“Livro didático” é categoria ideal típica designadora de um artefato que “apresenta o conhecimento.” Etimologicamente, a expressão é composta pelo termo latino libro (fibra vegetal usada como suporte da escrita) e pela derivação adjetiva grega didáskei (modo de apresentar o conhecimento).
Nas Europas Ocidental e Meridional, de onde veio a maior parte das orientações sobre livros didáticos de História (LDH) para o Brasil, as discussões sobre “didática” referiam-se ao ambiente de formação educacional regular. Havia, então, modos de apresentar História na educação generalista dos alunos dos 6 aos 15 alunos (príncipes, plebeus ou burgueses) e também modos de apresentar a História aos futuros profissionais que frequentavam as faculdades de Filosofia, Teologia, Direito e Medicina.
Assim, foram “didáticos” os livros História Universal (1761), de J. C. Gatterer, e a “Teoria da História” (1857/1858), de J. G. Droysen, na Alemanha, a História Antiga (1732), de C. Rollim, e a Introdução aos estudos históricos (1898), de C.-V. Langlois e C. Seignobos, na França, as Considerações sobre as causas da grandeza e da decadências dos Romanos (1734), do Barão de Montesquieu, e o Compêndio de História Universal (1881), de Z. C. Pedrozo, este último, verdadeira propedêutica de Teoria da História disseminada em Portugal.
Nesses países, na passagem do século XIX para o XX, “livro” permanecia “artefato”, mas “didática” migrava de “forma de apresentação” a domínio acadêmico sobre os referidos modos de “apresentar” o conhecimento histórico aos imaturos. Já os domínios demarcados sob a forma de cursos, seminários, impressos etc., intitulados “Ciências Históricas”, “Metodologia da História” ou “Teoria da história” ficavam descomprometidos desse tipo de discussão (em alguns casos, lançada aos apêndices) e assumiriam como seus os objetos relacionados majoritariamente às questões de heurística, crítica e interpretação.
Com a retirada das coisas da “didática” do domínio da “história ciência”, é provável que os “livros didáticos” tenham sido, nominalmente, reduzidos à função de apresentadores do conhecimento histórico circunscrito ao interior das escolas primárias e secundárias.
Em geral, quem vê nessa separação um benefício para as “coisas” do ensino escolar, dá como inequívoca a ideia de que o livro didático é objeto “da” escola (primária e secundária), não raro atrelado à invenção da (também ideal-típica) “disciplina escolar” História. Como desdobramento dessa compreensão, por exemplo, o estudioso pode limitar a investigação sobre os livros didáticos de história no Brasil à institucionalização do curso secundário (Colégio Pedro II) e às obras distribuídas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
Por outro lado, quem discorda dos benefícios da separação entre os cursos/seminários/disciplinas da “Ciência de referência” (…de História) e as “disciplinas escolares” (História de…), adotando o sentido literal de “didático”, pode perceber LDH em todos os lugares e situações formativas onde a “apresentação” de um conhecimento chamado “História” esteve ou está em curso, independentemente da institucionalização de uma finalidade ou de um espaço em horas no currículo, seja no Colégio jesuíta da Salvador colonial (História da Igreja), seja no Departamento de História da cidade de Rolim de Moura, no Acre (Introdução à História).
Esse arrazoado sobre a “natureza” do LDH apenas desenvolve uma hipótese baseada em uma categoria ideal-típica (“livro didático”). Serve-nos para reunir e submeter à análise uma infinidade de coisas designadas por uma infinidade de palavras em diferentes tempos, espaços e circunstâncias (didáticas). Efetivamente, LDG não tem “essência.”
Na Alemanha, por exemplo, entre meados do século XVIII e início do século XXI, os “livros escolares de história” [Schulgeschichtsbuch] foram compreendidos como os mediadores de perguntas e respostas catequéticas, de quadros sincrônicos, de narrativas, fontes escritas, de biografias, de imagens e de métodos de ensino para alunos e professores de história. Seus nomes, entretanto, não correspondiam, necessariamente, às coisas oferecidas aos alunos e professores: eles eram definidos a partir do principal conteúdo substantivo – livro de “História Universal” [Weltgeschichte], da principal orientação didática – livro de “Repetição” [Repetitionen], da emergente organização institucional – livro de “Exames regulares” [Ordentliches Examen], da população-alvo – “Breve História para crianças” [Kurz-gefasste Kinder-Historie] ou, simplesmente, da sua função geral – o ensino [Lerhbuch] – distante da outra função geral universitária, a pesquisa (Jacobmeyer, 2011, p. 13-16).
