Foi Omama que criou a terra e a floresta, o vento que agita suas folhas e os rios cuja água bebemos. Foi ele que nos deu a vida e nos fez muitos. Nossos maiores nos deram a ouvir seu nome desde sempre. No começo, Omama e seu irmão Yoasi vieram à existência sozinhos. Não tiveram pai nem mãe. Antes deles, no primeiro tempo, havia apenas a gente que chamamos yarori.1 Esses ancestrais eram humanos com nomes de animais e não paravam de se transformar. Assim, foram aos poucos se tornando os animais de caça que hoje flechamos e comemos. Então, foi a vez de Omama vir a existir e recriar a floresta, pois a que havia antes era frágil. Virava outra sem parar, até que, finalmente, o céu desabou sobre ela. Seus habitantes foram arremessados para debaixo da terra e se tornaram vorazes ancestrais de dentes afiados a quem chamamos aõpatari.2
Por isso Omama teve de criar uma nova floresta, mais sólida, cujo nome é Hutukara. É também esse o nome do antigo céu que desabou outrora. Omama fixou a imagem dessa nova terra e esticou-a aos poucos, cuidadosamente, do mesmo modo como espalhamos o barro para fazer placas de cerâmica mahe.3 Em seguida, cobriu-a com pequenos traços apertados, pintados com tintura de urucum, parecidos com desenhos de palavras. Depois, para evitar que desabasse, plantou nas suas profundezas imensas peças de metal, com as quais também fixou os pés do céu.4 Sem isso, a terra teria ficado arenosa e quebradiça e o céu não teria permanecido no lugar. Mais tarde, com o metal que ficou, depois de fazer com que ficasse inofensivo, Omama também fabricou as primeiras ferramentas de nossos ancestrais.5 Finalmente, assentou as montanhas na superfície da terra, para evitar que as ventanias de tempestade a fizessem tremer e assustassem os humanos. Também desenhou o primeiro sol, para nos dar luz. Mas era por demais ardente e ele teve de rejeitá-lo, destruindo sua imagem. Então, criou aquele que vemos até hoje no céu, bem como as nuvens e a chuva, para poder interpô-los quando esquenta demais. Isso ouvi os antigos contarem.
Omama criou também as árvores e as plantas, espalhando no solo, por toda parte, as sementes de seus frutos. Os grãos germinaram na terra e deram origem a toda a floresta em que vivemos desde então. Foi assim que cresceram as palmeiras hoko si, maima si e rioko si, as árvores apia hi, komatima hi, makina hi, oruxi hi e todas as outras de que tiramos nosso alimento. No início, seus galhos eram nus. Depois, frutos se formaram. Então, Omama criou as abelhas, que vieram morar nelas e sorver o néctar das flores com que produzem seus vários tipos de mel.
No início, também não existiam os rios; as águas corriam debaixo da terra, bem fundo. Só se ouvia seu ronco, ao longe, como o de fortes corredeiras. Formavam um enorme rio que os xamãs nomeiam Motu uri u. Certo dia, Omama trabalhava em sua roça com o filho, que começou a chorar de sede. Para matar-lhe a sede, ele perfurou o solo com uma barra de metal.6 Quando a tirou da terra, a água começou a jorrar violentamente em direção ao céu e jogou para longe o menino que se aproximara para bebê-la. Lançou também para o céu todos os peixes, raias e jacarés. Subiu tão alto que um outro rio se formou nas costas do céu, onde vivem os fantasmas de nossos mortos. Em seguida, a água foi se acumulando na terra e começou a correr em todas as direções, formando os rios, os igarapés e os lagos da floresta.
No início, nenhum ser humano vivia ali. Omama e seu irmão Yoasi viviam sozinhos. Nenhuma mulher existia ainda. Os dois irmãos só vieram a conhecer a primeira mulher muito mais tarde, quando Omama pescou a filha de Tëpërësiki num grande rio.7 No início, Omama copulava na dobra do joelho de seu irmão Yoasi. Com o passar do tempo, a panturrilha deste ficou grávida, e foi assim que Omama primeiro teve um filho.8 Porém, nós, habitantes da floresta, não nascemos assim. Nós saímos, mais tarde, da vagina da esposa de Omama, Thuëyoma,9 a mulher que ele tirou da água. Os xamãs fazem descer sua imagem desde sempre. Chamam-na também Paonakare. Era um ser peixe que se deixou capturar na forma de uma mulher. Assim é. Se Omama não a tivesse pescado no rio, talvez os humanos continuassem a copular atrás do joelho!
