As práticas culturais sertanejas sempre estiveram imbricadas com rituais indígena, adaptações por parte de africanos e escravos e costumes rurais portugueses pré-conquista ligados ao catolicismo popular. Mais relevantes para a presente discussão são algumas das danças que caracterizam a vida sertaneja, particularmente o samba de coco e o Toré. Na propriedade dos Britto, antes da chegada de RFrei Enoque, as pessoas que se tornariam Xocó participavam de uma grande variedade de tradições sertanejas folclóricas, entre elas o Toré e o samba de coco, embora essas danças não fossem consideradas evidências de nada: eram vistas como uma brincadeira. Ambas associavam-se ao trabalho nos arrozais, parte do combinado dos meeiros com os propritários de terra. Nos primeiros relatórios antropolígicos sobre os Xocó em 1976 (Melatti 1979; Rick 1979) não se fazia mensão alguma a uma “dança sagrada” do tipo do Toré praticado pelos Kariri-Xocó, seus “primos” a jusante (Mota 1997: 35). De fato, duas décaas depois, os Xocó foram acusados de nao conhecer os Torés corretamente (Mota 1997: 35). Tambpouco foram mencionadas quaisquer outras práticas que distinguiriam essas pessoas de seus vizinhos e parentes sertanejos. A visão geral era de que as pessoas que agora reivindicavam a identidade indígena na condição de Xocó não apresentavam nenhuma ads características comummente associadas aos índios nordestinos. Na verdade, havia at´uma divisão entre ancestralidade indígena e as tradições indígenas: “Embora o […] sertanejo frequentemente possua ancestralidade indígena, ele não traz o peso das grandes tradições indígenas, tendo sua língua, sua religião e de fato a maior parte de sua coltura dos portugueses” (A. W. Johnson 1971: 123). or isso, quando os índios nordestinos começaram a afirmar seus direitos à tutela do governo e à terra, foram designados como remanescentes indígenas.
Como solução para essa “falta” de evidências culturais, o complexo cultural indígena nordestino foi apresentado aos Xocó por intermediários da Igreja Católica, como o CIMI, que promoveu a assembleia indígena na aldeia em 1979, e por Frei Enoque, que tentou organizar encontros com os Kariri-Xocó para ensinar-lhes seus segredos (Melatri 1985). Ademais, Clarice Mota, antropóloga que visitara ambas as tribos pela primeira vez em 1983, retornou ao local em 1985 e organizou e filmou uma visita do xamã xocó aos Kariri-Xocó; na ocasião, este foi levado ao ouricuri para obter conhecimentos secretos (Mota 1997: 7, 14, 18). Conforme os Xocó aprenderam essas práticas, elas se somaram a suas crenças católicas e fortaleceram sua lealdade aos padres e ao bispo. Como explicado por uma mulher xocó que havia acaabdo de participar das versões xocó do ouricuri e e tomar a jurema em setembro de 2000, ela em breve passaria uma semana na capital do estado fazendo trabalh missionário para a Igreja CAtólia na periferia da cidade, local de residência de pessoas extremamente pobres. Assim como seus “ancestrais” foram missionizados, também ela faria isso pelos não índios. Como ocorria com seus companheiros xocó, sua identidade indígena não impedia o forte compromisso com a Igreja.
Na década de 1940, Roger Bastide (1944: 50) identificu o Toré como parte de um complexo de crenças e práticas conhecido como catimbó. Pensava-se que alguns dos componentes do catimbó relacionavam-se aos povos indígenas e outros, aos descendentes africanos, mas haviam sido incorporados ao catolicismo popular nordestino. Flocloristas do Nordeste, como Alceu Maynard Araújo (1964c: 46-47), cujas pesquisas datam da década de 1950, descreveram o Toré como uma prática mágica que era “uma mistura de crença católica romana – existência de purgatório e kardecista, isto é, o desenvolvimento do espírito através das reincarnações”. Invocavam-se santos e dizia-s que os dançarinos sw transformavam por meio da ingestão de jurema alucnógena, “em cujos poderes máxicos os sertanejos acreditam piamente”. Araújo explicava que as pessoas “que possuem sangue índio” que ingerissem a jurema “estarão ao pé da juremeira, uma espécie de purgatório católico romano”, onde poderiam tornar-se “caboclos”, o que se considerava uma forma de santificação. Além de ser uma planta com certos poderes curativos, a jurema é hoje vista como parte de uma conjunção religiosa e cultural que inclui canções, mitos e a consagração do espaço (ouricuri) (mta e Albuquerque 2002: 43), sendo que tudo isso está historicamente relacionado ao candomblé e à umbanda, ambos parte integrande do imaginário africano no Brasil. Em estudos recentes sobre a jurema, além de aprender que as alucinações ocorrem apenas quando ela é misturada a produtos extraídos de outras plantas durante o cozimento, os estudiosos investigaram seus significados e expressões polivalentes. Seu estatuto nas religiões afro-brasileiras espelha seu estatuto no universo espiritual indígena, conforme expresso no subtítulo “de espécie botânica à divindade afro-indígena” (Mota Albuquerque 2002; Mota 1997: 48).
