Depois de quatro semanas de curso, espero que vocês já tenham percebido que podemos encarar o significado da expressão “aprendizagem histórica” sob várias dimensões: 1. mudança de comportamento à luz das capacidades gerais de um ser humano típico-ideal (pensar, agir e sentir, por exemplo); 2. mudança de comportamento à luz de competências profissionais históricas, refletidas em componentes curriculares (argumentar a partir de fontes criticadas); 3. mudança de comportamento observável em nível molecular e celular que excede o nível psicológico (uma alteração química provocada por ligações neuronais).
As propostas de Paulo Freire, Jörn Rüsen e Kieran Egan pertencem ao primeiro tipo. São fundamentadas, prioritariamente, sobre princípios de saberes universalizantes, como a Filosofia Especulativa de I. Kant, G. Hegel e K. Marx e a Antropologia estruturalista de C. Levi Strauss. As propostas de Mario Carretero, nosso teórico do dia, pertencem ao primeiro tipo mudança (capacidades gerais do ser humano), mas também ao segundo tipo de mudança de comportamento (competências profissionais históricas). Como consequência, recuperam algumas teses de Epistemologia da História, combinadas a proposições da Metodologia [geral] do Ensino e da Psicologia do Desenvolvimento.
Declinado o momentâneo perfil de Carretero, é provável que as questões levantadas acerca dos saberes que incidem sobre a ideia de aprendizagem histórica sejam respondidas com maior precisão, na aula de hoje. O grande exemplo é a teoria de Mario Carretero, que distribui a sua ideia de aprendizagem histórica em três clássicos componentes do currículo: os saberes de o “quê” ensinar, do “como” ensinar e do “a quem” ensinar.
1. Os primeiros estudos sobre aprendizagem histórica
O “momentâneo” do perfil de Carretero tem uma explicação. Os textos básicos sobre as ideias de aprendizagem foram selecionados entre os escritos dos anos 1990. Nesse período, Carretero já se dividia entre o ensino superior na Espanha e na Argentina, difundindo a sua versão sobre o modo construtivista de conhecer o mundo, com as ferramentas cognitivas das História, das Ciências Sociais e das Ciências Naturais.
Naquele período, Carretero já lançava mão da pesquisa acadêmica sobre aprendizagem histórica, focando em questões específicas, como o ensino-aprendizagem da causalidade, da resolução de problemas e o desenvolvimento da competência narrativa. Na nossa década, o autor chega a traduzir “aprendizagem histórica” por “pensamento histórico” e “consciência histórica” e a empregar perspectivas teóricas bastante críticas do construtivismo, como as Sam Wineburg, Keith Barton e de Kieran Egan.
Contudo, é a sua versão construtivista e sintética de aprendizagem histórica que queremos destacar na aula de hoje. A apropriação de resultados de pesquisa e de orientação teórica de autores Peter Lee e K. Egan e a sua preocupação recente com a contradição fundamental sob a qual se erigiram as finalidades do componente curricular História no Ocidente – entre “a racionalidade crítica do Iluminismo e o emocionalismo identitário do Romantismo” (que se desdobra na construção da alteridade – identidades além do “nós” interiorizado como “nacional”), vocês podem explorar a partir das coletânea do próprio Carretero, disponibilizadas ao final da aula 1 e da aula 4 e o livro intitulado Constructing patriotism (Carretero, 2006).
2. Uma Epistemologia historicista
Para demonstrar a importância da Epistemologia histórica na formatação de sua teoria da aprendizagem, Carretero cita autores que hoje consideramos clássicos nos cursos de licenciatura em História: Raymond Aron, Louis Mink, Jürgen Habermas e Edward Caar.
É evidente que essas pessoas pensam coisas diferentes sobre passado, ciência e vida. Mas Carretero tenta reduzir as teses autores ao essencial: Ciência da História produz ferramentas cognitivas que nos possibilitam conhecer o passado em sua historicidade, necessariamente mediado por valores cultivados pelo historiador (subjetividade inerente), que interferem na seleção e/ou construção de fontes e dos acontecimentos.
O conhecimento histórico, em síntese, não reproduz integralmente o acontecido, como sinalizavam algumas concepções “positivistas”. A ciência da História, para Carretero, ocupa-se da compreensão e da representação, sobretudo, escrita do passado em sua historicidade, estimulada pela experiência do presente de quem interroga aquele passado. A ciência da História produz um conhecimento singular – “ferramentas cognitivas” – que deve ser “ensinado” aos alunos para que eles próprios possam compreender” o passado de modo não “positivista” (para continuar com a expressão que ele emprega). Exemplo dessa ferramenta (veremos adiante), é a empatia.
