana.
Esse atributo vale para o pensamento especulativo de filósofos, nos séculos XVIII e XIX. Ali, humanos eram detentores das capacidades de memória, vontade e razão (Locke, 1986) ou das capacidades de sentir (traduzida por memória, previsão e designação e entendimento) relacionar, conhecer e julgar, entre outras (Kant, 2006), ou ainda, por capacidades da memória, imaginação, inteligência e juízo estético (Herbart, sd).
O atributo vale também para pesquisa experimental dos séculos XX e XX, realizado no âmbito da Psicologia Cognitiva e das Neurociências. Longe dos métodos introspectivos e centradas em estratégias experimentais (empíricas), psicólogos, neurobiólogos e neurocientistas, por exemplo, mantém a “memória humana” como objeto privilegiado da pesquisa sobre cognição e aprendizagem, junto às funções da linguagem e da atenção, por exemplo. (Mas, et. al, 2007).
Assim, salvo mutilação cerebral, continuamos reconhecendo que os seres humanos são dotados de memória que lhes permitem viver em sociedade, retendo e lembrando o útil, contextualizando o que acontece no seu entorno, prevendo, posicionando-se e agindo.
A capacidade de retenção e de rememoração possibilita aos humanos a própria melhoria dessas capacidades de retenção e de rememoração. Humanos criam técnicas (modos de fazer) e tecnologias (ferramentas e conhecimentos) que viabilizam a retenção de coisas na forma de escrita, o desenho, a pintura, a gravação, a moldagem em pedra, madeira, barro, registro em impulsos elétricos, pixels etc. que podem ser recuperadas adiante. Em outros termos, memória ajuda a criar instrumentos de consolidação, reprodução e aumento de si própria.
Processos de reter e lembrar
Consideradas em modo dinâmico, essas habilidades de reter e lembrar dão origem ao segundo uso do nosso termo chave: a memória como processo.
Processos mobilizam habilidades ordenadas. A primeira é a codificação. Ela depende da percepção do acontecimento (um som ou uma imagem, por exemplo) que pode durar de milissegundos a segundos (traço de memória).
A segunda habilidade é a de armazenar parte desses traços de memória, que são “estabilizados fisiologicamente” durante algumas horas (síntese de proteínas).
A terceira é a recuperação, também limitada a segundos/milissegundos, que consiste em “trazer de volta as informações” situadas metaforicamente em algum canto do cérebro (lembrança). (Lane; Houston, 2021, p.15-25; Baddeley et al, 2020, p.10-16).[i]
A memória-processo é talvez a realização mais conhecida no âmbito do trabalho docente. Muitas vezes condenado de modo injusto, o aprender de cor ou memorizar preenche o cotidiano escolar do aluno e do professor.
Nos últimos três séculos, independentemente das singularidades teóricas, processos de reter e recuperar designavam o aprender e o ensinar, refletindo as etapas creditadas ao processamento de informação capturada no entorno do aluno.
Estas etapas, não raro, configuravam um método de ensino e de aprendizagem: percepção pelos olhos e os ouvidos, armazenamento em algum lugar do cérebro, recuperação da informação e expressão da informação de modo oral, escrito ou imagético, conservando a sua quantidade e em sua sequência original, apresentada pelo professor.
Hoje, considerada a partir da sua “arquitetura da memória”, os três movimentos listados acima podem ser concebidos na forma de dominantes e interagentes sistemas de armazenamento que interferem na aprendizagem, embora não sejam conversíveis, automaticamente, em passos ou sequências de uma aula. Eles são: memória trabalho, a memória de curto prazo e a memória de longo prazo.
A memória trabalho é empregável na retenção ou recuperação das memórias de curto e de longo prazo: “enquanto escrevia, a memória da terceira palavra da frase anterior (que já perdi!) foi parte da minha memória trabalho. O mesmo aconteceu com você, leitor, ao ler essa frase: você compreendeu a terceira palavra de minha frase, há poucos segundos, mas já não a recorda mais.” (Izquierdo, 2010 p.23).
A memória de curto prazo (ou a memorização em curto lapso de tempo) é “um sistema para a manutenção temporária e a manipulação de informações […] úteis na execução de tarefas complexas” (Baddeley, 2020, p.x).