Deste a década de 1940, quando o toré se tornou um “ritual sumário” ou “expressão obritatória” (Arruti 1999: 255) da identidade indígena nordestina (Arruti 1998b) e assumiu conotações religiosas indígenas, ele passou a envolver pintura corporal, máscaras e saiotes de fibra vegeral. “A dança é regida por uma música fortemente compassada, o Toante” (Arruti 1999: 255-256), com perguntas e respostas. É organizada em uma fila que serpenteia com s homens na frente, seguidos das mulheres e crianças. Todos batem os pés e os líderes tocam instrumentos semelhantes a flautas; algumas pessoas tocam maracás. Do ponto de vista espiritual, dançar o Toré é esssencial para a comunicação com os encantados, espíritos de índios que não morreram, mas abandonaram este mundo para tornar-se protetores de seu grupo (Arruti 1999: 255). Aém do uso privado do Toré com parte do ouricuri e do uso da jurema como alucin´geno, todas as tribos reconhecidas do Nordeste apresentam publicamente uma versão do Toré em ocasiões especiais, como o dia nacional do índio ou o 500o aniversário do “descobrimento” do Brasil pelos portugueses em 2000.
Pode-s traçar a forma como o Toré se tornou a principal evidência de indigenidadeno Nordeste a partir dos escritos antropológicos de Carlos EStevão Oliveira (Arruti 1999: 255). No início da década de 1940, ele realizou pesquisa entre os mil Funi-ô, únicos índios nordestinos faldantes de uma língua indígena, Ia-Tê. O inspetor regional do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que precedeu a Funai, adotou as observações de EStevão Oliveira sobre o Toré entre os Fulni-ô como critério para julgar as comunidades que começavam a reivindicar uma identidade indígena associada às lutas pela terra em todo o Nordeste. Cmo revelado em entrevista realizada pelo antropólogo Rdrigo Grünewald, o inspetor regional estava bastant ciente de que estava instituindo um rito de passagem, e não uma verificação da autenticidade de grupos que asolutamente não diferiam de forma significativa de seus vizinhos. Eles certamente não eram “primitivos” ou “não civilizados” como os índios da região amazônica com os quais o SPI havia lidado até a década de 1940 (Arruti 1999: 256, aspas no original).
Para esse funcionário do governo, o Toré não era uma expressão de autenticidade, mas uma “expressão obrigatória” com propósito educativo equivalente à conscientização política. A performance da dança em si, segundo ele, era crucial para que um grupo passasse da simples declaração de que desejava “ser” índio para a demonstração de que pretendia também agir como tal. Não demorou muito para que “o Toré fosse reificado como prova substantiva de veracidade étnica” (Arruti 1999: 256), algo que continua sendo no século XXI.
