História | Temístocles Cezar

CEZAR Temistocles 2 Temístocles Cezar
Temístocles Cezar (esquerda), Renata Gomes e Cesar Guazzelli | Foto: Renata Gomes

Esclarecimentos

Originalmente, o texto de Temístocles Cezar não possui as subdivisões apresentadas abaixo. Procedemos desta maneira para facilitar a realização da tarefa desta unidade que é a extração dos significados de Historiografia e Historiografia Brasileira.

Boa leitura!


1. [Antiguidade clássica]

2. A história tem uma longa história. No Canto VIII da Odisseia, Homero narra o episódio em que Ulisses desembarca, náufrago e solitário, na terra dos feácios. No banquete oferecido em sua homenagem, o herói grego escuta o poeta (aedo) Demódoco contar sua própria história: aquela do cavalo de madeira e da queda de Troia. Ulisses considerou a narrativa de Demódoco tão precisa que, emocionado, lhe disse: “Demódoco, acima, sim, de todos os mortais te louvo; ou a Musa te ensinou, filha de Zeus, ou Apolo, pois muito em ordem o fado dos aqueus cantas, quanto fizeram e sofreram e quanto suportaram, como se, em parte, estivesses presente ou o ouvisses de outro”.

3. Embora o poeta não tivesse participado do conflito, muito menos visto, posto que era cego, sua narrativa parecia, paradoxalmente, a de uma testemunha ocular. Ulisses, além de personagem, é também aquele que atesta a veracidade dos fatos. Ele é a prova de que aquilo realmente aconteceu. Nesta cena primitiva, que não passa de uma metáfora da origem da história, percebemos quatro noções – tempo (Odisseia), escrita (Homero), memória (Demódoco), verdade (Ulisses) – que acompanham a história até nossos dias.

4. Mesmo que a autoria dos poemas homéricos e sua datação permaneçam envoltas em mistérios, é certo que a palavra história, nestes primeiros tempos, designava antes um estado de espírito e um tipo de procedimento do que um domínio particular de conhecimento. Atividades intelectuais como o estudo médico ou a investigação do tipo judiciário serviam-se da palavra história, formada a partir do verbo grego historieîn, por sua vez derivado de hístor – que remete etimologicamente a ideîn – “ver” – e a (w)oida – “saber”. Até hoje, o verbo faz parte do universo semântico dos dois campos, sendo normal o médico ou o juiz solicitar o histórico, respectivamente, do paciente, da vítima e do réu. O que em determinado momento ocorreu foi uma transformação que converteu o verbo em substantivo identitário que passou a designar a história e, em seguida, a atividade dos historiadores.

5. Heródoto (V a.C.), considerado por Cícero o pai da história, é aquele que historia, isto, escrevia para que “os acontecimentos provocados pelos homens, com o tempo, não sejam apagados, nem as obras grandes e admiráveis, trazidas à luz tanto pelos gregos quanto pelos bárbaros, se tornem sem fama”.

6. Tucídides, pouco depois, escreveu sobre a guerra entre peloponésios e atenienses a partir de indícios de tal modo que não erraria quem considerasse que essas coisas aconteceram como expus, não acreditando em como os poetas as cantaram, adornando-os para torná-las maiores, nem em como os logógrafos [leia-se aqui Heródoto] as compuseram, para serem mais atraentes para o auditório, em vez de mais verdadeiras, já que é impossível comprová-las e a maior parte delas, sob a ação do tempo, acabou forçosamente por tornar-se fábula que não merece fé.

7. Para ambos, a história ajuda a memória a evitar o esquecimento. E tanto em um como no outro, uma ideia de imparcialidade se faz presente. Além disso, nestes primeiros tempos, na ausência de arquivos, no sentido moderno da palavra, umas das principais premissas metodológicas para se registrar os acontecimentos históricos era por meio da visão.

8. [Medievo]

9. Não chega a surpreender, portanto, que a obra de Tucídides – História da guerra do Peloponeso – seja uma história do tempo presente na qual ele participou, logo, a viu. Em 55 a.C., Cícero, em sua obra Do orador, resume, desse modo, as variações em torno da história que lhe antecederam: testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis. Testemunha dos tempos, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, mensageira do passado.