Na Espanha, “manuales escolares de História” é categoria ideal-típica que também abarca títulos não necessariamente remetentes às coisas mediadas pelos respectivos artefatos. O Compendio de la historia de España [1750], por exemplo, foi classificado como “manual” por sua intencionalidade pedagógica (facilitador da memorização das crianças), mas era construído mediante versos. A Clave historial com que se abre la puerta a la historia eclesiástica, y política (1783) era constituído por listas cronológicas, quadros genealógicos e índices de nomes de Santos. A História del Arte y de la Cultura (1964) tinha o ensino secundário como alvo, era narrativo, desprovido de exercícios, ilustrado com representações fotográficas em preto e branco e veiculava ideologia nacionalista-fascista (Fernández, 1997, p. 72-82, p. 266-270)
Se ampliarmos os exemplos, chegaremos a uma conclusão que ajuda a compreender porque Allain Choppin faleceu sem nos deixar uma definição unívoca de livro didático e também porque Kazumi Munakata se demorou tanto na descrição das possibilidades de investigação e definição do livro didático como conjunto de ideias e valores, mercadoria e artefato utilizado em uma instituição chamada escola: “livro didático” será, então, o que decidirmos que ele é, dentro do que estabelecermos como parâmetro de uso – aquilo que ele faz ou deixa de fazer, a qualidade que porta, a finalidade que cumpre, a matéria no qual é vazado, o conteúdo que veicula, o lugar que ocupa no mercado, no Estado, nas instituições religiosas, na Universidade, na escola básica, enfim, a situação que o causa e a consequência que dele provém.
Em países como Brasil, EUA e França, entre outros, livro didático é dominantemente definido pela diferença em relação ao ensino superior: é destinado às crianças, adolescentes e jovens em passagem pela escolarização obrigatória (não profissional). Seus constituintes principais variam com os agentes envolvidos na produção, compra, avaliação ou uso do artefato. Nos EUA, editores e fundações privadas privilegiam o conhecimento pedagógico dos textbooks. Já os professores universitários de história e alguns conselhos estaduais enfatizam os conhecimentos metahistóricos (conceitos e práticas da heurística, crítica e hermenêutica). Valores e conteúdos substantivos nacionalistas ou globais, voltados à história do Estado ou à difusão da alteridade dependem do tom, mais ou menos conservador (moral ou econômico) das políticas educacionais de cada estado. Texas e Califórnia dão exemplos dessas diferenças extremas.
Na França, o paradoxo resultante da obrigatoriedade dos programas nacionais e a liberdade de o professor escolher os manuels scolaires mantém a variação dos atributos do “bom” livro didático de história, flagradas no descentralizado EUA. Os editores prescrevem o suporte e o design. Autores, tutelados pelos editores, opinam sobre a estrutura e objetivos. Conselheiros pedagógicos, além da organicidade das partes, focam na coerência entre projeto pedagógico e aplicação, entre os programas nacionais e o conteúdo substantivo apresentado.
No Brasil, editores, autores, representantes de secretarias estaduais e municipais de educação básica e professores universitários formadores de licenciados em história foram os responsáveis pelas diretrizes definidoras de “bons” livros didáticos desde 1999. Poderiam ser mono ou pluridisciplinares, destinados a séries ou ciclos que estimulassem à formação de leitores e viabilizassem a formação continuada dos professores.
Nos últimos quinze anos, os critérios de avaliação foram refinados: o livro deve explicitar e cumprir propostas pedagógica, historiográfica, dispositivos legais sobre princípios de cidadania. O manual professor foi reestruturado, a aprendizagem ganhou espaço sobre os métodos de ensino” e as habilidades meta-históricas estão distribuídas por todo o impresso. Mas a principal meta do documento de 1999 não foi concretizada. O LDH é uma peça cristalizada, em parte por causa da legislação inclusiva e, parte pela inapetência de editores e autores que não tiram proveito da liberdade prevista nos editais lançados pelo Governo Federal (Freitas; Oliveira, 2016).
Essa cristalização está explícita na indiferenciação dos LDH destinados aos anos finais do ensino fundamental e os LDH destinados ao Ensino Médio, salvo o número de páginas. A manutenção da história magistra vitae nos capítulos iniciais do livro do aluno é outra mazela.