Mais tarde, Omama ficou furioso com seu irmão Yoasi, porque este, contra a sua vontade, tinha feito surgir na floresta os seres maléficos das doenças, os në wãri,10 e também os da epidemia xawara, que, como eles, são comedores de carne humana. Yoasi era mau e seu pensamento, cheio de esquecimento. Omama era quem tinha criado o sol que não morre nunca. Não falo aqui do sol mothoka, cujo calor cobre a floresta, e que é visto pelas pessoas comuns, mas da imagem do sol.11 Assim é. O sol e a lua têm imagens que só os xamãs são capazes de fazer descer e dançar. Elas têm a aparência de humanos, como nós, mas os brancos não são capazes de conhecê-las.
Omama queria que fôssemos imortais, como o ser sol chamado de Mothokari 12 pelos xamãs. Queria fazer bem as coisas e pôr em nós um sopro de vida realmente sólido. Por isso, buscou na floresta uma árvore de madeira dura para colocá-la de pé e imitar a forma de sua esposa. Escolheu para tanto uma árvore fantasma pore hi, cuja pele se renova continuamente. Queria introduzir a imagem dessa árvore em nosso sopro de vida, para que este permanecesse longo e resistente.13 Assim, quando envelhecêssemos, poderíamos mudar de pele e esta ficaria sempre lisa e jovem. Teria sido possível rejuvenescer continuamente e não morrer nunca. Era o que Omama desejava. No entanto, Yoasi, aproveitando-se da ausência do irmão, tratou de colocar na rede da mulher de Omama a casca de uma árvore de madeira fibrosa e mole, a que chamamos kotopori usihi. Então, a casca acabou se dobrando num lado da rede e começou a pender para o chão. Imediatamente, os espíritos tucano começaram a entoar seus pungentes lamentos de luto.14 Omama ouviu-os e ficou furioso com o irmão. Mas era tarde demais, o mal estava feito. Yoasi tinha nos ensinado a morrer para sempre. Tinha introduzido a morte, esse ser maléfico, em nossa mente e em nosso sopro,15 que por esse motivo se tornaram tão frágeis. Desde então, os humanos estão sempre perto da morte. Também por isso às vezes chamamos os brancos de Yoasi thëri, Gente de Yoasi. Suas mercadorias, suas máquinas e suas epidemias, que não param de nos trazer a morte, também são, para nós, rastros do irmão mau de Omama.
Foi também Yoasi que criou o ser lua Poriporiri. Por isso este também não para de morrer. Poriporiri é um homem que viaja todas as noites através da imensidão do céu, sentado em sua canoa, como uma espécie de avião. No começo, é um rapaz, mas, dia após dia, vai envelhecendo. Quando termina sua viagem, está seco e seus cabelos ficaram brancos. Ele acaba morrendo. Então, suas filhas começam a chorar por ele sem descanso, junto com os espíritos tucano. Suas lágrimas se tornam fortes chuvas que caem longamente na floresta. Depois de algum tempo, quando o corpo do pai já se decompôs, elas recolhem seus ossos com cuidado. Então eles desabrocham novamente e Poriporiri volta à vida. Assim é. O ser lua é também coisa da morte. Yoasi quis assim porque lhe faltava sabedoria. Omama, ao contrário, queria realmente que fôssemos eternos. Se tivesse estado só, não morreríamos jamais e nosso sopro de vida sempre teria o mesmo vigor. Mas não foi assim e, infelizmente, Yoasi fez nossos ancestrais se tornarem outros.
