O Ensino Médio na BNCC
Campus VIII da Uneb – Eunápolis/BA | Foto: Divulgação
Colegas de Eunápolis, e de outros lugares que nos acompanham, boa tarde.* Agradeço inicialmente aos promotores do evento pelo convite. Agradeço à professora Joceneide Cunha por ter indicado o meu nome. Por fim, gostaria de me solidarizar com a grande profissional Célia que perdeu os pais para esse flagelo que é a Covid 19.
O tema da fala foi uma demanda da organização. O Ensino Médio na BNCC. Digo isso para evitar a clássica informação de que não sou especialista. E não sou. Mas gosto quando os organizadores pautam o tema. Isso me obriga a estudar, sempre. E foi o que fiz, principalmente, de ontem para hoje.
Mas por que estudar de ontem para hoje? Para alinhar a minha fala às falas de Natália Allem e de Geovani Silva. Peso sempre que quem nos ouve e/ou nos vê deve tirar o máximo de proveito do evento.
Natália fez o histórico do Ensino Médio no Brasil e apresentou questões sobre a repercussão do Ensino Integrado nas licenciaturas e no Ensino Técnico. Questiono: deve ser integral apenas para as famílias de elite? Pode engessar as licenciaturas?
Geovane historicizou as propostas de ensino Integral e de ensino médio integral no Brasil recente. Distinguiu integral de integrado e apresentou os princípios e questões que ele acredita deverem pautar as discussões sobre a BNCC: que conteúdos prescrever, considerando os novos itinerários formativos? Que outras possibilidades formativas podem ser implantadas para prover o ensino integral?
Nesta breve fala, dou prosseguimento aos temas desenvolvidos por Geovane e Natália, tocando em dois assuntos: a cronologia da BNCC e descrição do Ensino Médio na BNCC. Encerro questionando os colegas sobre o que fazer diante do quadro descrito: Se é essa BNCC do Ensino Médio que temos, o que com elas poderemos fazer?
Uma cronologia da BNCC do Ensino médio
A trajetória do assunto Ensino Médio na BNCC pode ser distribuída em cinco períodos. O primeiro se inicia em abril de 2015, quando a construção da BNCC é atribuída à Secretaria de Assuntos Estratégicos. Naquela época, A BNCC era ainda a “Pátria Educadora” e o EM seria focado em capacidades aprendíveis em rede federal de ensino.
Em setembro de 2015 se inicia um novo tempo. O EM já matéria da BNCC do MEC, produzida por 116 especialistas em sua primeira versão nasce a BNCC do governo Dilma.
Em maio de 2016, o governo Temer lança a segunda versão da BNCC. O EM também estava presente, dentro da nova estrutura que tomou o documento, como veremos no quadro a seguir.
Em agosto do mesmo ano, é lançada a terceira versão da BNCC. Aí, o EM não está presente. A decisão de por o EM em base separada partiu da SEB, que atendia à demandas do Concede e da Undime. A BNCC concorria com os projetos de reforma que tramitavam no parlamento e com o programa Ensino Médio Inovador, do MEC
Em abril do ano seguinte (2008), o governo lança a BNCC/EM. Ela já está formatada de acordo com a lei da Reforma do Ensino Médio (abril).
Três meses depois, (julho de 2018), o governo resolve modificar a BNCC/EM, depois de críticas de conselheiros do CNE. As principais críticas vieram do sociólogo César Callegari e da Folha de São Paulo.
Em dezembro de 2018, por fim, o MEC homologa a BNCC/EM.
Arquitetura da informação
Por essa cronologia, pode parecer que tivemos duas BNCC integrais e uma somente para o Ensino Fundamental e outra para o Ensino Médio. Mas essa conta é enganosa. Não sei ao certo quantas versões foram publicadas até hoje. O próprio governo Temer publicou duas versões da BNCC do Ensino Médio no espaço de 24 horas. Mas fiquemos com essas três que apresento no quadro.
O quadro caracteriza o EM na BNCC, como solicitado pelos organizadores. Mas eu priorizei a arquitetura da informação e algumas categorias: integração e progressão metas.