Alguns povos rurais do Nordeste brasileiro claramente se beneficiaram da abertura, por meio da negociação pós-legislativa, de possibilidades de tornarem-se índios totalmente reconhecidos sob a tutela do EStado brasileiro. Ao mesmo tempo há uma perda associada a essa escolha, especialmente em relação à variedade e aos significados das práticas culturais locais. Na vida das pessoas que cresceram na terra dos Britto, tanto o Toré quanto o samba de coco eram experiências lúdicas associadas ao cultivo do arroz; não tinham significados religiosos perceptíveis. Sete anos após a chegada de Frei Enoque a SErgipe, ele gravou e transcreveu entrevistas com moradores mais velhos que haviam se autoidentificado como índios ou, como estes ainda se denominavam em 1978, como caboclos. As transcrições ajudam a compreender o processo de produção de evidências para o reconhecimento. Ao entrevista mulheres com cerca de 90 anos, Frei Enoque perguntou-se se haviam dançado o Toré, ao que responderam afirmativamente. Em resposta a outras perguntas sobre a Ilha de São Pedro, dona Zefinha contou-lhe como sentia falta da ilha, onde desejava ser enterrada. Frei Enoque perguntou-lhe se ela gostaria de viver na ilha, ao que ela respondeu: “Eu acho que se eu soubesse que nós ficaríamos com a Ilha de São Pedro, eu ia dançar um [samba de] coco ainda!”. Frei Enoque voltou-se então imediatamente para a outra mulher e substituiu o nome da dança pelo Toré: “Mãezinha ainda ia dançar o Toré se voltasse um dia pra Ilha de São Pedro?”. Essa substituição é significativa, pois a dança exigida como prova de indigenidade era o Toré, enquanto o samba de coco era visto apenas como uma dana sertaneja qualquer. Algum tempo depois, ela se tornaria a evidência cultural equivalente para que o Mocambo se tornasse um quilombo. Em confirmação à continuidade do imbricamento entre práticas culturais a despeito dos novos reconhecimentos, a antropóloga da Funai que visitou a Ilha de São Pedro pela terceira vez em 1985 observou em seu relatório que os índios dançavam regularmente tanto o Toré quanto o samba de coco (Melatti 1985: 23), combinação que testemunhei na Ilha em 2000 durante a comemoração de sua invasão, da qual nenhuma pessoa externa participou com excessão de Clarice Mota, que fazia campanha para as próximas eleições, e eu. Surpreendi-me ao encontrar uma variação do samba de coco na ilha, pois os Xocó, como única tribo indígena de Sergipe, em princípio dançariam apenas o Toré em eventos públicos.
O Toré que os Xocó apresentaram em 2000 foi a versão que lhes havia sido ensinada pelos Kariri-Xocó, os quais, por sua vez, participaram de uma cadeia de ensino e aprendizado da dança que tivera indício na década de 1940 (Arruti 1999). As variações locais dessas danças e canções perderam importância, e devido à atenção devotada publicamente ao Toré promovido pelo governo, tornou-se mais difícil analisar a continuidade de seus significados históricos. A noção de que a dança “verdadeira” havia sido perdida e está sendo ressuscitada desvaloriza os sentidos alternativos: o Toré comunica mais do que a indianidade àqueles que o praticavam antes de reivindicar uma identidade indígena. A forma lúdica assumida pela dança nesse caso não necessariamente se opõe ao sagrado. No catolicismo popular sertanejo, os festivais sagrados em homenagem aos santos, por exemplo, são comuns e festejados: “o sagrado também serve para brincar e se divertir e não se caracteriza exclusivamente por atitudes de circunspecção” (Grünewald 2004: 23). De fato, o Toré pode nem mesmo ter origens religiosas, a despeito de seu uso atual como demonstração da religiosidade indígena. É igualmente provável que as pessoas tenham dançado variações do Toré, e foi somente no século XIX, com o desenvolvimento do espiritismo kardecista e a então crescente popularidade das religiões afro-brasileiras, como o candomblé, com seus caboclos e possessões espíritas, que os atributos atuais do Toré foram reificados e utilizados como evidência de uma história indígena autêntica (Grünewald 2004: 25).
Também é importante não subestimar a influência do catolicismo na dança sagrada dos índios (Pomba 2003), o que nos leva novamente à conclusão de que o Toré não era um fenômeno “puro” preexistente, que está sendo “recapturado”. Assim como na Ilha de São Pedro, em todo o Brasil as populações indígenas foram reunidas em missões católicas que se tornavam espaços de trabalho e coexistência de portugueses, índios e africanos. Isso levou à “Difusão do termo toré para designar rituais sincréticos afro-ameríndios populares com possessão” e estendeu-se a ritos designados “torés misturados” em Alagoas e Sergipe (Günewald 2004: 18), precisamente o território dos Kariri-Xocó e Xocó. Quando os observadores ou participantes julgam que qualquer tipo de variação dessas práticas trai uma prática universal autêntica imaginada, ainda que como expediente político, correm o risco de sabotar a capacidade de realizar uma análise mais rica do uso da dança no processo de legalização das identidades. O Toré é uma prática cultural misturada, combinada e inautêntica desde o princípio (Briggs 1960; Hobsbawm e Ranger 1983; T. Turner 1991; Vlastos 1998). Ainda assim, passou a ocupar o espaço legal e simbólico da indianidade nordestina ao mesmo tempo que mudou seu caráter e sentido para as gerações futuras.
Referências
FRENCH, Jan Hoffman. Danças sagradas, encontros secretos e estados alterados. IN: Tornar-se negro ou índio: a legalização das identidades no Nordeste brasileiro. Tradução de Iracema Dulley. Rio de Janeiro: FGV, 2021. p.215-223.
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