Nascente, lugar de onde brota a água, fonte:[1] esse é sentido etimológico comum às línguas alemã, francesa, italiana, espanhola e portuguesa para a palavra “fonte” e, por esse motivo, vamos empregá-lo em nossas atividades a partir de hoje.
No período 1860-1930, tempo da transnacionalização de algo chamado profissionalidade do historiador, o método histórico – conjunto de princípios e práticas que medeiam a investigação sobre o passado – estava assentado sobre quatro elementos típico-ideais: pergunta histórica, heurística, análise e síntese.
A pergunta histórica, obviamente, anunciava uma questão formulada pelo historiador. A análise era a operação responsável pela crítica das fontes, crítica e estabelecimentos dos fatos.
A síntese, às vezes tomava a forma de simples narrativa. Em alguns autores limitava-se ao agrupamento de fatos por semelhança (tempo, espaço, nível de experiência humana, duração etc.) e a sua respectiva ordenação.
Quanto à heurística, era entendida como arte ou o conjunto de atividades envolvidas na busca e organização das fontes. Com esse último elemento todos os manuais propedêuticos consultados concordaram.[2] Segundo seus autores – indivíduos corresponsáveis pela construção de uma comunidade internacional de historiadores –, quase[3] todo juízo sobre o passado assentava-se em fontes.
Significados
Autores que escreveram em língua alemã empregaram fontes [Quellen] ou material histórico [historiches Material].[4] Francófonos usaram materiais históricos [matériaux historiques], testemunho [témoingnage], documento [document] e fonte [source].
Os estadunidenses foram mais econômicos que os franceses: usaram fontes [source] e material histórico [historical material], mas não menos que os ingleses e os italianos, que reconheceram, respectivamente, evidência [evidence] e documento [documentí] como étimos principais.
“Documenti” segue o curso das águas germano-francófonas. Quanto ao termo evidência o sentido é destoante: significa dar-se a ver. Assim, o que está em jogo, ao referir-se a evidencia, são os indícios e sinais.[5]
Os últimos autores que consultamos, os que es escreveram em português e espanhol, também variaram pouco. Eles grafaram fontes [fuentes], material histórico [material histórico] e testemunha ao designarem as “coisas” a partir das quais apoiamo-nos para inferir, concluir, explicar ou simplesmente descrever o acontecido.
Tipificações
Se os sentidos de fonte foram convergentes – fontes/nascente etc. –, as classificações destoaram.
Sabemos que os manuais de métodos foram publicados simultaneamente em vários lugares do mundo. Contudo, os seus públicos – futuros professores de história do ensino secundário, paleógrafos ou professores de faculdades de filosofia –, bem como os objetos de pesquisa dos seus autores – a vida de Alexandre “O Grande”, a história da civilização universal, as ideias que mobilizaram a Revolução Francesa, por exemplo – resultaram na ênfase e, até, da especialização de alguns desses autores em determinado tipo de fonte: biografias, sínteses de histórias nacionais, relatos sobre as guerras greco-persas etc. Consequentemente, as preferências e escolhas em termos de fonte e seus respectivos tratamentos variaram bastante, gerando numerosos esquemas de classificação.
Os critérios dominantes, divulgados desde meados do século XIX, privilegiaram o suporte do testemunho e a intencionalidade da testemunha. Esses parâmetros foram apresentados de modo isolado ou combinado.
Alemães, em geral, dividiram as fontes em restos [Überreste] e monumentos [Denkmäler] ou restos e tradição [Berichte], produzidos com ou sem intenção de serem lembrados pelos pósteros.
Idêntica divisão – um recibo (resto) ou uma moeda (monumento) – foi ressignificada pelos franceses sob os tipos traço material [trace matérielle] e traço psicológico [traces psychologique] ou objeto de observação direta (uma espada) e objeto de observação indireta (um assassinato).
Aí estão os mais empregados modos de tipificar fontes. Mas vamos encontrar tipos que obedecem, novamente, repetimos, às demandas de cada pesquisador e aos modos pelos quais esses pesquisadores entendem o ato de conhecer – mais ou menos estético, racional, ético, lógico e psicológico e assim por diante.
