BNCC do Ensino Médio para professores de História
Vladimir Lenin | Imagem: Esquerda Online
Colegas, bem-vindos!
Este minicurso é destinado aos professores da Educação Básica que atuam no ensino de História, em especial aqueles que no momento compõem o corpo discente do Mestrado Profissional em Ensino de História na UFS. O foco consiste em localizar a construção da Base Nacional Curricular Comum, no que tange ao componente História, dentro de um cenário internacional de recomposição disciplinar.
Pretendo, ainda, discutir a natureza e função da BNCC como norma pública e, principalmente, discutir formas de interpretá-la de modo a legitimar projetos alternativos de ensino.
O minicurso é realizado a partir de 08 horas síncronas, nos dias 30/07 (tópicos 1, 2 e 3) e 06/08 (tópicos 4 e 5), e atividades assíncronas (12 horas) realizadas entre estas datas. A estratégia é ler e interpretar sistematicamente textos da BNCC e estimular a criação de argumentos que legitimem os projetos alternativos de ensino pensados pelos alunos, a partir da ementa que se segue.
1. A BNCC é um exemplar das “Guerras de História” em torno de políticas públicas educacionais. A BNCC foi construída em ambiente de disputa ideológica e partidária em termos de escolha de teorias da aprendizagem, do currículo, da História. A versão final (a terceira) foi homologada na vigência do golpe liderado por Michel Temer, cujo exemplo notório é a reforma do Ensino Médio efetuada por medida provisória. A derrota da oposição ao golpe e a vitória dos conservadores para a presidência da República praticamente anularam os questionamentos à BNCC, que passou a formatar a estrutura, os fins e o conteúdo das bases curriculares estaduais. O que você sabe a respeito dos projetos BNCC que fracassaram entre 2015 e 2017?
SOBRE A MAIS RECENTE BNCC
[…] Em julho de 2015, no Simpósio Nacional da ANPUH, realizado em Florianópolis, a comunidade de historiadores foi impactada pela notícia da confecção de duas bases nacionais curriculares, na sua parte comum. Uma era efetivada pelo MEC e, outra, pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República. Em ambas, atuavam filiados e militantes da Associação Nacional de História ANPUH-BR. A iniciativa da SAE, no que diz respeito à área de história, era coordenada pela professora Circe Bittencourt (PUC-SP). A BNCC do MEC estava sob a liderança da professora Claudia Ricci (UFMG). Havia, agora, dois partidos da história para o mesmo trabalho, envolvendo interesses de Minas Gerais e de São Paulo.
A inusitada notícia da participação de historiadores da ANPUH na construção de duas prescrições nacionais dentro do mesmo governo foi debatida em mesa redonda, intitulada “Ensino de História e currículos escolares: perspectivas e desafios contemporâneos”[1] e causou ainda mais perplexidade na plateia, porque a direção da ANPUH até então não havia se pronunciado sobre o tema. Nem mesmo a grande maioria dos membros do Grupo de Trabalho “Ensino de História” da ANPUH nacional, tinha clareza sobre a presença de historiadores nas iniciativas da SAE e do MEC.
Da primeira proposta de BNCC pouco se sabe, além do fato de ter gerado um documento, hoje, em mãos da própria Circe Bittencourt e do seu parceiro na empreitada, o professor Paulo Melo (UFPR), o partido que sucumbiu junto à extinção da SAE. Da proposta do MEC – do partido que ganhou “mas não levou” –, existem centenas de comentários formais, gerados em diversos fóruns de diferentes áreas da história e fora dela. É provável que, entre os mais densos inventários, estão o sitio do Laboratório do Ensino de História do Recôncavo da Bahia (https://www3.ufrb.edu.br/lehrb) e os portais da ANPUH (http://site.anpuh.org/) e da BNCC (http://basenacionalcomum.mec.gov.br/) – que registrou passo a passo as operações do MEC, desde agosto de 2015[2]. Neste mês, em Belo Horizonte, foram discutidos, entre outros temas, os modelos produzidos por centenas de propostas curriculares municipais e estaduais, sob a coordenação dos professores (Minas Gerais, 2015).
Minas, portanto, estava no comando da organização da BNCC não apenas para o componente história. Detinha os postos de Secretário de Educação Básica do MEC, professor Manuel Palacios e da Coordenadora dos trabalhos de redação da BNCC – professora Hilda Micarello. A equipe da área de história, como as demais, foi constituída por indicações do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED), da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME). Sob o critério de reunir professores de história e também gestores de secretarias estaduais e municipais da educação, foram convidados os docentes Tatiana Garíglio Clark Xavier (MG/Consed), Maria da Guia de Oliveira Medeiros (RN/Undime), Leila Soares de Souza Perussolo (RR/Undime), Marinelma Costa Meireles (MA/Consed), Rilma Suely de Souza Melo (PB/Undime), Reginaldo Gomes da Silva (AP/Consed) Antônio Daniel Marinho Ribeiro (AL/Consed). Quanto aos professores formadores, a própria Claudia Ricci (2015, p.289-90) detalha os procedimentos de escolha: [continua].