Percepções de estudiosos sobre a BNCC
Todos conhecemos o teor predominante das críticas à BNCC e ao lugar do EM na BNCC. Destaco as avaliações de entidades corporativas como a ANFOPE (Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação), a ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) e a ABdC (Associação Brasileira de Currículo). Eles apontaram três malefícios da Reforma do Ensino Médio (Temer): “elaboração de políticas públicas por MP; formação de professores e profissionais com notório saber, flexibilização curricular; e reforma e privatização da educação.” (Costa; Silva, 2019, P.12).
Sobre a BNCC/EM, as mesmas entidades a consideraram “autoritária” na elaboração, eurocêntrica, etnocêntrica, “reducionista” e patronizada, um atentado à diversidade cultural, e indutora da privatização da educação pública. (Costa; Silva, 2019, P.16-18). Ela retira a autonomia dos professores, no que diz respeito ao alinhamento de currículos sobre a rubrica “nacional” (propensa ao autoritarismo e ao populismo) e a “expropriação da autonomia intelectual” docente (Silva, 2020, p.155-157). Ela apresenta problemas e desafios para as redes, desafios de gestão de pessoal (nova distribuição da carga horária docente), de planejamento administrativo (matrícula e enturmação em virtude dos novos itinerários formativos), de infra estrutura (novos espaços) e de produção do material didático. (Ferreira et. al, 2020, p.218).
A BNCC é também considerada uma vítima de algo muito pior: a Reforma do Ensino Médio. Essa Reforma, segundo César Callegari, ameaça a Base: transforma as disciplinas em áreas, (sobram Matemática e Língua Portuguesa), determina 60% da carga horária das escolas aos conteúdos da BNCC e cria cinco itinerários formativos, restringindo as “opções de aprofundamento”.
Os especialistas em ensino disciplinar também apontam outro rol de defeitos. Para exemplificar, cito o caso da História. Em [setembro de 2016] a Associação Nacional de História lançou um Abaixo-Assinado solicitando a “permanência da História no currículo escolar em todos os níveis” ou protestando contra a exclusão da “obrigatoriedade da disciplina História” no Ensino Médio.
A intensão era boa (como a de todos que estão no inferno), mas nascia equivocada porque a “disciplina História” não era “componente curricular obrigatório” no Ensino Médio. Ao menos não na LDBN. Na Lei, apenas “Artes visuais, a dança, a música e o teatro” ou simplesmente “Artes” e, também, Educação Física e a “exibição de filmes de produção nacional” (2014) foram considerados “componentes curriculares” obrigatórios.
Na LDB (reformada pela lei 13.415), palavra “História” é usada como: 1. “O ensino da História do Brasil” que considera as “diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia” (Art. 23, VI, § 4º) 2. Obrigatoriedade do “estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena”, “História da África e dos africanos” nos estabelecimentos do Ensino Médio e do Fundamental, público e privados (Art. 26A). Entre Medida provisória n. 746, de 22 de setembro de 2016, a Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 e o lançamento da Base Nacional Comum Curricular não há, portanto, exclusão do componente curricular História do currículo do Ensino Médio.
Que fazer? (Considerações finais)
Observando atentamente a crítica dos generalistas eu questiono: não foram essas mesmas críticas atribuídas às versões primeira e segunda da BNCC? Não há algo estranho acontecendo quando os qualificativos de autoritário, solapador da autonomia docente são atribuídos à versão produzida por mais de uma centena de especialistas e à versão produzida por um comitê gestor? Quando os mesmos qualificativos são atribuídos a uma BNCC produzida por um governo eleito e uma BNCC produzida sob efeito de medida provisória, no seio de um comitê gestor?
Com a atual nomenclatura e as brechas da legislação em termos de “aprendizagens fundamentais”, História poderia entrar sob as rubricas que traduzem a mais comum ideia de conteúdo: “aquilo que se ensina”. Aquilo que se ensina é tipificado como “componente curricular”, “estudos e práticas”, “itinerários formativos”, “direitos e objetivos de aprendizagem” ou “habilidades específicas”.