A diacronia de uma idealizada e equívoca historiografia ocidental também está presente na maioria das coleções: escola metódica/marxismo, Annales, nova História/História social (marxista) inglesa e nova História cultural. Esse fato revela que a relação LDH / ciência de referência é escassamente problematizada.
Autores criticam a “Escola Metódica” mas empregam fartamente a heurística, crítica e hermenêutica como fundamento para um ensino científico de história. Também não conseguem justificar, de modo claro, a manutenção nos currículos da história disciplina escolar. “Ensino de história”, “Educação Histórica”, “Saber histórico escolar”, por exemplo, são expressões empregadas como sinônimos e de modo ahistórico, quando poderiam significar possibilidades de uso da “ciência de referência”.
Outro vício diz respeito às representações de professores e alunos. Elas foram positivamente consolidadas com a introdução das categorias “mediação” docente e predisposições éticas. Contudo, ao discutir “identidade” ou “subjetividade” do aluno, autores enfatizam uma redutora noção de cidadania (os perigos do consumismo e do individualismo capitalista) e excluem, por exemplo, as discussões sobre “gênero”.
Os LDH também são frágeis na seleção do conteúdo substantivo. Autores explicam que o “ensinar todo” o conhecimento produzido pelos historiadores tudo é uma insanidade material, epistemológica e ideológica, mas a orientação é contraditada quando anunciam tratar “a origem das primeiras sociedades até as desigualdades da globalização contemporânea”. O mesmo acontece quando distribuem a matéria em “pré-História”, “História antiga”, “História medieval”, “História moderna” e “História contemporânea”, justificando-as pela força do “hábito” e da “tradição”.
Essas escolhas de conteúdo provocam os mais criativos arranjos: a África transforma-se em “berço da humanidade”, os povos islâmicos são segregados em uma idade média e a experiência ameríndia é inserida em uma idade moderna; a Europa aparece como “periferia do mundo” (História medieval) e “centro do mundo” (História moderna); e a Grécia clássica e a Igreja cristã são o nascedouro da democracia e do monoteísmo (vistos, ambos, como “herança” e “legado”).
Quanto à História do Brasil, expansão do capitalismo determina, invariavelmente, a conquista das terras do “novo mundo” e a ideologia do fascismo explica a ditadura de Getúlio Vargas nos tempos do Estado Novo, por exemplo. Observado no conjunto, atitudes desse tipo trazem à cena o eurocentrismo e minimizam as possibilidades interpretativas em termos de trocas e até de apropriação das ideias.
Não seria grande o problema se esses senões apontados pelos especialistas estivessem dispersos nas duas dezenas de coleções lançadas na última edição do PNLD. Mas a situação é grave porque os LDH são extremamente parecidos em um Estado que não possui currículo nacional. E é ainda mais grave porque os LDH, ainda que não sejam mais os privilegiados meios de acesso ao passado local, nacional e global (a internet é a grande fonte), segue como a principal ferramenta de formação inicial e continuada para aquele que vai ministrar aulas do maternal ao ensino médio.
Referências
CHOPPIN, Alain. Le Manuel scolaire, une fausse evidence historique. Histoire de l’Éducation, [Paris], n. 117, p. 6-56, 2008. Disponível em: HTTP://histoire-education.revues.org/565. Capturado em 10 abr. 2014.
FERNÁNDEZ, Raimundo Cuesta Fernández. Sociogénesis de uma disciplina escolar: la História. Barcelona: Pomares-Corredor, 1997.
FREITAS, Itamar. OLIVEIRA, Maria Margarida Dias de. A qualidade do livro didático de história no Brasil, na França e nos Estados Unidos da América. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2016.
JACOBMEYER, Wolfgang. Das Deutsche Schulgeschichtsbuch 1700-1945. Die erte Epoche seiner Gattungsgeschichte im Spiegel der Vorworte. Münster: Verlag, 2011.
MUNAKATA, Kazumi. O livro didático: alguns temas de pesquisa. Revista Brasileira de História da Educação. Campinas, v. 12, n. 3 (30), p. 179-197, set./dez. 2012.
Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. Livro didático. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; OLIVEIRA,
Margarida Maria Dias de. Dicionário do Ensino de História. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2019, p.143-148. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/todas-as-categorias/livro-didatico-definicoes/>.
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