10. A fórmula adquiriu, simultaneamente, reputação, cuja longevidade nos atinge, e uma versão sintética: história mestra da vida. Logo, um conhecimento útil que deveria ser ensinado. Em 165 de nossa era, logo após as obras fundamentais de Políbio, que universaliza a ideia de história (203 a.C.-120 a.C.) e de Plutarco (46-120), que a aproxima do gênero biográfico, Luciano de Samósata afirmava em um tratado, único do gênero que chegou até nós, intitulado Como se deve escrever a história, a seguinte passagem:

11. assim deve ser para mim o historiador: sem medo, incorruptível, livre, amigo da franqueza e da verdade; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou por amizade; que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que seja juiz equânime, benevolente com todos até o ponto de não dar a um mais que o devido; apátrida, autônomo, sem rei, não se preocupando com o que achará este ou aquele, mas dizendo o que se passou.

12. Além dessa defesa da isenção, desde suas origens gregas, a história obedeceu a uma dupla exigência. Por um lado, ela deveria explicar os principais eventos (notadamente as guerras) por meio da identificação de causas, o que exigia do historiador uma narração coerente que colocasse em ordem aquilo que foi pesquisado e pensado.

13. Por outro lado, para que a análise fosse bem recebida e aprendida, era necessário que ela fosse capaz de trazer consigo a adesão do leitor ou do auditório, ou seja, que fosse capaz de convencê- lo. A relação entre a produção textual e seus efeitos foi sintetizada pela retórica latina por meio da seguinte fórmula: evidentia in narratione.

14. A primeira preocupação (evidência) provinha da esfera da observação medical; enquanto a segunda (narratio, narrativa), da eloquência judiciária.

15. [Renascença]

16. O legado dos antigos não foi, entretanto, uma herança intelectual transmitida de maneira consensual, retilínea e evolutiva. Por exemplo, quando os humanistas renascentistas se empregaram em restaurar a validade dos modelos greco-romanos, temos, muitas vezes, a impressão de que se tratou apenas de um movimento de reabilitação de uma herança cultural. Mais do que isso, foi uma escolha consciente, uma opção entre outras possíveis, de autores e obras.

17. Nesse sentido, não podemos esquecer que parte não negligenciável da cultura clássica foi preservada em língua árabe durante a Idade Média e retraduzida na Renascença. Por esta época, encontramos o trabalho que se convencionou denominar o texto fundador da crítica histórica das fontes, o trabalho do humanista Lorenzo Valla (1407-1457), Sobre a doação de Constantino, a ele atribuída e mentirosa, publicado em 1442.

18. Valla desmontou o argumento de que o constitutum Constantini (decreto de Constantino), documento amplamente conhecido no medievo, segundo o qual o imperador Constantino (306-337), no século IV, após se converter ao cristianismo, teria doado ao papa Silvestre I, em sinal de gratidão por este lhe ter curado milagrosamente da lepra, um terço do império romano. Valla, por meio de recursos de ordem psicológica, política e filológica, provou que o texto era do século VIII (concebido nas dependências da chancelaria pontifícia para fornecer uma base pseudolegal às pretensões papais ao poder temporal).

19. Valla abriu espaço para a aparição de De re diplomatica (Sobre a diplomacia) de Jean Mabillon (1681), que segundo Marc Bloch fundou, na prática, a moderna crítica histórica dos documentos. Essa alteração no método histórico foi aprofundada no que se chamou de a era dos antiquários no século XVIII. O antiquário, essa figura gêmea do historiador, fixou normas e colocou na ordem do dia problemas metodológicos estruturais para a história como saber organizado, entre os quais as questões como a da autenticidade documental (a distinção entre fontes primárias e secundárias e a utilidade de testemunhos não escritos, por exemplo), dos modelos narrativos da história ou ainda problemas teóricos como a distinção entre a organização e a interpretação dos fatos.

20. [Ilustração]

21. Ora mestra da vida, ora história dos príncipes, ora sinônimo de tradição e memória (fundamento das leis consuetudinárias, por exemplo), ou simples ramo da retórica, a história, mesmo amparada em princípios teóricos (a busca da verdade) e metodológicos (o método crítico), foi confrontada, ainda neste século, com a filosofia da história de Voltaire que fixou uma série de proposições que, de certa forma, prenuncia os paradigmas do que seria a história no século XIX.

22. Em seu Dicionário filosófico, de 1764, a história foi definida como “narração de fatos considerados verdadeiros, ao contrário da fábula, narração de fatos considerados falsos”. Essa concepção formal e didática de história relacionava-se com a ideia de que a narrativa histórica devia preocupar-se menos com as revoluções do trono do que com o destino do gênero humano, tendo por base a história dos costumes, entendida como a tentativa de recuperar o passado dos povos, da civilização e da cultura.