Como componente curricular ou ensino, a História não está na Medida Provisória, na LDB, nem da BNCC para o Ensino Médio. Na BNCC, penas Língua Portuguesa e Matemática são componentes (e de modo dúbio – na LDB só há “ensino de” LP e M).[i] A História não foi inserida como “estudos e práticas”, a exemplo da Educação Física, Arte, Sociologia e Filosofia” (LDB, Art. 35-A, § 2). Também não é itinerário formativo, como já sabemos.[ii]
Outra forma de figurar na BNCC é sob a rubrica de “direitos e objetos de aprendizagem”. Para o Ensino Médio, eles simplesmente são não prescritos.
O mesmo percebemos com a rubrica “objetos de conhecimento”. Os legisladores entenderam que o Ensino médio, mesmo em relação ao ensino de Língua Portuguesa e Matemática, não cabe prescrever “objetos de aprendizagem”.
Restam, por fim, as competências e habilidades.[iii] As competências são mais amplas e as habilidades mais detalhadas. A BNCC para o ensino fundamental contempla as duas e justifica essa diferença porque o currículo é montado sobre componentes curriculares. Na BNCC do ensino médio não há mais componentes curriculares. Isso significa que as competências se referem diretamente às Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Mas a História está lá, principalmente nas competências 01 e 05. São essas sentenças que vão fundamentar o enunciado de cada objeto de aprendizagem “histórica”, ou seja, o currículo mínimo de História está nas habilidades que realizam as competências 1, 3 e 6.
A partir deste ano (e até 2010), os currículos do Ensino Médio de todas as redes serão modificados. E eles terão a cara dos elaboradores. Isso significa, paradoxalmente, AUTONOMIA total e irrestrita dos Estados, dentro das 1800 horas que lhes cabem ocupar (1800 horas serão ocupadas com a BNCC). É tudo o que os formadores de opinião exigiam do governo do PT. Agora conheceremos, efetivamente, o interesse dos técnicos e dos professores das redes em relação ao ensino de História. Agora veremos o real poder dos professores-historiadores de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, que rotularam a “BNCC de Dilma” como “A nova face do autoritarismo” (R. Vainfas), “descambando pela ideologia” (J. Ribeiro). Com a experiência que acumulamos, podemos aventar três possibilidades:
- Os currículos de História manterão as mazelas identificadas pelos especialistas (enciclopedismo, quadripartidarismo, ênfase na história política, eurocentrismo etc.);
- Os currículos de História serão os mais variados do planeta – da extrema-direita separatista do interior gaúcho à centro esquerda de Rio Branco;
- O ensino de História pode ter reduzido o seu espaço ou até desaparecer de algumas redes. Em qualquer das hipóteses não se poderá maia alegar que o responsável pelas mudanças foi o bolivarianismo do PT.
Para concluir, fica o alerta: se vocês concordam que História é saber das Humanidades e que as Humanidades têm alguma função social, participem ativamente da elaboração dos currículos do ensino médio.
Notas
[i] E a inclusão de “novos componentes curriculares de caráter obrigatório na BNCC”, segundo a LDB, dependerá da aprovação do Conselho Nacional de Educação e homologação do Ministro da Educação (Art. 26 § 10).
[ii] “Linguagens e suas tecnologias; matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica profissional” (Art. 36). Curioso dessa formação é ver o lugar das ciências humanas nesse currículo. Numa hipotética situação onde determinada escola optasse por distribuir equitativamente as 1800 horas reservadas à BNCC (60% das 3000 do ensino médio), veríamos que as humanidades estão em franca ascensão. Quem perdeu com a BNCC foram as ciências naturais. O problema é que as humanidades privilegiadas são as do século XVI ao XVIII, ou seja, as línguas e literaturas. Se a História mantivesse a função exercida naquele tempo (auxiliar à gramática, tradução e retórica), estaríamos no topo. Como nos autonomizamos, a História está fora desse benefício.
[iii] Sintaticamente, competência e habilidade são a mesma coisa: uma sentença constituída por verbos, substantivos e expressões contextualizadoras que informam “as aprendizagens essenciais que devem ser asseguradas aos alunos nos diferentes contextos escolares.”
(*) Fala proferida em agosto de 2020, no Campus de Eunápolis, da Universidade Estadual da Bahia.