A memória de longo prazo, como o nome indica, “é um sistema ou sistemas que supostamente sustentam a capacidade de armazenar informações por longos períodos de tempo” (Baddeley, 2020, p.x). Ela pode ocorrer conscientemente de modo declarativo (memória semântica e memória episódica) ou de modo implícito, como a que é ativada quando andamos de bicicleta (memória implícita ou de recuperação involuntária).
A memória declarativa se ocupa de informações gerais sobre específicos (o significado de palavras e alguns “atributos sensoriais como sabor e cor”) e de informações também gerais sobre o funcionamento da sociedade (regras de comportamento em uma igreja ou na escola).
A memória de longo prazo do tipo declarativa também se ocupa de informações experimentadas em situações inéditas (o nascimento de uma filha, a morte de uma aluna). Neste caso, recebe o significativo nome de memória episódica.
De modo hiper-realista, tanto a capacidade sistêmica de armazenamento de curto prazo, como a capacidade sistêmica de armazenamento de longo prazo são realizados por um frenético vai e vem de neurônios de tipo vário, convertendo informação (estímulos etc.) e transportando informação entre as áreas de percepção (olhos, ouvidos, pontas dos dedos etc.) e as áreas de armazenamento e de consolidação (diferentes lóbulos do cérebro).
Outro importante registro a guardar é a relação entre os dois sistemas. Como alerta Baddeley, trânsito de informações não ocorre apenas da memória de curto prazo à memória de longo prazo: “nosso conhecimento do mundo, armazenado na memória de longo prazo, pode influenciar no foco de atenção, que determinará tanto a natureza do que é alimentado nos sistemas de memória sensorial (objetos familiares ou sem sentido) como a qualidade do que é recuperado (Baddeley et al, 2020, p.10).
A substância armazenada ou recuperada
O resultado da ação de memorizar, ou seja, a realização simultânea dos fins da memória-capacidade, memória-ato e memória-equipamento é a memória-coisa. Este nome não é dos melhores, mas expressa a natureza da memória ou um modo de encará-la positivisticamente.
Ela se realiza de forma estática, na figura e uma imagem de lugar, o rosto de uma pessoa ou cheiro de um arbusto. Ela também se realiza de forma dinâmica, na figura de uma proposição ou uma longa narrativa expressa em um arranjo lógico sequencial de acontecimentos. A depender da escala de observação, porém, a memória-coisa pode estar ou não disponível à imaginação das pessoas.
Quando o professor nos apresenta uma edificação do século XVIII (imagens físicas), em São Cristóvão-SE, como uma Igreja cristã e o faz repetidas vezes, ao longo de um ano letivo, mobilizando sistema de representação visual, fonológico, gramatical e conceitual (Pinker, 1998, p.96-102), uma rede neuronal é estabelecida em nossa mente, envolvendo substâncias inimagináveis aos leigos em bioquímica. Neste caso, memória é realizada, entre outras coisas, por impulsos elétricos e proteínas que constituem o que chamamos de retenção.
Quando alguém nos interroga sobre edificações similares situadas em Coité-Ba, ou Goiás Velho-GO e somos tomados por representações (imagens mentais) da mesma igreja de São Cristóvão, a rede neuronal (igreja cristã do século XVIII) é ativada e reforçada em nossa mente, envolvendo também substâncias inimagináveis aos leigos em bioquímica. Neste caso, memória é realizada, entre outras coisas, por impulsos elétricos e proteínas que constituem o que chamamos de lembrança.
O suporte que encarna e estimula a retenção e a recuperação
Durante a manipulação das ideias de memória-habilidade, memória-processo e memória-substância (também como condição epistemológica), os pesquisadores lançam mão de categorias realizadoras de espaço físico. Dizendo de outro modo, a capacidade abstrata de reter/recuperar e o consequente ato de memória (a realização dessa capacidade) exigem esquematicamente um local para a manipulação dos estímulos e informações e a guarda desse material manipulado.
Esse local pode ser examinado a partir do interior do indivíduo e do seu exterior. Examinando a questão pelo primeiro aspecto, constatamos que, durante séculos, ele foi realizado como um órgão metaforizado de várias maneiras. Dois exemplos conhecidos são: a forma de loja, onde se deposita qualquer espécie de objeto (Rollin, 1764), e a forma de músculo, que amplia a sua capacidade de retenção mediante exercícios disciplinados (Locke, 1986).
