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Inteligência Artificial na produção de conhecimento [histórico]

Cenário gerado por Inteligência Artificial a partir do comando: “Ilustração. Três garotas” | Imagem: IF/IA /Midjourney (2023)

 

O Chat GPT ganhou grande mídia nos meses de janeiro e fevereiro como a novidade em termos de Inteligência Artificial (IA) na geração de textos em linguagem natural.

As controvérsias motivadas pelas proibições da ferramenta em universidades e escolas na Europa e nos Estados Unidos repercutiram no Grupo de Teoria da História, do qual faço parte, na rede social WhatsApp, nas minhas conversas com os professores Fábio Alves, Margarida Oliveira, deflagrando uma série de experiências, algumas das quais apresento neste texto.

A pergunta que respondo neste minicurso (Inteligência Artificial na produção de conhecimento histórico), exigida pela provocação de Margarida Oliveira, é: qual o impacto da ferramenta no trabalho do profissional de História? Que possibilidades e desafios são anunciados com a disseminação da mais recente Inteligência Artificial (IA) em larga escala no nosso ambiente de trabalho?

As respostas são fornecidas com base em ideias que Margarida Oliveira e eu defendemos há quase duas décadas sobre o que deveria ser o ensino de História na formação superior e o ensino de História na escolarização básica, no Brasil.

Assim, neste texto que norteia nossas atividades pelas próximas quatro horas, descrevo brevemente as mais recentes substituições do trabalho humano pelo trabalho dos algoritmos.

Além disso, defendo as ideias de “cérebro avançado” ou de “descarga mental” [1] como possibilidade de convivência produtiva e controlada dos benefícios da inteligência artificial, com ênfase no Chat GTP.

1. Inteligência Artificial e trabalho de professor

Para vários especialistas na matéria, Inteligência Artificial (IA) é empregada como tecnologia ou cluster de tecnologias (software e hardware) que incluem “robótica, aprendizado de máquina, computação em nuvem, genômica, impressão 3D, criptografia quântica, Telecomunicações 5 G” (Araya; Marber, 2023, p.1; Lee; Qiufan, 2022, p.7).

De modo mais específico, neste texto, a inteligência humana é entendida como a capacidade de estabelecer, selecionar meios e cumprir objetivos, enquanto a IA é compreendida como agir sistematicamente para atingir os objetivos que nós humanos estabelecemos. (Russel, 2021, p.2022).

Fazendo o paralelismo com essa definição, entendemos que a IA aplicada ao trabalho do profissional de História é capacidade de mobilizar-se em torno de um objeto e cumpri-lo sem a interferência de um historiador em seu processo.

Assim, considerando que a tarefa desse profissional é problematizar, gerar hipóteses, revisar a literatura, processar fontes (encontrar, classificar, criticar e interpretar) e sintetizar declarações proposicionais no ensino básico e no ensino superior, a IA aplicada ao trabalho do historiador pode ser definida como a capacidade de problematizar, gerar hipóteses, revisar a literatura, processar fontes (encontrar, classificar, criticar e interpretar) e sintetizar declarações proposicionais na condição de ferramenta auxiliar ao profissional da História.

Esse entendimento da relação IA/trabalho do profissional de História nos leva a outro conceito: o de inteligência controlada.

2. Usando Inteligência artificial e mantendo a autonomia docente

Do mesmo modo que ocorreu com as calculadoras científicas, que proporcionaram a extensão do cérebro retentor de algoritmos às máquinas manufaturadas, o uso da IA ​​no trabalho do historiador, consiste em um “descarregamento” [2] do cérebro humano de habilidades desenvolvidas e mobilizadas há dois séculos para atuar na escolarização básica e no ensino superior.

As consequências desse “descarregamento” ainda são controversas, ou melhor, nem foram pesquisadas no Brasil. Assim, nosso foco não são as questões éticas ou os prejuízos em termos de habilidades, conhecimentos e valores básicos.

Concentrando nossa atenção sobre genéricas categorias de aprendizagem histórica, podemos afirmar que a manutenção da autonomia docente no Ensino de História está diretamente relacionada ao domínio de conhecimentos, habilidades e valores básicos defendidos como tipicamente identitários das práticas de ensino em História.

De modo mais preciso, afirmamos que a Inteligência Artificial aplicada ao ensino deve consolidar (ou aprofundar) um novo fosso entre os que sabem e os que somente sabem fazer. Em outros termos, os saberes teóricos ganham primazia na formação e na atuação docente.

Para o que nos interessa neste mini-curso, basta que reiteremos a necessidade de dominar a sintaxe dos enunciados de expectativas de aprendizagem, também reproduzida nos demais enunciados da prática: diagnósticos, atividades, avaliação.

É importante reter a forma de todo enunciado de aprendizagem, seja ele uma competência geral (de etapa ou de área do ensino) ou um item de prova de determinado componente curricular. Ele possui três elementos estruturantes: habilidades, conhecimentos e conhecimentos/habilidades/valores/atitudes etc. que informam a qualidade da resposta que o aluno deve fornecer.

É importante lembrar que todo enunciado de expectativa de aprendizagem histórica é, necessariamente, orientado por teorias gerais da aprendizagem e/ou por teorias da aprendizagem histórica. Portanto, sem conhecer princípios de aprendizagem disponíveis na rede, a exemplo daqueles formulados por J. Rüsen, P. Lee e I. Barca ou desenvolvidos a partir das teorias de J. Dewey, L. V. Vigotsky, J. Piaget, D. Ausubel e P. Freire, é provável que você vire refém das máquinas.