Por isso Omama finalmente criou os xapiri, para podermos nos vingar das doenças16 e nos proteger da morte a que nos sujeitou seu irmão mau. Então ele criou os espíritos da floresta urihinari, os espíritos das águas mãu unari e os espíritos animais yarori. Depois, escondeu-os, até que seu filho se tornasse xamã, no topo das montanhas e nas profundezas do mato. Antes, eu achava que os xapiri tinham vindo a existir por si sós, mas estava enganado. Mais tarde, quando pude vê-los e ouvir seus cantos, realmente entendi quem eram. O pai de minha esposa conta também que foi a esposa de Omama, a mulher das águas, quem primeiro pediu que os xapiri fossem trazidos à existência. Somos seus filhos e nossos antepassados tornaram-se numerosos a partir dela. Por isso, depois de ter procriado, perguntou ao marido: “O que faremos para curar nossos filhos se ficarem doentes?”. Era essa a sua preocupação. O pensamento do marido, Omama, continuava no esquecimento. Por mais que seu espírito buscasse, ele se perguntava em vão o que poderia ainda criar. A mulher das águas lhe disse então: “Pare de ficar aí pensando, sem saber o que fazer. Crie os xapiri, para curarem nossos filhos!”. Omama concordou: “Awei! São palavras sensatas. Os espíritos irão afugentar os seres maléficos. Arrancarão deles a imagem dos doentes e as trarão de volta para seus corpos!”. Foi assim que ele fez aparecer os xapiri, tão numerosos e poderosos quanto os conhecemos hoje.
Mais tarde, o filho de Omama tornou-se um rapaz e seu pai quis que ele aprendesse a fazer dançar os xapiri para poder tratar os seus. Buscou uma árvore yãkoana hi na floresta e disse ao filho: “Com esta árvore, você irá preparar o pó de yãkoana! Misture com as folhas cheirosas maxara hana e as cascas das árvores ama hi e amatha hi e depois beba! A força da yãkoana revela a voz dos xapiri. Ao bebê-la, você ouvirá a algazarra deles e será sua vez de virar espírito!”. Depois, soprou yãkoana nas narinas do filho com um tubo de palmeira horoma.17 Omama então chamou os xapiri pela primeira vez e disse: “Agora, é sua vez de fazê-los descer. Se você se comportar bem e eles realmente o quiserem, virão a você para fazer sua dança de apresentação e ficarão ao seu lado. Você será o pai deles. Assim, quando seus filhos adoecerem, você seguirá o caminho dos seres maléficos que roubaram suas imagens para combatê-los e trazê-las de volta! Você também fará descer o espírito japim ayokora18 para regurgitar os objetos daninhos que você terá arrancado de dentro dos doentes. Assim você poderá realmente curar os humanos!”. Foi desse modo que Omama revelou a seu filho — o primeiro xamã — o uso da yãkoana e lhe ensinou a ver os espíritos que acabara de trazer à existência. Nossos maiores continuaram a seguir o rastro de suas palavras até hoje. Por isso, continuamos a beber yãkoana para fazer os xapiri dançar. Não fazemos isso à toa. Fazemos porque somos habitantes da floresta, filhos e genros de Omama.
O filho de Omama escutou atentamente as palavras do pai e concentrou seu pensamento nos xapiri. Entrou em estado de fantasma e tornou-se outro.19 Então pôde contemplar a beleza da dança de apresentação dos espíritos. Tornou-se xamã depressa, porque soube demonstrar amizade a todos. Os xapiri já tinham o olhar fixado nele desde que era bem pequeno e seu pai tinha falado a respeito deles muitas vezes. Agora, tinha crescido e eles finalmente tinham vindo em grande número. Podia vê-los descer, resplandecentes de luz, e escutar seus cantos melodiosos. Então, exclamou: “Pai! Agora conheço os espíritos e eles se juntaram do meu lado! De agora em diante, os humanos vão poder se multiplicar e combater as doenças!”. Omama era o único a conhecer os xapiri e os deu ao filho porque, se morresse sem ter ensinado suas palavras, jamais teria havido xamãs na floresta. Não queria que os humanos ficassem sem nada e causassem dó. Por isso, fez de seu filho o primeiro xamã. Deixou-lhe o caminho dos xapiri antes de desaparecer. Foi o que ele quis.
