Ler como profissional do Direito
Ler como um profissional historicista da História significa decodificar signos, cumprindo a meta protocolar mais requerida em seu trabalho nos últimos cento e quando o seu objeto material são as fontes históricas escritas: conhecer “o que disse o autor” e conhecer o que “quis dizer o autor” (ou, numa acepção mais recente, “o que fez o autor” quando enunciou tal frase ou palavra”).
O nome comum para esses meio e fim é “interpretação”, significada como “entendimento” [1] e/ou “explicação” e/ou “tradução” [2] e/ou “reflexão” (sobre a pretensão de verdade e cientificidade).[3] As habilidades requeridas a essa tarefa são: identificar autoria, proveniência e datação cronológica; determinar linguisticamente e psicologicamente o sentido das palavras e das frases; atribuir valor ao escrito sob o ponto de vista da veracidade e da exatidão. O nome erudito para o domínio que elege esses meio e fim como objeto é “hermenêutica”.
Antes do século XIX, vigoravam “hermenêuticas” (assim, no plural) para a interpretação dos tipos legal, bíblico e filológico. Com o trabalho de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), esses domínios foram reunidos sob o título de uma hermenêutica geral cuja meta era compreender os discursos escritos por outrem, julgá-los corretamente e estabelecer a autenticidade dos textos. [3] Com Schleiermacher, abriu-se a estrada para a teoria geral da interpretação (dos textos, das coisas, do mundo e da vida).
No século XX, essa teoria geral foi recuperada por vários autores e aplicada a diferentes domínios acadêmicos, como a História, incluindo domínios a ela preexistentes, como o Direito. Assim, profissionais da História acolheram assertivas de Schleiermacher, admitindo, por exemplo, que o significado dos textos é objetivo (visto a olhos nus) e subjetivo (intuído a partir dos interesses de quem lê); o significado dos textos é linguístico (está nas letras e palavras) e é psicológico (está nas intenções do autor); o significado da parte do texto (palavra, por exemplo) depende do todo do texto (das outras palavras e frases que lhe seguem e lhe antecedem) e ambos os processos recebem o nome de círculo hermenêutico.
Consequentemente, para os historiadores, o ato de interpretar textos (e o passado é um texto construído a partir de fontes históricas) pôde envolver, no século XIX, a apreensão de “forças criadoras da história” (mecânicas, fisiológicas e psicológicas), “habilidades”, “sensibilidades”, “pendores” e “paixões” e deixar-se guiar pelas “ideias”, individualidades destacadas e valores (como a “beleza”, a “verdade” e a “justiça”). [4]
Os profissionais do direito também aplicaram assertivas e procedimentos de Schleiermacher e dos seus desenvolvedores. Mas o fizeram (e o fazem) com muito mais liberalidade. Isso ocorre por causa da natureza própria dos domínios da História e do Direito, expressa principalmente em termos de meios, fins e resultados do trabalho profissional. Profissionais da História, por exemplo, se propõem a interpretar as relações que as pessoas entretêm com o tempo, mediante a interpretação de testemunhos diretos ou indiretos, descrevendo atores, acontecimentos e processos e apontando, motivações, causas possíveis, prováveis ou certas.
As teses e narrativas que veiculam o trabalho do profissional da História têm o poder de orientar a vida dos seus leitores, no curto ou no longo prazo. Profissionais do Direito, contudo, não apenas orientam a ação individual do leitor. Não apenas dizem o que aconteceu com base na em um grupo limitado de fontes, deixando o leitor livre para corroborar ou contestar os meios que empregou na interpretação das fontes. Eles definem trajetórias dos seus leitores/usuários/consumidores, sentenciando: “À luz do Direito, você fez isso e, provavelmente, será inocentado” ou “Se você agir assim, de agora em diante, à luz do Direito, você sofrerá as penas da lei.” Profissionais do direito, em síntese, decidem sobre o passado, o presente e o futuro com desdobramentos objetivos sobre o presente e o futuro de quem os provoca ou os contrata. Eles tem o poder de orientar positivamente (como o historiador), mas têm também o poder de interditar impositivamente a ação de indivíduos e de coletivos.