Um jesuíta que escreve a história da igreja, por exemplo, pode classificar as fontes como públicas (sob a autoridade do papado) ou privadas (sob a corrupção do pecador). Um historiador da guerra pode tipificá-las como fontes vistas (iconográficas) e ouvidas (orais). Outro pode, ainda, dividi-las em testemunho in loco, visto, sentido e ouvido no calor da hora (fontes primárias), testemunho gerado a partir de testemunhos sobre o visto, sentido e ouvido no calor da hora (fontes secundárias) ou testemunho resultante da interpretação de cronistas e historiadores (fontes terciárias).
Aqui chegamos a um limite tênue. Artefatos construídos a partir da interpretação de depoimentos coetâneos podem ser considerados fontes – é o caso das “autoridades” sobre guerras do mundo antigo – ou serem alçados à categoria de literatura (bibliografia) especializada – as obras de síntese sobre a história de determinado país ou os dicionários biobibliográficos, por exemplo. Tomar a decisão de incluir uma ou outra como fonte ou literatura, portanto, vai depender do ponto de vista e, obviamente, do objeto da investigação.
Evidentemente, o grande salto da pesquisa histórica no século XIX foi a atitude de depositar “autoridade” na refutabilidade do testemunho e de forma comparada, ao contrário de atribuir absoluta confiança à palavra autorizada de um cronista-historiador canônico. O pressuposto, porém, não mudou: sempre se deve concluir a partir de algo exterior ao à fala do historiador.
Usos
Acima afirmamos que as fontes são “coisas” a partir das quais nos apoiamos para inferir, concluir, explicar ou simplesmente descrever o acontecido. Esse princípio foi admitido como elemento de profissionalidade para diferenciar narrativas sobre acontecimentos intencionalmente inventados de narrativas sobre acontecimentos creditados como realmente existidos.
Esta explicação, contudo, é superficial e apenas dá conta de uma estratégia de inserção no mundo dito científico do século XIX. O ato de empregar fontes está relacionado à vida prática – que excede a preocupação acadêmica: demonstrar, provar, dar fé, enfim, fazer crer.
As fontes são instrumentos de convencimento e de persuasão, ou seja, são “coisas” que empregamos para modificar ou confirmar o pensamento de alguém e até levar esse alguém a agir da maneira como nós intencionamos.[6]
Se estivermos predispostos a acreditar que a existência dos humanos foi marcada pela capacidade de simbolizar e, consequentemente, de atribuir valor, diferenciar-se, defender pontos de vista, persuadir e convencer – independentemente do tempo, lugar e das circunstâncias nas quais viveram – estaremos, certamente, convictos de que a capacidade de reunir fontes e de interrogar sobre as fontes envolvidas nos atos comunicativos deve ser estimulada e expandida desde a tenra idade. Ela é um pressuposto da convivência democrática.
Claro que algumas liturgias religiosas, a oferta de grandes somas de dinheiro obtido ilegalmente ou mesmo a presença de um grupo de pessoas apontando armas para as nossas cabeças podem ser muito mais eficazes na tentativa de modificação das nossas vontades e ações. Mas o convencimento e a persuasão mediante fontes históricas podem abalar os mais fanáticos, autoritários e falaciosos discursos com os quais convivemos cotidianamente.[7]
É por isso, entre outras razões, que vários especialistas no ensino de história orientam o permanente trabalho de busca e de avaliação das fontes dos discursos emitidos por nossos interlocutores, entre os quais estão: os clássicos autores de livros didáticos de história, os diretores dos filmes históricos, os bloggers desmemoriados os detentores de mandato que costumam dizer “a história provará” e, principalmente, os âncoras dos telejornais que se arvoram a contar a história do tempo presente: “hoje foi um dia histórico para o atletismo brasileiro!”
O hábito de avaliar a pertinência da informação, a validade dos argumentos e a possibilidade de modificar ou consolidar as nossas posições depende diretamente da sistemática interrogação do que nos chega aos sentidos.
Assim, afirmar a partir de fontes – um dos primeiros princípios do método histórico –, codificado pelos manuais de propedêuticos à profissionalidade historiadora – pode colaborar na tentativa de convencer a alguns colegas e alunos de que não há indivíduo desinteressado, sociedade homogênea e Estado neutro.