Disse a ele estas palavras: “Com estes espíritos, você protegerá os humanos e seus filhos, por mais numerosos que sejam. Não deixe que os seres maléficos e as onças venham devorá-los. Impeça as cobras e escorpiões de picá-los. Afaste deles as fumaças de epidemia xawara. Proteja também a floresta. Não deixe que se transforme em caos. Impeça as águas dos rios de afundá-la e a chuva de inundá-la sem trégua. Afaste o tempo encoberto e a escuridão. Segure o céu, para que não desabe. Não deixe os raios caírem na terra e acalme a gritaria dos trovões! Impeça o ser tatu-canastra Wakari de cortar as raízes das árvores e o ser do vendaval Yariporari de vir flechá-las e derrubá-las!”. Essas foram as palavras que Omama deu ao filho. Por isso, até hoje os xamãs continuam defendendo os seus e a floresta. Mas também protegem os brancos, apesar de serem outra gente, e todas as terras, até as mais imensas e distantes.
O filho de Omama primeiro tomou yãkoana com o pai. Depois continuou a bebêla sozinho, mais e mais, para chamar cada vez mais espíritos e poder conhecer todos os seus cantos. Era deslumbrante quando fazia dançar suas imagens. Era um rapaz muito bonito, tinha a pele coberta de urucum bem vermelho e desenhos de um negro brilhante. Suas braçadeiras de crista de mutum prendiam muitas caudais de arara-vermelha, pingentes de rabo de tucano e buquês de penas paixi.20 Tinha os olhos escuros, e os cabelos cobertos de penugem hõromae, de um branco resplandecente.21 Tinha também uma pele de rabo de macaco cuxiú-negro em torno da cabeça.22 Dançava lentamente, com as costas bem curvadas para trás. Ver a beleza dos xapiri o enchia de felicidade. Chamava-os e os fazia descer sem parar. Trazia-os no pensamento, de verdade. Era assim porque tinha sido gerado pelo esperma de Omama, que é o criador dos xapiri.
***
Acho que o filho de Omama, hoje, está morto. Sua imagem, porém, ainda existe, muito longe daqui, onde os rios deságuam, do lado do nascer do sol, ou talvez no céu. Eu a vi no tempo do sonho, junto com a de nossa floresta, aos prantos. Esta, doente e transformada em fantasma pelas fumaças de epidemia, pedia aos xapiri para curá-la e acabar com o sofrimento causado pelo furor dos brancos. Imploravalhes que limpassem as árvores e tornassem suas folhas brilhantes de novo; que fizessem crescer suas flores e lhe devolvessem a fertilidade. Dizia a eles: “Vocês são meus, devem vingar-me!”. Vejo tudo isso em sonho porque, tornado fantasma com a yãkoana durante o dia, o meu interior se transformou.23 Senão, eu não poderia falar assim.
O filho de Omama foi o primeiro a virar espírito, antes de qualquer outro. Foi o primeiro a estudar e a ver as coisas com a yãkoana. Depois dele, muitos de nossos ancestrais se tornaram xamãs. Ele lhes mostrou como fazer dançar os espíritos. Disse a eles, como Omama lhe havia ensinado: “Quando os seres maléficos da floresta capturarem a imagem de seus filhos para devorá-la,24 os xapiri irão recuperá-la e vingá-los!”. Foi seguindo essas palavras que os nossos maiores se puseram a beber pó de yãkoana e a admirar o esplendor dos espíritos. É isso que fazemos até hoje. Por isso é tão comum ver os xamãs trabalhando em nossas casas.25 Sem eles, seriam vazias e silenciosas. Assim é. Essas palavras são antigas mas nunca vão desaparecer, porque são muito bonitas e o valor delas é muito alto.
DAVI KOPENAWA nasceu por volta de 1956, em Marakana, grande casa comunal situada na floresta tropical de piemonte do alto rio Toototobi, no norte do estado do Amazonas, próximo à fronteira com a Venezuela. Desde 2004, é presidente fundador da associação Hutukara, que representa a maioria dos Yanomami no Brasil. Em 2008, recebeu uma menção de honra especial do prestigioso prêmio Bartolomé de las Casas, concedido pelo governo espanhol pela defesa dos direitos dos povos autóctones das Américas e, em 2009, foi condecorado com a Ordem do Mérito do Ministério da Cultura brasileiro.