3. Uma teoria genética do desenvolvimento (uma Epistemologia naturalista)
A Epistemologia Histórica é empregada para definir o que se deve aprender: habilidades, valores, conhecimentos que possibilitam uma compreensão historicista do passado. Mas é importante saber das limitações cognitivas dos alunos, em termos psicológicos.
Nesse ponto, o epistemólogo Jean Piaget (que fora reprovado como teórico do ensino de História) é recuperado (agora) na condição de teórico do desenvolvimento humano. Carretero não vê outra solução senão abonar a teoria dos estágios do filósofo suíço. E aqui, também, percebemos o sincretismo entre uma epistemologia historicista e uma epistemologia típica das ciências físico-naturais do século XIX, já que para Carretero, a aprendizagem sofisticada do passado somente seria alcançada no estágio formal, onde os alunos possuíssem:
Essa apropriação logo se dissolve adiante quando ela afirma: “[…] el conocimiento histórico y social de cierta complejidad requiere una consideración que lo hace diferente del conocimiento que procede de las Ciencias Naturles, y […] dichas características deverían tenerse en cuenta a la hora de enseñar las disciplinas que nos ocupan.”
Isso significa dizer que o professor de história focado na aprendizagem histórica historicista deve desenvolver nos alunos as habilidades empregadas pelos profissionais da história em seu trabalho de compreensão científica do passado, criar estratégias de retenção, recuperação e aplicação . Entre essas habilidades, às vezes sintetizadas na expressão “método histórico”, estão: crítica de fontes (autenticidade e plausibilidade), a percepção de “regularidades” nos acontecimentos e a consequente aplicação de “modelos gerais”, a identificação do caráter narrativo do conhecimento histórico-científico (agentes, ação, sequência e desfecho), percepção da existência de diferentes e válidos modos de contar uma história e a identificação das intensões dos protagonistas da história (explicação).
4. Uma ideia sincrética de aprendizagem histórica
Acima, afirmei que Carretero constituía sua ideia de Ensino e História e, consequentemente, de aprendizagem histórica sob três domínios de investigação: a Epistemologia histórica, a Teoria genética do desenvolvimento humano e a Metodologia de Ensino. Infelizmente, ele não teoriza sobre o terceiro componente. E isso nos leva a encerrar os comentários sobre os fundamentos e avançar para as sínteses das suas ideias sobre aprendizagem (em geral) e aprendizagem histórica.
As ideias apresentadas neste tópico devem ser compreendidas em seu contexto de produção. Nos anos 1990, Carretero está preocupado com a incipiência da pesquisa experimental sobre a aprendizagem histórica. Ele foca, por exemplo, na necessidade de diagnosticar, nos modos como são construídos e nas possibilidades de modificar (ou não) as ideias “prévias”, “espontâneas”, “preconceituosas”, “errôneas” dos alunos sobre o passado; de identificar graus de complexidade e planejar combinações e hierarquias entre conceitos substantivos (feudalismo, Revolução etc.) para facilitar a sua compreensão; e na ampliação do conhecimento sobre a ciência histórica (tempo, narração etc.).
É possível, pensa o nosso autor (na passagem dos anos 1980 para os anos 1990) que o avanço no conhecimento sobre esses três aspectos (conhecimentos prévios, conteúdos substantivos e conteúdos metahistóricos) possa melhorar a qualidade com a qual os alunos ampliam o seu nível de informação sobre o passado. Foi com base nessas preocupações que selecionamos algumas conclusões de Carretero no que diz respeito às definições de aprendizagem e aprendizagem histórica.
Aprender é modificar esquemas de representação do mundo
As ideias de aprendizagem e aprendizagem históricas de Carreteiro são devidas às noções de indivíduo, conhecimento e modo de produção do conhecimento construtivistas. Embora ele fale de “construtivismos” – referentes às ideias de L. Vygotsky, J. Piaget e D. Ausubel, sua visão sobre o aprender é muito clara ao cunhar princípios gerais adjetivados de “construtivistas.
Que é construtivismo? Basicamente se pode dizer que é a ideia que sustenta que o indivíduo – tanto nos aspectos cognitivos e sociais do comportamento como nos afetivos – não é um mero produto do ambiente nem um simples resultado de suas disposições internas, mas, sim, uma construção própria que vai se produzindo, dia a dia, como resultado da interação entre esses dois fatores. Em consequência, segundo a posição construtivista, o conhecimento não é uma cópia da realidade, mas, sim, uma construção do ser humano. Com que instrumentos a pessoa realiza tal construção? Fundamentalmente com os esquemas que já possui, isto é, como o que já construiu em sua relação com o meio que a rodeia.