Texto para consulta
Sobre o componente curricular História na BNCC - Renato Janine Ribeiro
2. A BNCC do Ensino Médio é uma Portaria (n.1570, 21/12/2017/MEC). Como Portaria, ela é a tradução de normas hierarquicamente superiores – Constituição (1988), LDB (1996), DCN (2013), DHDN (2013) e de protocolos internacionais subscritos pelo Brasil (Agenda 2030/ONU). É necessário conhecer, então, os valores, princípios e direitos fundamentais desses fundamentos e modo como são expressos nos textos descritivos e tópicos. A BNCC incorpora literalmente a ideia de que o valor orienta a ação (p.8). Quais são os valores/direitos da BNCC que estão insertos na legislação que a fundamenta?
[...] A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996)1, e está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN)2.
Referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e das redes escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e das propostas pedagógicas das instituições escolares, a BNCC integra a política nacional da Educação Básica e vai contribuir para o alinhamento de outras políticas e ações, em âmbito federal, estadual e municipal, referentes à formação de professores, à avaliação, à elaboração de conteúdos educacionais e aos critérios para a oferta de infraestrutura adequada para o pleno desenvolvimento da educação.
Nesse sentido, espera-se que a BNCC ajude a superar a fragmentação das políticas educacionais, enseje o fortalecimento do regime de colaboração entre as três esferas de governo e seja balizadora da qualidade da educação. Assim, para além da garantia de acesso e permanência na escola, é necessário que sistemas, redes e escolas garantam um patamar comum de aprendizagens a todos os estudantes, tarefa para a qual a BNCC é instrumento fundamental. [...] (Brasil, sd. p.7-8).
Textos básicos
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Plano Nacional de Educação (HTML) | PDF
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica
Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais
Base Nacional Curricular Comum
3. A BNCC do Ensino Médio é uma norma produzida no Estado democrático de direito? Considerando o contexto de produção (ambiente democrático), documentos educacionais apresentam imperfeições explícitas e implícitas, fruto da negociação e/ou do bom senso do legislador. A BNCC, contudo, defende a lógica ideia de que as proposições que veiculam conhecimentos, valores e habilidades sejam desdobradas no planejamento das três etapas da educação básica. Para bem cumprir esse objetivo, devemos conhecer as suas imperfeições: quais são as lacunas, ambiguidades e contradições insertas na BNCC do Ensino médio em seus textos descritivos?
LER COMO UM PROFISSIONAL DO DIREITO
Ler como um profissional historicista da História significa decodificar signos, cumprindo a meta protocolar mais requerida em seu trabalho nos últimos cento e quando o seu objeto material são as fontes históricas escritas: conhecer “o que disse o autor” e conhecer o que “quis dizer o autor” (ou, numa acepção mais recente, “o que fez o autor” quando enunciou tal frase ou palavra”).
O nome comum para esses meio e fim é “interpretação”, significada como “entendimento” [1] e/ou “explicação” e/ou “tradução” [2] e/ou “reflexão” (sobre a pretensão de verdade e cientificidade).[3] As habilidades requeridas a essa tarefa são: identificar autoria, proveniência e datação cronológica; determinar linguisticamente e psicologicamente o sentido das palavras e das frases; atribuir valor ao escrito sob o ponto de vista da veracidade e da exatidão. O nome erudito para o domínio que elege esses meio e fim como objeto é “hermenêutica”.
Antes do século XIX, vigoravam “hermenêuticas” (assim, no plural) para a interpretação dos tipos legal, bíblico e filológico. Com o trabalho de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), esses domínios foram reunidos sob o título de uma hermenêutica geral cuja meta era compreender os discursos escritos por outrem, julgá-los corretamente e estabelecer a autenticidade dos textos. [3] Com Schleiermacher, abriu-se a estrada para a teoria geral da interpretação (dos textos, das coisas, do mundo e da vida).
No século XX, essa teoria geral foi recuperada por vários autores e aplicada a diferentes domínios acadêmicos, como a História, incluindo domínios a ela preexistentes, como o Direito. Assim, profissionais da História acolheram assertivas de Schleiermacher, admitindo, por exemplo, que o significado dos textos é objetivo (visto a olhos nus) e subjetivo (intuído a partir dos interesses de quem lê); o significado dos textos é linguístico (está nas letras e palavras) e é psicológico (está nas intenções do autor); o significado da parte do texto (palavra, por exemplo) depende do todo do texto (das outras palavras e frases que lhe seguem e lhe antecedem) e ambos os processos recebem o nome de círculo hermenêutico.
Consequentemente, para os historiadores, o ato de interpretar textos (e o passado é um texto construído a partir de fontes históricas) pôde envolver, no século XIX, a apreensão de “forças criadoras da história” (mecânicas, fisiológicas e psicológicas), “habilidades”, “sensibilidades”, “pendores” e “paixões” e deixar-se guiar pelas “ideias”, individualidades destacadas e valores (como a “beleza”, a “verdade” e a “justiça”). [4]
Os profissionais do direito também aplicaram assertivas e procedimentos de Schleiermacher e dos seus desenvolvedores. Mas o fizeram (e o fazem) com muito mais liberalidade. Isso ocorre por causa da natureza própria dos domínios da História e do Direito, expressa principalmente em termos de meios, fins e resultados do trabalho profissional. Profissionais da História, por exemplo, se propõem a interpretar as relações que as pessoas entretêm com o tempo, mediante a interpretação de testemunhos diretos ou indiretos, descrevendo atores, acontecimentos e processos e apontando, motivações, causas possíveis, prováveis ou certas.