BRUCE ALBERT, antropólogo francês, nasceu em 1952, no Marrocos. É doutor em antropologia pela Université de Paris X-Nanterre e pesquisador sênior do Institut de Recherche pour le Développement (IRD, Paris). Participou em 1978 da fundação da ONG Comissão Pró-Yanomami (CCPY), que conduziu com Davi Kopenawa uma campanha de catorze anos até obter, em 1992, a homologação da Terra Indígena Yanomami. Viaja à terra yanomami praticamente todos os anos, há quatro décadas.
Notas
1 De yaro, (animal de) caça, seguido do sufixo –ri (pl. pë), que denota o que se refere ao tempo das origens, não humano, superlativo, monstruoso ou de extrema intensidade. Esses ancestrais (në pata pë) compunham a primeira humanidade, que foi se transformando paulatinamente em caça, em razão de seu comportamento desregrado. Trata-se, na mitologia yanomami, de seres cuja forma pré-humana, sempre instável, está sujeita a uma irresistível propensão ao “devir animal” (yaroprai). De modo geral, os comportamentos que precipitam tais metamorfoses (xi wãri-) invertem as normas sociais atuais, particularmente as que regem as relações entre afins. São as imagens (utupë) desses seres primordiais que são convocadas como entidades (“espíritos”) xamânicas (xapiri).
2 Acerca da queda do céu e desses ancestrais ctônicos, ver M 7 e cap. 6 e 7.
3 Placa circular de cerâmica utilizada para assar os beijus de mandioca (mahe).
4 Os Yanomami descrevem o nível celeste (hutu mosi) como um tipo de abóbada apoiada no nível terrestre (warõ patarima mosi) graças a “pés” (estacas) gigantescos.
5 Sobre o poder patogênico do metal que Omama escondeu dentro da terra, ver o cap. 16.
6 Sobre Omama e a origem dos rios, ver M 202; sobre Omama e a origem do metal, ver cap. 9.
7 Sobre o monstro aquático Tëpërësiki (às vezes associado à sucuri), a união de sua filha com Omama e a origem das plantas cultivadas, ver M 197 e 198.
8 Sobre o nascimento do filho de Omama, ver M 22. Davi Kopenawa às vezes chama esse filho de Pirimari, que é também o nome da “estrela” que os Yanomami chamam de “genro da lua”, o planeta Vênus.
9 A forma desse nome possui um caráter de redobramento do feminino: thuë, “mulher, esposa”, –yoma, sufixo feminino (por exemplo, napëyoma = “mulher branca (napë)”. O que expressa bem o quanto se trata da (primeira) Mulher. É uma “mulher-peixe”, que Davi Kopenawa costuma comparar a nossa imagem da sereia (ver cap. 20).
10 Esses seres maléficos da floresta também são chamados de në wãri kiki (literalmente “valor de mal — plural de conjunto”), e qualificados pela expressão yanomae thë pë rããmomãiwi, “os que fazem adoecer os humanos” ou yanomae watima thë pë, “comedores de seres humanos”.
11 As “pessoas comuns”, kuapora thë pë (literalmente “gente que simplesmente existe”) são aqui contrapostas aos xamãs, xapiri thë pë (literalmente “gente espírito”). Estes atribuem àquelas “olhos de fantasma”, pois só são capazes de ver a aparência enganosa dos seres e dos fenômenos. A visão xamânica, em compensação, dá acesso à imagem-essência dos entes (utupë) no tempo de sua criação mítica. Essa formaimagem é denotada pelo sufixo –ri (pl. –ri pë). O conceito de utupë designa igualmente a imagem corpórea interior/essência vital dos seres animados atuais.
12 Os xamãs de Watoriki dizem que a forma espectral (seu “valor de fantasma”) de Omama (equivalente à sua imagem, utupë) “tem muitos nomes” (thë ã waroho), tais como o ser sol, Mothokari, o ser onça, Iramari, e o ser maléfico, Omamari.
13 Ver, para uma outra versão desse mito da origem da vida breve, M 191. Entre os Yanomami ocidentais, as mães amarram o cordão umbilical dos recém-nascidos nessas árvores, e giram em torno delas com os bebês no colo, para lhes garantir vida longa (Lizot, 2004, p. 321).