Observem que nessa definição por negação (negação de radicais comportamentalismos e cognitivismos) estão conceitos muito importantes para o entendimento da sua ênfase no conteúdo conceitual do ensino de história (conceito e princípios com os quais os alunos constroem representações sobre o passado) e, correlatamente, as bases para a negação de uma epistemologia positivista da ciência Histórica.
Isso veremos adiante. Aqui, nos interessa fixar essa ideia geral de aprendizagem, a partir do conceito de “esquema” ou “representação mental”. Para Carretero, o nosso conhecimento do mundo é indireto. Conhecemos o mundo mediante representações das coisas – de como as coisas são (para que servem, de quais elementos são constituídas, com qual dinâmica se desenvolvem etc.). Aprender é representar o mundo de maneira progressiva e qualitativamente diferente, ou seja, é modificar esquemas de representação do mundo, de modo que, em muitos casos (no conhecimento escolar, por exemplo), o esquema anterior é incorreto, quando comparado ao esquema posterior. Assim, os esquemas de conhecimento do mundo baseados no estágio concreto são incorretos ou menos sofisticados em seus resultados, quando comparados aos esquemas de conhecimento do mundo baseados no estágio formal.
Essa ideia se aplica às crianças e aos adultos. A representação da Terra como um objeto plano é um conhecimento incorreto, enquanto a representação da Terra com um objeto esférico é um conhecimento correto. É correto porque depende da ideia de prova e da habilidade de prever (hipótese), comparar (experimentar) e inferir (demonstrar) que a terra é esférica. Essas habilidades não estão presentes no raciocínio anterior.
Aprender é produzir sentido qualitativamente melhor sobre o passado
A ciência histórica fornece elementos conceituais ao professor de História que quer ver o seu aluno compreender o passado de modo qualitativamente superior, ou seja, atribuindo significado – o mais próximo possível – ao tempo em que os acontecimentos ocorreram, consolidá-lo e empregá-lo.
A aprendizagem histórica, por outro lado, depende do conhecimento que o aluno possui sobre o seu presente. Aí entram os saberes (descritivos) da Sociologia.
[…] para compreender la noción de democracia defendida por la Revolución Francesa frente al Antiguo Régimen resulta esencial que los alumnos compreendan la estructura básica de las democracias actuales. De esa manera les será posible entender en qué sentido las ideas de la ilustración eran revolucionarias.
Aprender é modificar o comportamento ideológico
Aprender é mudar comportamento, mas de dois tipos especiais: os comportamentos conceitual e valorativo. Nesse sentido, aprendizagem histórica é um processo de alteração do valor ou da imagem que o aluno cultiva ou retém sobre determinado conceito, tese, acontecimento ou processo.
Usando exemplos que nos interessam, podemos concluir que aprendizagem histórica é o processo de alteração do valor ou da imagem que os alunos retêm ou cultivam sobre o conceito de família (da nuclear aos novos arranjos) e sobre a proposição de que a diminuição da menoridade penal reduz as taxas de criminalidade no país (da defesa à ponderação crítica).
Seguindo o mesmo paralelismo, a aprendizagem histórica é o processo de alteração do comportamento indiferente, frente à informação de que ditadura militar ocorreu no Brasil e de que os direitos humanos são uma conquista civilizatória de três séculos, aproximadamente (ao contrário de uma invenção esquerdista de proteção aos delinquentes).
Aprender é compreender a mudança com o emprego de habilidades lógico-matemáticas
Aprende história quem visita o passado e o compreende como se estivesse em seu próprio país, relacionando-se com os seus atores, ações, cenários e motivações de modo empático. Dizendo de outro modo, aprende história que entende “as motivações e o sentido histórico de ideias e decisões estabelecidas em outras épocas” sem cometer anacronismos.
Aprende história (complementamos), quem emprega essa capacidade cognitiva emocional de “se ver do ponto de vista de outrem”, de “ver os outros do ponto de vista de outrem” ou para “ver os outros do ponto de vista deles mesmos” (Houaiss, sd.).
Aprende história, por fim, quem percebe que a mudança dos acontecimentos ocorre em diferentes ritmos e durações, quem situa adequadamente os acontecimentos em uma escala temporal e que estabelece conexões entre acontecimentos de natureza diferente, situados no mesmo ponto de uma escala temporal.
Essa última concepção de aprendizagem histórica tem implicações para o planejamento do ensino de História, como demonstrado na sequência:
Atividades para a efetivação da aprendizagem histórica dos(as) aluno(as)
[…] O professor deveria levar em conta que, cada vez que utiliza um conceito abstrato, os alunos podem estar entendendo em termos concretos e que, por conseguinte, deve “ir e vir”, do abstrato ao concreto e vice-versa, continuamente, em aula, mostrando como é possível chegar a tal conceito a partir de múltiplos exemplos específicos. Desse modo, a professora pode buscar, nas avaliações que faça de seus alunos, um diagnóstico da maneira em que eles fazem a representação a realidade social e [fazer] uma representação mental de como estão compreendendo a situação que pretende descrever e o tipo de relações que tenta estabelecer e se tudo o que está descrevendo conceitualmente está sendo reinterpretado em termos concretos pelo aluno.