Além dessas diferenças, distinções significativas para esta aula podem ser observadas entre os próprios profissionais de História. Um profissional de História que atua no ensino superior, que interpreta certo passado, após ter concluído seu curso de doutorado, com o objetivo de planejar uma aula ou de publicar um artigo em periódico acadêmico, tem pouco a prestar contas à sua corporação. Seu compromisso metodológico (ético) principal é consigo mesmo. A máxima punição que resulta do seu trabalho é não ser lido ou bem-visto como docente. já que os dispositivos jurídicos que envolvem o seu trabalho são deliberadamente desconhecidos ou descumpridos no cotidiano (a exemplo das ementas de disciplina e das orientações de planejamento, ensino e avaliação contidas no Projeto Político Pedagógico do seu curso).
Um profissional de História que atua na educação básica, ao contrário, presta contas a si mesmo, ao coordenador pedagógico, aos pais ou responsáveis pelos alunos, aos alunos, à administração da Escola e, em sentido mais geral, ao patrão (o Estado ou a empresa) responsável por sua remuneração. Sua vida profissional está enredada em dispositivos jurídicos constitucionais e infraconstitucionais dos quais destaco, aqui, os efetivamente cobrados: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Reforma do Ensino Médio e a Base Nacional Curricular Comum.
Esse arrazoado me leva a afirmar que a hermenêutica ensinada pelo profissional de História do ensino superior é insuficiente à sobrevivência do professor de História da educação básica. Para interpretar e aplicar normas, profissionais da educação básica devem lançar mão de alguns princípios e estratégias da hermenêutica jurídica ou, como registrado no título, devem aprender a ler como um profissional do Direito.
Ao longo do curso, vamos conhecer
Rudimentos da hermenêutica jurídica a serviço do professor de história
Considere o fragmento abaixo e reflita: como você costuma ler este tipo de texto? Que classe de palavras grifa? Que conclusões extrai sobre a vontade do legislador?
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), e está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN). [5]
Esse primeiro parágrafo do documento deixa claro que BNCC é uma norma que cumpre direitos orientados por princípios (valores). Em geral, o professor consciente e engajado busca saber o significado desses três termos (norma, direito e valor). Da mesma forma, não raro, interpreta os termos literalmente, com o auxílio de um dicionário de sinônimos e de modo bastante restritivo: “Se está na norma, eu tenho que cumprir;” “Se não está na norma, mesmo com interesse em certo bem comum, eu não posso ensinar o que julgo melhor para a formação do meu aluno, sob o risco de ser penalizado pelo Estado”.
Os profissionais do Direito diriam que esse professor efetua uma leitura gramatical, dogmática e restritiva da norma, ou seja, acredita que tudo o permitido e o interditado está comunicado naquelas palavras, que o permitido/interditado não muda e que, em situação controversa, o Estado ganhará a questão. No trabalho de interpretação da norma (que é também de crítica), o profissional do direito faz uso daquelas habilidades citadas acima, requeridas ao profissional da História: o exame da logicidade e da historicidade e do significado de palavras e sentenças, mediante emprego da comparação e da analogia. Como o historiador em relação ao autor, ele quer saber o que disse e o que quis dizer o legislador. Também como o historiador, ele não entende que as palavras e frases encerrem a verdade da mensagem.
Contudo, diferentemente do profissional da História, a decisão sobre o significado da mensagem não se encerra na leitura que ele acaba de fazer. O profissional do Direito sabe que a norma pode, em última instância (para o mau ou para o bem) resultar da razão e da sensibilidade de um juiz que, por sua vez, pode se fundamentar em decisões anteriores tomadas em juízo para casos semelhantes (jurisprudência); pode resultar da argumentação de um teórico reconhecido nos domínios do Direito (doutrina) e, ainda, como expresso na Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, pode se apoiar no estágio atual de determinado modo coletivo de agir [costume], pode resultar no emprego dos “princípios gerais de direito”, atendendo “aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” [6]
O texto que se segue, escrito por Paulo Gustavo Gonet Branco, apresenta de modo didático as três maiores dificuldades de leitura e interpretação da Constituição de 1988, bem como os modos de superá-las, acompanhados de exemplos. Sugiro que leiam e tentem identificar as lacunas, ambiguidades e coerência apresentadas nos títulos, capítulos e seções relacionados à Educação nacional.
Bom trabalho!
INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO – NOÇÕES ELEMENTARES [Excertos]
Análise do programa normativo: inquietações técnicas para o intérprete
Paulo Gustavo Gonet Branco | Imagem: Migalhas/AgoraRN
Para que a norma possa incidir sobre um caso concreto é preciso definir o significado dos seus dizeres. No Direito Constitucional, essa tarefa também é levada a cabo com os recursos das regras tradicionais de interpretação.
Para a compreensão do texto normativo, faz -se uso da interpretação gramatical, buscando -se o sentido das palavras; da interpretação sistemática, visando à sua com preensão no contexto amplo do ordenamento constitucional; e da interpretação teleológica, com que se intenta desvendar o sentido do preceito, tomando em conta a sua finalidade determinante e os seus princípios de valor 132.
Cogita -se, ainda, analisar o processo da criação da norma, quando se investigam os antecedentes históricos, os trabalhos legislativos preparatórios que redundaram no dispositivo (interpretação histórica e/ou genética). Esse método tende, na generalidade dos casos, a oferecer relevância mais restrita, recomendando-se, em caso de divergência, a preferência pelo sentido que se possa extrair como objetivado no preceito. À parte essa ressalva não é dado hierarquizar os vários métodos 133.
Nenhum deles propicia um critério seguro para a fixação de algum exato sentido da norma constitucional. Nenhum deles isenta o intérprete de perplexidades. Na realidade, são frequentes os casos em que “a utilização sucessiva de todos os métodos” não redunda em um sentido unívoco 134. Os problemas envolvidos nesses métodos são expostos claramente por Hesse: “É frequente que o texto não seja inequívoco sobre o significado da palavra, com o que se põe o problema de como determinar este significado: se com o auxílio da linguagem usual, ou com o da linguagem jurídica, ou ainda segundo a função que o preceito assuma em cada caso. A ‘interpretação sistemática’ pode ser manipulada de diferentes modos, segundo se tenha em conta o lugar da lei em que se insere o preceito, ou se considere a sua conexão material. A “interpretação teleológica” é praticamente uma carta branca, já que, ao se dizer necessário desvendar o sentido de um preceito, não se responde a pergunta fundamental sobre como descobrir este sentido. Finalmente, tampouco é clara a relação dos distintos métodos entre si. Não se resolve qual daqueles se há de seguir em cada caso, ou a qual deve ser acordada preferência, sobretudo quando conduzem a resultados incoincidentes” 135.
As inquietações surgidas no domínio da interpretação constitucional ligam -se a dúvidas sobre a identificação da norma com o seu enunciado. Muitas vezes, essas perplexidades surgem porque o constituinte utiliza termos com mais de um significado, gerando o problema da ambiguidade. Um enunciado ambíguo enseja a que dele se extraia mais de uma norma, sem que se indique ao intérprete um parâmetro de escolha. A ambiguidade pode resultar da multiplicidade de sentidos da própria palavra (ambiguidade semântica) ou da incerteza de sentido resultante do contexto em que empregada (ambiguidade sintática)136.
Ambiguidades
A ambiguidade reside, muitas vezes, na vagueza do termo ou da expressão. A Constituição se vale de palavras e expressões que comportam inteligências variadas, mais ou menos amplas, que, por vezes, aludem a propriedades que se revelam em graus diferenciados. Assim, por exemplo, a Constituição veda as penas cruéis (art. 5º, XLVII), deixando ao intérprete o trabalho de compreender quando se pode caracterizar como cruel um castigo aplicado. O constituinte fala em devido processo legal, no art. 5º, LIV, expressão que dá ensejo a várias pretensões de sentido, inclusive permitindo que se fale em devido processo legal material, como sinônimo de exigência de razoabilidade/proporcionalidade nas ações dos poderes públicos. Atente -se, por igual, para o art. 12, § 4º, I, da CF, que enumera como causa de perda da nacionalidade brasileira a condenação por atividade nociva ao interesse nacional.
É ocioso enfatizar a amplitude de significados que a expressão realçada pode abrigar. A ambiguidade pode resultar da existência de dois significados para uma mesma expressão ou termo, um deles, técnico, e o outro, natural. Algumas palavras comuns, quando ingressam no ordenamento jurídico e, em especial, no constitucional, mantêm seu significado ordinário. Não raro, porém, assumem uma designação diferente da leiga ou do significado próprio de outro setor jurídico.