14 O canto choroso dos tucanos é considerado particularmente melancólico. É por isso associado ao luto e à saudade. Ouvir “chorar” os tucanos na floresta prenuncia morte numa casa distante; escutar seus apelos no final do dia inspira nostalgia amorosa.
15 Davi Kopenawa se refere aqui respectivamente ao “pensamento consciente” (pihi, que designa também a volição e o olhar) e ao “sopro vital” (wixia). A morte é nomeada noma a.
16 A ação da cura xamânica é descrita principalmente por três expressões bélicas: në yuai, “vingar-se”; nëhë rëai, “interpor-se, colocar-se de emboscada”; e nëhë yaxuu, “expulsar, afugentar” (ver cap. 6). A cura xamânica é, assim, concebida na forma de uma ação vingativa contra os agentes patogênicos predadores da imagem corpórea/essência vital (utupë) do doente.
17 Tubo de sessenta a noventa centímetros, geralmente fabricado com o caule esvaziado de uma pequena palmeira, horoma a, ou com a cana de flecha cultivada xaraka si.
18 Diz-se que os maiores xamãs yanomami são capazes de expectorar (kahiki hou, “cuspir, regurgitar, devolver pela boca”) os objetos patogênicos que afetam a imagem corpórea/essência vital (utupë) ou o duplo animal (rixi) dos doentes. Ver cap. 7.
19 A expressão “agir/entrar em estado de fantasma” (poremuu) se refere aos estados de alteração de consciência provocados pelos alucinógenos e pelo sonho (mas também pela dor ou pela doença), durante os quais a imagem corpórea/essência vital (utupë) se vê deslocada e/ou afetada. No caso, o fantasma (pore), que cada vivente traz em si enquanto componente da pessoa, assume o comando psíquico em detrimento da consciência (pihi). “Tornar-se outro” (literalmente “assumir valor de outro”) refere-se primeiramente a esse processo.
20 Esses buquês são confeccionados com penas rasgadas longitudinalmente e ligadas num pequeno cabo de madeira. Muitas vezes trata-se de penas verdes de asas de papagaio-moleiro werehe, ou de penas pretas e brancas de asas de jacamim maraxi. Esse tipo de penacho também pode ser feito com penas ventrais brancas de mutum paari ou de gavião wakoa.
21 Ornamento usado, como os descritos na nota anterior, tanto pelos xamãs como pelos homens em geral, durante as festas comunitárias reahu. Trata-se de penugem de urubu, watupa aurima a, ou de aves de rapina, wakoa a e kãokãoma a.
22 O pelo da cauda desse macaco é denso, bem preto e brilhante.
23 Ũũxi (“o interior”) designa a sede dos componentes da pessoa, por oposição ao invólucro corporal (“a pele”), siki. A expressão xi wãri– (literalmente “tornar-se ruim”) se refere às transformações míticas e a toda espécie de mudança de forma/identidade (“metamorfosear-se, perder a própria forma, retornar ao caos” e também “perder o juízo, estar fora de si”). Tem por sinônimo në aipëi, “tornar-se outro/assumir valor de outro”. Significa também, no sentido literal, “enredar-se, tornar-se inextricável, não mais cessar (estado ou ação), ficar bloqueado”. Note-se aqui que o xamanismo noturno, associado aos sonhos, é parte fundamental do xamanismo yanomami. A iniciação e o trabalho xamânico parecem dominar a produção onírica dos xamãs, cujos sonhos são, assim, constituídos principalmente de restos alucinatórios do xamanismo diurno (ver cap. 22). Finalmente, o uso do pó de yãkoana e os sonhos permitem igualmente aos xamãs ter acesso ao tempo mítico, que continua transcorrendo imutavelmente, num eterno presente das origens, enquanto “outra cena” do tempo histórico (o das migrações e das guerras).
24 Toda forma de agressão letal, humana ou não humana é concebida pelos Yanomami como uma forma de predação (ver Albert, 1985).
25 A atividade xamânica é designada pelo verbo kiãi, “mover-se, trabalhar (genérico)”.
Referências
KOPENAWA, David; ALBERT, Bruce. O primeiro xamã. In: A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p.58-62.
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