Proponha exercícios de empatia e simulação através dos quais seus alunos possam situar-se nos papeis de personagens históricos. Assim, por exemplo, o aluno pode repetir o ponto de vista de um adversário num debate, representar os argumentos de uma pessoa no passado num jogo de papéis, ou explicar como acredita que se sinta uma pessoa a quem ele ou ela tenha afetado em algum conflito que se tenha apresentado entre ambos.
[Proponha] a realização de exercícios de ordenamento dos fatos históricos, utilizar tabelas de tempo para fazer com que seus alunos coloquem nelas todos os acontecimentos que vão estudando, assim como tabelas comparativas de tempo que lhes permitam compreender o que está acontecendo num determinado lugar enquanto em outro ocorram, simultaneamente, outras coisas. […]
Desse modo, [os alunos] deveriam pensar que há mudanças em suas próprias vidas que têm ritmos diferentes e tentar generalizar estes fenômenos às situações da história. Nesse sentido, pergunta-se, por exemplo, que costumes ou valores permaneceram iguais ao longo dos séculos e quais mudam permanentemente. (Carretero, 1993, p.81, p.85-86).
5. Uma defeito na teoria da aprendizagem de Carretero
As várias definições de aprendizagem aqui listadas tem a vantagem de fácil adequação às mais distintas situações comunicativas nas quais os professores de História se envolvem diariamente. Defeitos que minimizem a importância das concepções de Carretero, portanto, são irrelevantes.
Contudo, para efeito de coerência teórica (se alguém se interessar a respeito), devemos esclarecer que Carretero faz uma imagem ingênua da oposição historicismo/cientificismo (que ele chama de positivismo), revelada, principalmente, na apresentação das habilidades e conceitos (às vezes, princípios) que fundamentam as bases da sua ideia de aprendizagem histórica: a Epistemologia/Metodologia histórica e a Psicologia do Desenvolvimento. Ele crê expulsar positivismo da Epistemologia Histórica, mas esse mesmo positivismo volta na forma de habilidades típicas das ciências naturais, que caracterizam a produção do conhecimento falso e verdadeiro empregado como parâmetro para a escolha do conteúdo substantivo disciplinar. Ciência, neste caso (e para Carretero) é, sobretudo, demonstração e previsão, ou seja, tudo o que a vulgata historicista que ele lança mão gostaria de se afastar.
Referências
CARRETERO, Mario. Introdução. In: Constructing patriotism: Teaching History and memories in Global Words. Charlotte: IAP, 2011. p.xxiii-xxxv.
CARRETERO, Mario. O ensino da História e das Ciências Sociais. In; Construtivismo e educação. 2ed. Porto Alegre: Artmed, 2002. P.75-90.
CARRETERO, Mario. Perspectivas disciplinares, cognitivas y didácticas en la enseñanza de las Ciencias Sociales y la Historia. CARRETERO, Mario; JACOTT, Liliana; LIMÓN, Margatita; LÓPEZ-MANJÓN, Asunción. Construir y enseñar las Ciencias Sociales y la Historia. Buenos Aires: Aique, 1995. p.15-32.
CARRETERO, Mario. Representação e aprendizagem nas narrativas históricas. In: CARRETERO, Mario; CASTORINA, José A. (Org.) Desenvolvimento cognitivo e educação: Processos do conhecimento e conteúdos específicos. Porto Alegre: Penso, 2014. p.203-222. [Primeira edição em espanhol – 2012].
CARRETERO, Mario. Teaching History Master Narratives: Fostering Imagi-Nations. In: CARRETERO, Mario; BERGER, Stefan; GREVER, Maria (Ed). Palgrave Handbook of Research in Historical Culture and Education. London: Plagrave/McMillan, 2017. p.511-528.
CARRETERO, Mario; LIMÓN, Margarita. Construcción del conocimiento y enseñanza de las Ciencias Sociales y la Historia. In: CARRETERO, Mario; JACOTT, Liliana; LIMÓN, Margarita; LÓPEZ-MANJÓN, Asunción. Construir y enseñar las Ciencias Sociales y la Historia. Buenos Aires: Aique, 1995. p.33-62.
VOSS, James F.; CARRETERO, Mario. International Review of History Education. V.2, Learning and Reasoning in History. London: Routledge/Falmer, 1998.
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