É a partir da crítica e do debate que podemos, por exemplo, concluir que não pode haver, legalmente, algo como uma “escola sem partido”.[8] De onde os defensores dessa ideia retiram os argumentos para propagandear tal iniciativa? Quais foram as suas fontes, o que estão querendo dizer com seus testemunhos e por que afirmam que é possível uma “escola sem partido”? Vamos investigar?
Às fontes, portanto!!![9]
Notas
[1] Fuente – Lugar donde brota una corriente de agua / Principio u origen de uma cosa (SENAS, 2001 p.597); Source – Something or someone that causes or produces something, or is the origin of it (Cambridge, 2000, p.826); Quelle – chafariz, nascente, fonte /fonte, origem. (Dicionário…, 2012, p.540, v.1; p. 812v.2).
[2] ADAMS (1884), ALTAMIRA (1895), BAITANI (1904), BAUER (1926), BERNHEIM (1907), BERR (1911), BOURDEAU (1888), DROYSEN (1882), DUDEZERT e BRÉHIER (1908), FIGUEIREDO (1920), FLING (1889), FONSECA (1953), FREEMAN (1886), ISOLDI (1932), LACOMBE (1884), LANGLOIS e SEIGNOBOS (1898), MARSELLI (1873), MEINSTER (1913), MOELLER (1887), MONOD (1909), MORTET e MORTET (1894), SEIGNOBOS (1901), SMEDT (1883), TARDIF (1883) e VINCENT (1911).
[3] Dizemos “quase todos” porque podemos preencher algumas lacunas por meio de hipóteses em vários níveis de possibilidade e probabilidade.
[4] Droysen (1888, p.14) é o único entre os quatro germanófonos que reserva sentido específico para Quellen: material intencionalmente produzido para servir de lembrança “[was von derselben in die Vorstellungen der Menschen übergegangen und zum Zweck der Erinnerung überliefert ist (Quellen)]”. Nos demais, essa característica é apenas uma possibilidade, ou seja, pode haver fonte não intencional.
[5] Em língua inglesa, evidence é empregado em situações jurídicas, judiciais e médicas como “sinal, “marca”, “prova”, e “testemunho”. Algo diferente do emprego cartesiano – “intuição, visão completa , que fornece a certeza de um conhecimento claro e distinto” – e também do uso aristotélico – visão verdadeira (HARTOOG, 2013, p.12-13).
[6] Há farta literatura sobre a temática. Sugerimos, entretanto, os clássicos trabalhos sobre retórica que convergem sobre a função desta: PERELMAN (2014, p.20-21) e ARISTÓTELES (2013, p.44-45).
[7] Aqui, evidentemente, nos afastamos da crítica simplista que acusa ingênuos noviços historiadores brasileiros, da segunda metade do século passado, supostamente centrados em dois paradigmas herdados do século XIX: “a História como a ciência da reconstituição do passado e o documento impresso e/ou manuscrito como a fonte fidedigna, inquestionável, das informações obtidas.” (SAMARA; TUPY, 2007, p.17). Um bom antídoto a essa má vontade com o século XIX está no já clássico “História e análise de textos”: “Há historiadores que crêem ser a atitude hermenêutica – de que se fala tanto hoje em dia – algo recente. Ledo engano! Já o venerável manual de Langlois e Signobos, que data dos últimos anos do século XIX, criticava os que liam os textos ‘com a preocupação de neles encontrar informações diretas, sem o cuidado de recriar mentalmente as operações que se deveriam ter processado no espírito do autor’”. (CARDOSO; VAINFAS, 1977, p.375).
[8] Escola Sem Partido – por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar. Disponível em: http://www.programaescolasempartido.org/. Capturado em 18 ago. 2016.
[9] Referências: ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: EDIPRO, 2011; HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013; CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. História e análise de textos. In: Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.375-399. PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação: a nova retórica. 3ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. SAMARA, Eni de Mesquita; tupy, Ismênia S. Silveira T. História e documento e metodologia de pesquisa. 2ed. Belo Horizonte, Autêntica, 2010.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. As fontes históricas e os seus usos. Resenha Crítica. Aracaju/Crato, 09 maio 2023. Disponível em <https://www.resenhacritica.com.br/a-cursos/as-fontes-historicas-e-os-seus-usos/>.
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