Por vezes, o constituinte, ainda, está criando uma realidade nova com a expressão de que se utiliza; em outros casos, recolhe e constitucionaliza uma noção já assentada na comunidade. Veja -se, por exemplo, o que acontece com a palavra “domicílio” e com a palavra “casa”. No art. 109, § 1º, a Constituição dispõe que as causas em que a União for parte serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte. O art. 139, V, cogita da busca e apreensão em domicílio. No art. 5º, XI, o constituinte proclama o que a doutrina chama de princípio da inviolabilidade do domicílio, ao dispor que “a casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.
Sabe -se que, no Direito Civil, domicílio e casa não são noções coincidentes, mas o constituinte as identifica, por exemplo, no Art. 139, V, ali aludindo a domicílio no sentido de prédio em que a pessoa possui residência. Em outro ponto, já utiliza o termo domicílio no seu sentido técnico jurídico, quando cuida de dispor sobre competência da Justiça Federal (art. 109, § 1º). Repare -se, também, que o constituinte usa a expressão casa não apenas para se referir ao lugar de residência da pessoa (art. 5º, XI) como também emprega o termo para designar os principais órgãos do Poder Legislativo, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. E mesmo a palavra casa, que, na linguagem leiga, designa o espaço físico em que alguém reside, é compreendida, tecnicamente, pelo Supremo Tribunal Federal, como a corresponder também ao escritório profissional, o lugar de trabalho, mesmo que nada tenha a ver com a residência da pessoa, em se tratando de aplicação do Art. 5º, XI, da CF 137.
Não há um critério absoluto e único para que se possa afirmar com certeza que um dado termo empregado pelo constituinte o foi em sentido leigo, técnico habitual ou se trata de uma inovação. “Perante cada utilização de um conceito polissêmico haverá que analisar cuidadosamente qual o sentido que lhe cabe nessa circunstância”, conforme se admoesta, com boa razão, na doutrina 138. De toda sorte, é sustentável dizer que, se o constituinte se dedica a disciplinar um assunto de cunho técnico, os termos de que se vale, em princípio, devem ser compreendidos como o são na área do saber especializado. Assim, quando o constituinte se vale de termos jurídicos de conteúdo assentado na ciência jurídica, há razão para que se considere que está incorporando tal perspectiva na norma que dispõe. Quando a Constituição garante a propriedade, mesmo sem a definir, entende -se que acolhe o conceito firmado desse instituto, que possui um núcleo de significado a que se ligam as faculdades de usar, gozar e dispor. Se o poder constituinte originário inaugura uma nova ordem jurídica, isso não significa que não possa acolher e vitalizar conceitos da ordem pretérita.
Incoerência normativa
Outro problema com que o intérprete pode -se defrontar relaciona -se com os casos de incoerência normativa por parte do constituinte. O postulado do legislador racional, que não usa palavras excessivas e que não é incoerente nos seus comandos 139, encontra nas realidades constitucionais desmentidos práticos que desafiam a criatividade do intérprete. Por vezes, não há como resolver, segundo os critérios técnicos tradicionais da hierarquia, especialidade ou cronoló gico, certas antinomias internas, verificadas na redação do Texto Constitucional. O problema, nesses casos, radica na circunstância de duas regras diversas, a propósito de um mesmo pressuposto de fato, comandarem soluções díspares.
Veja -se, a título de exemplo, o que acontece na Constituição em vigor no seu art. 61, § 1º, d, e no art. 128, § 5º. De acordo com o primeiro dispositivo, são da iniciativa privativa do Chefe do Executivo as leis que disponham sobre a organização dos Ministérios Públicos da União e dos Estados. Já o segundo preceito estabelece que os Procuradores -Gerais desses Ministérios Públicos da União e dos Estados têm iniciativa de lei complementar sobre organização e estatuto dos respectivos ramos do parquet. A perplexidade gerada pela afirmação de que o Presidente da República é a única autoridade que pode provocar o Legislativo para dispor sobre a organização do Ministério Público, convivendo com a assertiva de que também o Procurador -Geral do Ministério Público tem essa prerrogativa, resulta de uma inesperada incoerência técnica, que convoca o intérprete a exercer incomuns poderes corretivos 140.