23. Os historiadores cientistas do século XIX foram herdeiros dessa história filosófica. Nesse contexto, a concepção da história como mestra da vida passa a ser questionada, pois se a experiência mostrava que o aprendizado histórico poderia tornar as pessoas mais inteligente, ao mesmo tempo, era difícil explicar por que essa mesma experiência não era suficiente para impedir que certos acontecimentos que pareciam esgotados voltassem a se reproduzir, apesar do ensinamento da história.

24. A principal hipótese é a de que as críticas à velha fórmula encontraram amparo em um movimento intelectual que reorganizou a temporalidade. Passado e futuro adquiriram outra fisionomia e um novo conceito de história surgiu. A Revolução Francesa foi, simultaneamente, a condição e a fiadora desse novo conceito de história que a tornou um singular coletivo. Ou seja, um conceito que sintetizava a variedade de noções esparsas que significavam a história e lhe retirou a pluralidade (não mais histórias, mas a história).

25. Essa modificação coincidiu com outras singularizações histórica e linguística de conceitos de movimento que reagiram ao antigo regime, como o de liberdade (não mais liberdades), o de justiça (não mais justiças), o de progresso (não mais progressos) e, finalmente, o de revolução (revolução que significa a Revolução Francesa e seus desdobramentos, e não mais revoluções).

26. Assim, em 1824, o jovem Leopold von Ranke, no prefácio a sua História dos povos românicos e germânicos, situava-se na junção desta alteração paradigmática ao afirmar que: “atribui-se à história a tarefa de apontar para o passado, de instruir o mundo contemporâneo para proveito da posteridade; o presente trabalho não aspira a uma tarefa tão elevada, pretendendo apenas mostrar como as coisas realmente aconteceram”.

26. Antes dele, em 1821, em uma conferência intitulada A tarefa do historiador, Wilhelm von Humboldt havia definido a missão da história nos mesmos termos, que por sua vez faziam eco a Luciano: mostrar como as coisas realmente aconteceram. Era isso que se devia ensinar, sendo as consequências desse aprendizado desvinculadas do trabalho do historiador. A história era vista, nessa perspectiva, como conhecimento do passado e o historiador um homem de letras sem compromissos (ou decepcionado) com uma propedêutica política decorrente do seu ofício.

28. Na medida em que a história assumiu o progresso como ordem do tempo, ela também admitiu a unicidade e singularidade dos acontecimentos, tendo por princípio a ideia inovadora de que os homens faziam a história, principalmente, a história da nação. Por conseguinte, a educação baseada no exemplo pretérito perdia consistência. Se havia um aprendizado, era o de que, como pensava Hegel, os homens não se instruem com o saber histórico: “em geral se aconselha a governantes, estadistas e povos a aprenderem a partir das experiências da história. Mas o que a experiência e a história ensinam é que os povos e governos até agora jamais aprenderam a partir da história, muito menos agiram segundo as suas lições”.

29. Se o passado e o futuro não mais coincidiam, então a possibilidade da repetição histórica perdia significado, ficando a experiência que se realiza (a história em movimento) restrita a seu tempo e o futuro aberto a uma infinidade de possibilidades, o que vem sendo chamado de regime de historicidade moderno.

30. Karl Marx o sintetizou com beleza e maestria no 18 Brumário: “A revolução do século XIX não pode tirar poesia do passado e sim do futuro”. De certa forma, houve uma reabilitação dos ensinamentos da história, apenas o fluxo se inverteu: o aprendizado e os exemplos não vêm mais do passado, mas do futuro que ainda não se realizou. Paralelamente a esse movimento político e filosófico, a história vai aprimorando seus padrões científicos rumo à disciplinarização.

31. [Cientificismo]

32. São exemplares as contribuições de Johann Gustav Droysen, em seus cursos proferidos entre 1857 a 1882, na Universidade de Berlim e na França, Fustel de Coulanges, Gabriel Monod, fundador da “escola metódica”, e, em 1898, a publicação de uma Introdução aos estudos históricos de autoria dos medievalistas Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, que definiram critérios do que era a história, como deveria ser pesquisada, escrita e ensinada.

33. Houve, contudo, críticas a esse processo de cientifização da história, sobretudo à utilidade da história (Friedrich Nietzsche), à sua capacidade de ser transmitida (Walter Benjamin) e mesmo ao seu poder inebriante e entorpecedor (Paul Valéry). Em todo caso, a história adentrou o século XX como uma ciência respeitável.