Nos últimos 60 anos, esse local onde se processa a memória corresponde, na verdade, a meia dezena de espaços dispersamente situados no cérebro e nas demais partes do corpo onde atuam neurônios receptores e transportadores de estímulos provenientes do entorno de um indivíduo. Esses espaços são ativados à medida que o entorno nos estimula ou à medida que nós dirigimos a atenção para determinado acontecimento.
Assim, ao invés de loja ou músculo, pesquisadores o designam esse local como “arquitetura da memória” (descrito no tópico anterior). Com ele, podemos por exemplo falar em mobilização de lóbulos cerebrais, durante o processo de memória trabalho e o processamento da memória de longo prazo.
Examinando a questão do local como disposto no exterior do indivíduo, nos deparamos com a ideia de que certos artefatos podem ser metaforizados como local de memória. Não é qualquer artefato. É, simplesmente, aquele objeto de valor afetivo ou repulsivo que, ao ser manuseado ou observado, provoca emoções e abre um canal entre o presente e o passado de quem o manipula. É também um objeto de valor neutro para o observador comum, mas que fornece direta ou indiretamente informações sobre determinada questão, quando examinado por um identificador de historicidades.
Esse último tipo é o que designamos como fonte histórica. Toda fonte é potencialmente memória, ou seja, algo que remete ao passado ausente (ou ao acontecido presentificado). Neste sentido, são designados memória os artefatos resultantes das técnicas referidas acima, a exemplo dos registros em pedra, argila, papel, HDD, SSD, pen drive que viabilizam a retenção e a recuperação conjuntos de informações, a exemplo de uma lista de reis, cenas de caçada gravadas em pedra, um livro didático de história ou um trecho de vídeo sobre os atos do oito de janeiro de 2023 em Brasília.
Conclusão
Neste texto introdutório, tentamos convencê-los de que a palavra memória é categorizada por profissionais de diferentes domínios em quatro significados: habilidades de reter e recuperar, equipamento/processo, substância e suporte da substância retida e/ou recuperada.
Também reiteramos que profissionais da memória exploram seu objeto em diferentes escalas, contemplando desde redes neuronais até a imagens, sons e textos inscritos na paisagem (um livro, um edifício, um oceano).
Ao fim e ao cabo, profissionais da memória exploram-na em sua substância e função para a sobrevivência humana, ou seja, na retenção do útil, na recuperação do útil para compreender a ação do outro, no registro e na recuperação do útil para desejar, planejar, inventar, manter ou contestar identidades e dominações.
Na próxima aula, vamos explorar os tipos e os usos que filósofos sociólogos e historiadores prescrevem para categoria “memória” no trabalho do historiador.
Referências
BRADDELEY, Alan; WYSENCK, Michael W.; ANDERSON, Michael C. Memory. 3ed. London: Routledge, 2020.
CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Lisboa: Quarteto, 2001.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7ed. Forense Universitária, 2008. [1968]
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. [1968]
HERBART, Johann Friedrich. Pedagogia Geral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
IZQUIERDO, Iván. A arte de esquecer: cérebro e memória. Rio de Janeiro: Vieira & Lenk, 2010.
KANT, I. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006.
LANE, Sean M.; HOUSTON, Kate A. Understanding eyewitness memory. Theory and Applications. New York: New York University Press, 2021.
LOCKE, John. Pensamientos sobre la educación. Madrid: Akal, 1986.
MAS, Carles Soriano (Coord.). Fundamentos de Neurociencia. Barcelona: UOC, 2007.
NORA, Pierre. Les lieux de la mémoire. Montevideo: Trilce, 2008. [1984]
PINKER, Steven. Como a mente funciona. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016. [2016]
RICCEUR, Paul. La memoria, la historia, el olvido. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2004. [2000]
ROLLIN, Charles. De la maniere d’enseigner et d’’étudier les belles-lettres para rapport à l’’esprit & au coeur. T. 1. Paris: Etienne & Fils, 1764. p.230-243.
Nota
[i] Para uma completa, esquemática e didática exposição desses processos, consultar Lane e Houston (2021) e Braddeley et al (2020), aqui empregados como principais referências.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Sobre o objeto memória. Resenha Crítica. Aracaju/Crato, 24 abr. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/sobre-o-objeto-memoria/>.