Lacunas
A dificuldade para o intérprete da Constituição pode estar na circunstância de deparar com uma situação não regulada pela Carta, mas que seria de se esperar que o constituinte sobre ela dispusesse. Mais inquietante, pode acontecer de um fato real se encaixar perfeitamente no que impõe uma norma, cuja incidência, contudo, produz resultados inaceitáveis. Nesses casos, fala -se em lacuna da Constituição. A lacuna pode ser definida, na fórmula precisa e concisa de Jorge Miranda, como “situação constitucionalmente relevante não prevista” 141.
Quando ocorre a primeira das situações acima descritas, será necessário discernir se o constituinte não deixou de disciplinar a matéria, justamente para permitir que o legislador o fizesse, conforme as peculiaridades do momento, sem a rigidez que marcam as decisões fixadas no Texto Magno. Teríamos, então, apenas uma matéria que a Carta da República não regulou, por haver preferido situá -la no domínio da liberdade de conformação do legislador comum. O assunto é extraconstitucional 142.
Outros casos há, porém, em que o problema sob a análise do intérprete não encontra subsunção em um dispositivo específico do Texto Constitucional, mas não se flagra um propósito do constituinte de relegar o tema ao jogo político ordinário da legislação infraconstitucional, porque a matéria, à parte o tópico em que ocorre a omissão, é objeto de um tratamento direto e minucioso do constituinte. Nessas hipóteses, o intérprete pode ver -se convencido de que a hipótese concreta exami nada pelo aplicador não foi inserida pelo constituinte no âmbito de certa regulação, porque o constituinte não quis atribuir ao caso a mesma consequência que ligou às hipóteses similares de que tratou explicitamente. A omissão da regulação, nesse âmbito, terá sido o resultado do objetivo consciente de excluir o tema da disciplina estatuída. Fala -se, em situações tais, que houve um “silêncio eloquente” do constituinte, que obsta a extensão da norma existente para a situação não regulada explicitamente.
Ilustração de silêncio eloquente, assim reconhecido pelo STF, é o da regulação dos atos normativos que podem ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade perante a Suprema Corte. O art. 102, I, a, alude a leis e a atos normativos estaduais ou federais. O silêncio com relação a leis e atos normativos municipais é proposital e excludente dessas modalidades de normas da fiscalização abstrata por meio de ação direta no STF 143.
No entanto, o exame apurado das circunstâncias normativas, a partir de uma compreensão sistemática, pode revelar que houve, na omissão, apenas um lapso do constituinte, que não pretendera excluir da incidência da norma a categoria de fatos em apreciação.
Aqui, haverá uma “lacuna de formulação”. Como exemplo, veja -se que, até a Emenda Constitucional n. 45/2004, na lista dos entes e pessoas que estavam legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (art. 103 da CF), aparecia o Governador do Estado, mas não se mencionava o Governador do Distrito Federal. Não obstante o caráter taxativo da enumeração, o STF entendeu que a omissão não pretendia impedir o Governador do Distrito Federal de propor ação direta perante a Suprema Corte, já que competências do Estado -membro são estendidas ao Distrito Federal (art. 32, § 1º) e não haveria motivo para o tratamento diferenciado, no particular 144. A hipótese configuraria mera lacuna de formulação, um lapso material, que não impediria a ação direta proposta pelo Governador do Distrito Federal.
O dispositivo veio a ser, afinal, retificado com a EC n.45/2004 145. Repare -se que o argumento da analogia é propício para remediar esse tipo de lacuna. A lacuna às vezes ocorre porque o constituinte não chegou a atinar com a necessidade de dispor sobre o período de adaptação necessário, no plano da realidade, para que a norma que estatuiu possa produzir efeito. Assim, por exemplo, com o aumento do número de tribunais regionais do trabalho, no regime da Constituição de 1988, verificou -se a impossibilidade, em alguns casos, de se formar lista de integrantes do Ministério Público do Trabalho com mais de dez anos de carreira para compor o quinto constitucional dos membros da corte, o que poderia inviabilizar a própria composição plural da corte desejada pelo constituinte. O STF enxergou, aqui, “uma lacuna: a não regulação das situações excepcionais existentes na fase inicial de implementação do novo modelo constitucional. Não tendo a matéria sido regulada em disposição transitória, parece adequado – disse o Ministro Gilmar Mendes – que o próprio intérprete possa fazê -lo em consonância com o sistema constitucional”. Assegurou -se, então, que as listas de candidatos a juiz de TRT pela vaga do Ministério Público pudessem ser completadas, quando necessário, por quem não possuía ainda dez anos de carreira 146.