As teses e narrativas que veiculam o trabalho do profissional da História têm o poder de orientar a vida dos seus leitores, no curto ou no longo prazo. Profissionais do Direito, contudo, não apenas orientam a ação individual do leitor. Não apenas dizem o que aconteceu com base na em um grupo limitado de fontes, deixando o leitor livre para corroborar ou contestar os meios que empregou na interpretação das fontes. Eles definem trajetórias dos seus leitores/usuários/consumidores, sentenciando: “À luz do Direito, você fez isso e, provavelmente, será inocentado” ou “Se você agir assim, de agora em diante, à luz do Direito, você sofrerá as penas da lei.” Profissionais do direito, em síntese, decidem sobre o passado, o presente e o futuro com desdobramentos objetivos sobre o presente e o futuro de quem os provoca ou os contrata. Eles tem o poder de orientar positivamente (como o historiador), mas têm também o poder de interditar impositivamente a ação de indivíduos e de coletivos.
Além dessas diferenças, distinções significativas para esta aula podem ser observadas entre os próprios profissionais de História. Um profissional de História que atua no ensino superior, que interpreta certo passado, após ter concluído seu curso de doutorado, com o objetivo de planejar uma aula ou de publicar um artigo em periódico acadêmico, tem pouco a prestar contas à sua corporação. Seu compromisso metodológico (ético) principal é consigo mesmo. A máxima punição que resulta do seu trabalho é não ser lido ou bem-visto como docente. já que os dispositivos jurídicos que envolvem o seu trabalho são deliberadamente desconhecidos ou descumpridos no cotidiano (a exemplo das ementas de disciplina e das orientações de planejamento, ensino e avaliação contidas no Projeto Político Pedagógico do seu curso).
Um profissional de História que atua na educação básica, ao contrário, presta contas a si mesmo, ao coordenador pedagógico, aos pais ou responsáveis pelos alunos, aos alunos, à administração da Escola e, em sentido mais geral, ao patrão (o Estado ou a empresa) responsável por sua remuneração. Sua vida profissional está enredada em dispositivos jurídicos constitucionais e infraconstitucionais dos quais destaco, aqui, os efetivamente cobrados: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Reforma do Ensino Médio e a Base Nacional Curricular Comum.
Esse arrazoado me leva a afirmar que a hermenêutica ensinada pelo profissional de História do ensino superior é insuficiente à sobrevivência do professor de História da educação básica. Para interpretar e aplicar normas, profissionais da educação básica devem lançar mão de alguns princípios e estratégias da hermenêutica jurídica ou, como registrado no título, devem aprender a ler como um profissional do Direito. [Continua]
4. A BNCC do Ensino Médio apresenta as “aprendizagens essenciais” [“competências” e “habilidades”] que cada área do conhecimento deve prover. As “competências gerais da educação básica” são formalmente traduzidas [ou reafirmadas (p.471)] em “itinerários formativos” (dos quais não trataremos aqui) e “competências específicas” de área. As competências de área, por sua vez, traduzem e integram formalmente as [competências específicas] e de “componentes” curriculares ou “disciplinas” escolares. No nosso caso, a área “Ciências Humanas e Sociais Aplicadas” integra História, Geografia, Sociologia e Filosofia. Considerando que a BNCC é norma para o planejamento das atividades de Ensino de História (enquanto ele ainda existir nas redes), questiono: quais finalidades a área deve cumprir em consonância com as finalidades gerais do Ensino Médio? Quais valores, conhecimentos e habilidades do componente/disciplina História estão presentes (implícita e explicitamente) na apresentação da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (BNCC/Tópico 5.4)?
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5. A BNCC acolhe projetos alternativos de ensino, desde que você aprenda a interpretá-la. É contraproducente pedir a suspensão da vigência da BNCC ou gastar meses escrevendo sobre os seus defeitos. Se você tem um projeto alternativo de ensino e quer vê-lo implantado legitimamente, aprenda com os profissionais do Direito os modos de interpretar as incoerências, lacunas e ambiguidades da BNCC. Que valores, princípios e direitos fundamentais da Constituição, abonados pela BNCC, legitimam a implantação do seu projeto? Como justificar uma ideia de desenvolvimento humano, de aprendizagem histórica ou de progressão histórica, empregando os próprios termos nos quais a BNCC se sustenta? Como justificar a introdução de novas finalidades e conteúdo para o ensino de História no Ensino Médio, apesar de a própria BNCC não contemplar explicitamente este componente curricular? Que “competências gerais”, “competências específicas de área”, “habilidades específicas de área” acolhem as expectativas de aprendizagem (ou objetivos de aprendizagem) que você estabeleceu alternativamente para o seu projeto de intervenção?
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