É certo que se você der um comando sem orientação teórica ao GPT, ele vai responder de modo teoricamente correto (salvo eventuais alucinações). Ele assim procederá porque o algoritmo faz apenas previsões sobre palavras (e, consequentemente, de expressões e proposições) que podem se seguir à sua questão. Considerando que Piaget, Vigotsky e Ausubel são autores referenciados positivamente pela maioria dos acadêmicos, as respostas serão, repetimos, academicamente corretas. Por essa razão, o GPT corrigirá o seu desconhecimento com material epistemologicamente correto.

Por outro lado, aplicar comandos aleatórios ao GPT é ruim porque, aos poucos, você vai transferindo sua autonomia para a máquina, já que a sua aprendizagem será limitada à eventual correção que fez sobre o comando que você elaborou.

Perda de autonomia significa, inclusive, que você não terá parâmetros para avaliar e validar a correção e a legitimidade da resposta oferecida pela tecnologia, reproduzindo, eventualmente, erros de toda espécie produzidos pelo Chat.

Outra demanda teórica suscitada pelo uso do Chat GPT (e tecnologias similares) é o domínio da aplicação de teorias da aprendizagem a situações de progressão das aprendizagens.

No trabalho de planejar atividades e itens de prova para alunos de diferentes faixas etárias/etapas de ensino, é necessário dominar minimamente os princípios de progressão por complexidade estabelecidos nas taxonomias dos objetivos educacionais. É importante reter que as progressões podem ser realizadas com a modulação das habilidades (verbos), dos conhecimentos (substantivos) e da combinação entre habilidades e conhecimentos.

Novamente, devemos reconhecer que o Chat GPT faz isso muito bem e pode fornecer elementos de autoavaliação. Você pode perguntar a ele onde estão os elementos que demonstram o uso das teorias, conceitos, valores comunicados no seu comando. Contudo (também novamente) se você desconhecer as teorias não poderá avaliar, validar e legitimar a argumentação que ele oferece sobre a própria produção.

Outra demanda teórica exigida pelo uso das Inteligências Artificiais é o conhecimento mínimo sobre categorias e procedimentos de inclusão de pessoas com deficiência, a exemplo de não videntes ou não ouvintes em salas de videntes e ouvintes de modo a conciliar minimamente os ritmos de aprendizagem e as demandas de cada grupo.

Principalmente para esta tarefa, devemos reunir o conhecimento da estrutura dos enunciados, das teorias da aprendizagem, das teorias da progressão e das teorias da avaliação (diferenciando avaliações para seleção e avaliações como auxílio da aprendizagem, tipos e formas de itens de prova etc.).

Considerações finais

Nas experiência que faremos na sequência, é provável que privilegiemos o conhecimento substantivo, o mais empregado em sala de aula no Brasil. Mas vocês podem explorar apenas conteúdo metahistórico ou combinar os dois. Repetimos que a tecnologia será limitada por suas limitações ou expandida com a sua criatividade ou a sua predisposição para experimentar e inovar.

Para finalizar, reiteramos que os saberes e preocupações que apresentamos hoje demonstram a importância da Universidade nas suas carreiras e formações. Os saberes da prática são muito mais úteis ao cotidiano docente quando combinados com as teorias extraídas da pesquisa básica, dominantemente realizada pelos pós-graduandos e professores universitários. As interações desses e de outros saberes, por fim, são um importante instrumento para a manutenção da autonomia que todos gozamos com professores em qualquer etapa de ensino.

Notas

[1] “O descarregamento tem muitos benefícios. Isso nos alivia do fardo de manter uma série de detalhes ‘em mente’ liberando recursos programados para tarefas mais exigentes, como resolução de problemas e geração de ideias. Também produz para nós o ‘ganho de desapego’, pelo qual podemos inspecionar com nossos sentidos, e muitas vezes perceber de novo uma imagem ou ideia que antes existia apenas na imaginação.” (Paul, 2023, p.164).

[2] Como a expressão sugere, The Extended Mind é a capacidade humana de transferir à IA a tarefa de cumprir objetivos antes restritos exclusivamente ao cérebro do profissional de História. Tal descarga pode ser realizada pelos procedimentos cotidianos de fazer anotações (offloading ), de gesticular, transformar abstrações em objetos tridimensionais e de se engajar numa discussão com especialistas (memória transativa) (Paul, 2023, p.161-163).

Referências

ARAYA, Daniel; MARBER, Peter (Ed.). Augmented Education in the global age: Artificial Intelligence and the future of learning and work. New York: Routledge, 2023.

LEE, Kai-Fu; QIUFAN, Chen. Dois pardais: Processamento de linguagem natural, treinamento autossupervisionado, GPT-3, AGI e consciência, educação com IA. In: Como a Inteligência Artificial vai mudar sua vida nas próximas décadas. Rio de Janeiro: Globo, 2022. p.82-134.

PAUL, Annie Murphy.Extending Biologial Intellignce: the imperative of thinking outside our brains in a world of artificial inteligence. In: ARAYA, Daniel; MARBER, Peter (Ed.). Augmented Education in the global age: Artificial Intelligence and the future of learning and work. New York: Routledge, 2023. p.158-176.

RUSSEL, Stuart. Inteligência artificial a nosso favor: como manter o controle sobre a tecnologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

 

Este texto continua em: A transferência de habilidades do saber-fazer histórico.


Para citar este texto

FREITAS, Itamar. Inteligência Artificial (IA) na produção de conhecimento histórico. Resenha Crítica. Aracaju/Crato, 11 abr. 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/inteligencia-artificial-ia-na-producao-de-conhecimento-historico/>. [Texto modificado em 29/05/2023 para melhoramentos de revisão textual e estilo].

Itamar Freitas

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Itamar Freitas

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