Esse último caso aproxima -se de um outro modelo de lacuna, trabalhado na aplicação da Constituição, que ganha o nome de lacuna axiológica. Aqui, como é típico das lacunas constitucionais, uma circunstância constitucionalmente relevante não foi prevista. O intérprete sustenta, a partir de uma pauta valorativa por ele pressuposta, que faltou ao constituinte esclarecer que a situação semanticamente englobada na hipótese de fato de uma norma deve ser considerada como por ela não disciplinada, para, desse modo, não se dar efeito a uma solução injusta ou inadequada ao sistema.
Na lacuna axiológica, há uma solução normativa formal para o problema, mas o intérprete a tem como insatisfatória, porque percebe que a norma não tomou em conta uma característica do caso que tem perante si, a qual, se levada em considera ção, conduziria a outro desfecho 147. O intérprete entende conveniente que se inclua, suprima ou modifique algum dos elementos da hipótese de fato da norma 148.
Na maioria das vezes, explica Chaïm Perelman, essas “lacunas são criadas pelos intérpretes que, por uma ou outra razão, pretendem que certa área deveria ser regida por uma disposição normativa, quando não o é expressamente” 149. O aplicador restringe, muitas vezes, o alcance da norma, em nome da finalidade que lhe seria própria ou que seria aquela do sistema em que inserida.
Exemplo de descoberta desse tipo de lacuna tem -se na jurisprudência do STF em torno do art. 102, I, f, da CF. Embora a norma, na sua formulação literal, estabeleça a competência originária do Supremo Tribunal Federal para “as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta”, o STF, no que o Ministro Sepúlveda Pertence chamou de “audaciosa redução teleológica na interpretação [do preceito]”, adstringiu “a sua competência originária para causas cíveis em que entidades da Administração indireta federal, estadual ou distrital contendam entre si ou com entidade política da Federação diversa (…), nas quais, pelo objeto da ação ou a natureza da questão envolvida, se reconheça ‘conflito federativo’”150.
Para o STF, como o art. 102, I, f, da CF tem o sentido de investir a Corte no papel de pacificadora de atritos entre unidades da Federação, os conflitos jurídicos que não sejam potencialmente desestabilizadores do equilíbrio federativo não estariam abrangidos pelo disposto no preceito definidor da competência originária do STF. Excluíram -se, portanto, do seu âmbito normativo várias situações que, semanticamente, se incluiriam no texto da norma. O constituinte não teria considerado que certas fricções entre as pessoas citadas no dispositivo não perturbam a ordem federativa. Ao não excepcionar da regra geral da competência originária essas situações, teria deixado de regular situação constitucionalmente relevante, daí se extraindo a presença de caso de lacuna axiológica 151. Por vezes, o mundo dos fatos apresenta inovações que não existiam ao tempo da elaboração da regra, mas que possuem características que as assimilam à razão de ser de normação havida. A interpretação extensiva abarcará esses casos. Disso fazem exemplos decisões do STF, entendendo que também os livros eletrônicos, não cogitados em 1988, fruem da imunidade tributária dos livros, em prol da liberdade de expressão e de informação 152. […]
Notas
[1] Inwood, 2006; Kristin, 2005.
[2] Schimidt, 2006.
[3] Grondin, 2006.
[3] Schleermacher, 1998, p.28.
[4] Humboldt, 2010, p.98-99.
[5] Brasil, sd., p.07.[6] Brasil. 1942. Art. 4 e 5.
- Klaus Stern, Derecho del Estado de la República Federal alemana, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1987, p. 283.
- Conforme Stern, “os métodos de interpretação hão de ser combinados. Nenhum método deve ser absolutizado. É correto o resultado que, pela utilização sucessiva de todos os métodos de interpretação, transmite o sentido da lei”. Derecho, cit., p. 284.