34. Em 1929, os historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre fundaram em Estrasburgo a revista dos Annales, que se torna o nome e a identidade de um movimento historiográfico cujo objetivo era o de renovar os estudos históricos. A Annales era marcada por um estilo de reflexão mais direto, mais irônico, produto inevitável da abertura de suas concepções teóricas, entre as quais a dilatação da noção de fonte histórica, destituindo a preponderância do documento escrito e sustentando a ideia de que os fatos históricos eram construções do historiador.

35. Após a II Guerra Mundial, o movimento em torno dos Annales consolidou-se sob o domínio do historiador Fernand Braudel. A partir de 1968, essa “nova história”, como se tornou conhecida, aumentou a popularidade da história fruto justamente da sua ampliação temática e de formas inabituais de tratar objetos, problemas e campos de estudos já conhecidos.

36. O clima, o livro, a língua, o inconsciente, o mito, o medo, o imaginário, as representações, as mulheres, a infância, os jovens, o corpo, a sexualidade, a morte, a loucura, a prisão, a opinião pública, o filme, a festa etc. tornaram-se temas de pesquisa e de ensino com legitimidade acadêmica. Some-se a essa multiplicação de objetos a emergência da “micro-história” e de uma história cultural renovada e os famosos “retornos”: do acontecimento, da biografia, do político, da narrativa.

36. Essas novas perspectivas abrem o caminho para a ressurgência da história do tempo presente, signo da cultura histórica contemporânea, que adquiriu respeito no campo historiográfico, sobretudo a partir do Instituto de História do Tempo Presente, fundado em Paris, em 1978. Em sua configuração mais recente, já em pleno regime de historicidade presentista (no qual o tempo presente é o centro da história), à história do tempo presente foram associados temas tais como a identidade (nacional, étnica, religiosa etc.), dever de memória, o patrimônio e a figura da testemunha e do juiz, a responsabilidade do historiador, a questão do acesso aos arquivos e as comemorações, a ética, o pós-colonialismo, o cosmopolitismo, os traumas e os animais. Tais propostas de pesquisa e de ensino da história têm em comum a tentativa de restaurar uma conexão mais direta e imediata com o passado ou com algum aspecto central da experiência humana.

38. Essas formas de história desdobraram-se e passaram a ocupar um imenso espaço não apenas físico (o livro, a sala de aula, o cinema etc.), mas também o virtual (notadamente os debates em torno da história pública, da história de gênero, da história das minorias, da história ambiental etc.).

39. [Cientificismo no Brasil]

40. A historiografia brasileira não ficou alheia aos movimentos desta história da história mais global. Enquanto no século XVIII a história no Brasil baseava-se em academias literárias ou em iniciativas individuais, próximas da crônica antiquária e/ou erudita, no século XIX ela integrou-se ao ponto de vista nacionalista. A história da nação brasileira passou a ser o objetivo central dos letrados do período. Oscilando entre uma escrita romântica e científica, a história era escrita sob a égide dos procedimentos que se queriam modernos: fontes originais, objetividade e imparcialidade do historiador.

41. A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, tornou-se o local institucional de produção desta historiografia nacional, pelo menos até 1889. Em 1854 e 1857, foi publicada a primeira História geral do Brasil escrita nestes moldes por um brasileiro, Francisco Adolfo de Varnhagen (a produção que lhe antecede, History of Brazil, era a do inglês Robert Southey, publicada na Inglaterra entre 1810 e 1819).

42. A virada do século foi marcada por um conjunto de obras sem vínculos estreitos com o IHGB, como as de Capistrano de Abreu e Euclides da Cunha, que exploravam, com acuidade, erudição e inteligência, outras alternativas historiográficas, bem como as obras interpretativas e especulativas sobre o Brasil, como as de Gilberto Freire (Casa-grande & senzala, 1933), Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) e Caio Prado Júnior (Formação do Brasil contemporâneo, 1942).

43. A historiografia brasileira, enfim, acompanhou o desenvolvimento das tendências internacionais da história como disciplina, ora com mais subserviência teórica e metodológica, ora mais independente. A institucionalização dos cursos de história a partir dos anos 1930 e a criação dos programas de pós-graduação no Brasil nos anos 1970 e 1980 consolidaram a história como campo de pesquisa e como disciplina de ensino.

44. A historiografia brasileira é hoje, pelos seus temas e por sua autorreflexão, uma das mais inclusivas e combativas sem perder em conteúdo teórico e pedagógico: a história da escravidão, do racismo, de gênero, a história da historiografia e os estudos voltados ao ensino são exemplos notórios.


45. CEZAR, Temístocles. História. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; OLIVEIRA, Maria Margarida Dias de. Dicionário do Ensino de História. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2020.

Voltar ao programa do curso Historiografia Brasileira

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.