- Pense -se, por exemplo, na jurisprudência da Suprema Corte, que reclama das entidades de classe legitimadas para propor a ação direta de inconstitucionalidade que revelem o seu interesse na exclusão da norma impugnada do ordenamento jurídico – isso, não obstante o art. 103 não dispor sobre essa condição da ação e da finalidade do controle abstrato parecer excluir a necessidade de interesse concreto na impugnação.
- K. Hesse, Escritos de derecho constitucional, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p. 37 -38.
- Tome -se como exemplo a palavra “legitimidade”, empregada no caput do art. 70 da Constituição, designando um dos elementos do controle externo a ser desempenhado pelo Congresso Nacional. A palavra tem múltiplos significados, podendo designar a conformidade com a lei, com algum parâmetro político ou mesmo com algum critério técnico. Tem -se, aí, um caso de ambiguidade semântica. Exemplo de ambiguidade sintática encontra -se no art. 5º, XIII. Ali se proclama “livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. A ambiguidade está em que a frase pode ser compreendida tanto a designar que toda a profissão é, de imediato, livre de qualquer limitação pelo Estado, podendo, no entanto, o legislador vir a restringir essa liberdade impondo requisitos de qualificação profissional. Pode também ser lida como a dizer que, desde que atendidas as exigências mínimas de qualificação profissional, o exercício da atividade especializada é admitido e não pode ser impedido pelo Estado. O primeiro sentido, vale observar, é o aceito.
- A propósito, veja -se o HC 93.050, rel. Min. Celso de Mello, DJe de 1º -8 -2008: “Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de ‘casa’ revela -se abrangente e, por estender -se a qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4º, III), compreende, observada essa específica limitação espacial (área interna não acessível ao público), os escritórios profissionais, inclusive os de contabilidade, ‘embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita’ (Nelson Hungria)”.
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos, cit., p. 56.
- Esse postulado conhece até versão em brocardo (verba cum effectu sunt accipienda – “não se presume, na lei, palavras inúteis” ou “devem -se compreender as palavras como tendo algum significado”). Não deve ser levado a extremo, como, arrojadamente, adverte Richard Posner, ao explicar que “leis e constituições são escritas apressadamente por pessoas ocupadas, às vezes inábeis linguisticamente ou descuidadas (…). Os textos legislativos não são produtos de uma só mente, mas de uma Assembleia, cujos numerosos membros podem ter objetivos divergentes – e, por isso, podem conter repetições despropositadas e inconsistências. Supor que cada palavra num estatuto jurídico deve ter um significado – que toda lei é um todo perfeitamente coerente – é se equivocar sobre a natureza do processo legislativo e é capaz de levar a interpretações lúdicas” (Law and literature, Cambridge, Mass., 2009, p. 311).
- No caso específico do exemplo dado (ADI MC 400, rel. para o acórdão Min. Marco Aurélio, DJ de 8 -2 -1991), o STF não hesitou em apontar que havia no texto constitucional uma “impropriedade terminológica”, acrescentando que a privatividade da iniciativa do Presidente da República na primeira norma “só pode ter um sentido, que é o de eliminar a iniciativa parlamentar” (voto do Ministro Sepúlveda Pertence). Daniel Mendonca (Analisis constitucional: una introducción – cómo hacer cosas con la Constitución, Bogotá: Editorial Universidad del Rosario, 2009, p. 74) fornece um outro exemplo, que retira da Constituição paraguaia, em que a competência para autorizar o ingresso de forças armadas estrangeiras no território paraguaio é, em sucessivos dispositivos, entregue, com exclusividade, a órgãos distintos.
- Jorge Miranda, Teoria, cit., p. 457.
- A propósito, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra: Almedina, 1991, p. 58; Jorge Miranda, Teoria, cit., p. 456 -457. Como exemplo, no caso brasileiro, tome -se o texto constitucional em vigor, depois de revogada a norma do § 3º do art. 191, que fixava em 12% ao ano o limite máximo dos juros reais, tendo como usurários os juros que superassem essa marca. O assunto, com a revogação ocorrida em 2003, deixou de ter status constitucional. Preferiu o constituinte de reforma que o tema fosse confiado ao legislador comum. A revogação não significou que não deve haver limite aos juros ou que não mais se deve punir a usura, apenas o tema deixou de ser objeto da atenção direta da Constituição.
Referências
BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei n.4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro).
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasíli: MEC/SEED, sd.
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