A metodologia da Interpretação constitucional tradicional (Excertos) | Luís Roberto Barroso

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Luís Roberto Barroso | Imagem: JP

Um típico operador jurídico formado na tradição romano-germânica, como é o caso brasileiro, diante de um problema que lhe caiba resolver, adotará uma linha de raciocínio semelhante à que se descreve a seguir. Após examinar a situação de fato que lhe foi trazida, irá identificar no ordenamento positivo a norma que deverá reger aquela hipótese. Em seguida, procederá a um tipo de raciocínio lógico, de natureza silogística, no qual a norma será a premissa maior, os fatos serão a premissa menor e a conclusão será a consequência do enquadramento dos fatos à norma. Esse método tradicional de aplicação do Direito, pelo qual se realiza o enquadramento dos fatos na previsão da norma e pronuncia-se uma conclusão, denomina-se método subsuntivo.

Esse modo de raciocínio jurídico utiliza, como premissa de seu desenvolvimento, um tipo de norma jurídica que se identifica como regra. Regras são normas que especificam a conduta a ser seguida por seus destinatários. O papel do intérprete, ao aplicá-las, envolve uma operação relativamente simples de verificação da ocorrência do fato constante do seu relato e de declaração da consequência jurídica correspondente. É reservado ao intérprete um papel estritamente técnico de revelação do sentido de um Direito integralmente contido na norma legislada. […]

Princípios instrumentais de interpretação constitucional

Em razão das especificidades das normas constitucionais, desenvolveram-se ou sistematizaram-se categorias doutrinárias próprias, identificadas como princípios específicos ou princípios instrumentais de interpretação constitucional. […] Os princípios instrumentais de interpretação constitucional constituem premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas que devem anteceder, no processo intelectual do intérprete, a solução concreta da questão posta. Nenhum deles se encontra expresso no texto da Constituição, mas são reconhecidos pacificamente pela doutrina e pela jurisprudência. A seguir, breve comentário objetivo acerca de cada um deles 57.

1. Princípio da supremacia da Constituição

O poder constituinte cria ou refunda o Estado, por meio de uma Constituição. Com a promulgação da Constituição, a soberania popular se converte em supremacia constitucional. Do ponto de vista jurídico, este é o principal traço distintivo da Constituição: sua posição hierárquica superior às demais normas do sistema. A Constituição é dotada de supremacia e prevalece sobre o processo político majoritário – isto é, sobre a vontade do poder constituído e sobre as leis em geral – porque fruto de uma manifestação especial da vontade popular, em uma conjuntura própria, em um momento constitucional 58. […]

Como consequência do princípio da supremacia constitucional, nenhuma lei ou ato normativo – a rigor, nenhum ato jurídico – poderá subsistir validamente ser for incompatível com a Constituição. Para assegurar esta superioridade, a ordem jurídica concebeu um conjunto de mecanismos destinados a invalidar e/ou paralisar a eficácia dos atos que contravenham a Constituição, conhecidos como controle de constitucionalidade. Assim, associado à superlegalidade da Carta Constitucional, existe um sistema de fiscalização judicial da validade das leis e atos normativos em geral. No Brasil, esse controle é desempenhado por meio de dois ritos diversos: (i) a via incidental, pela qual a inconstitucionalidade de uma norma pode ser suscitada em qualquer processo judicial, perante qualquer juízo ou tribunal, cabendo ao órgão judicial deixar de aplicar a norma indigitada ao caso concreto, se considerar fundada a arguição; e (ii) a via principal, pela qual algumas pessoas, órgãos ou entidades, constantes do art. 103 da Constituição Federal, podem propor uma ação direta perante o Supremo Tribunal Federal, na qual se discutirá a constitucionalidade ou inconstitucionalidade, em tese, de determinada lei ou ato normativo.

2. Princípio da presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos

As leis e atos normativos, como os atos do Poder Público em geral, desfrutam de presunção de validade. Isso porque, idealmente, sua atuação se funda na legitimidade democrática dos agentes públicos eleitos, no dever de promoção do interesse público e no respeito aos princípios constitucionais, inclusive e notadamente os que regem a Administração Pública (art. 37) 59.

Pois bem. Em um Estado constitucional de direito, os três Poderes interpretam a Constituição 60. A presunção de constitucionalidade, portanto, é uma decorrência do princípio da separação de Poderes e funciona como fator de autolimitação da atuação judicial. Em razão disso, não devem juízes e tribunais, como regra, declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo quando: (i) a inconstitucionalidade não for patente e inequívoca, existindo tese jurídica razoável para preservação da norma61; (ii) seja possível decidir a questão por outro fundamento, evitando–se a invalidação de ato de outro Poder; e (iii) existir interpretação alternativa possível, que permita afirmar a compatibilidade da norma com a Constituição.

3. Princípio da interpretação conforme a Constituição

A interpretação conforme a Constituição, categoria desenvolvida amplamente pela doutrina e pela jurisprudência alemãs, compreende sutilezas que se escondem por trás da designação truística do princípio. Destina-se ela à preservação da validade de determinadas normas, suspeitas de inconstitucionalidade, assim como à atribuição de sentido às normas infraconstitucionais, da forma que melhor realizem os mandamentos constitucionais. Como se depreende da assertiva precedente, o princípio abriga, simultaneamente, uma técnica de interpretação e um mecanismo de controle de constitucionalidade.

Como técnica de interpretação, o princípio impõe a juízes e tribunais que interpretem a legislação ordinária de modo a realizar, da maneira mais adequada, os valores e fins constitucionais. Vale dizer: entre interpretações possíveis, deve-se escolher a que tem mais afinidade com a Constituição.

Como mecanismo de controle de constitucionalidade, a interpretação conforme a Constituição permite que o intérprete, sobretudo o tribunal constitucional, preserve a validade de uma lei que, na sua leitura mais óbvia, seria inconstitucional. Nessa hipótese, o tribunal, simultaneamente, infirma uma das interpretações possíveis, declarando-a inconstitucional, e afirma outra, que compatibiliza a norma com a Constituição. Trata-se de uma atuação “corretiva”, que importa na declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto 62 e tem por limite as possibilidades semânticas do texto.

4. Princípio da unidade da Constituição

A Constituição é o documento que dá unidade ao sistema jurídico, pela irradiação de seus princípios aos diferentes domínios infraconstitucionais. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, impondo ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas jurídicas. A superior hierarquia das normas constitucionais impõe-se na determinação de sentido de todas as normas do sistema.

O problema maior associado ao princípio da unidade não diz respeito aos conflitos que surgem entre as normas infraconstitucionais ou entre estas e a Constituição, mas sim às tensões que se estabelecem dentro da própria Constituição. De fato, a Constituição é um documento dialético, fruto do debate e da composição política. Como consequência, abriga no seu corpo valores e interesses contrapostos. Nesses casos, como intuitivo, a solução das colisões entre normas não pode se beneficiar, de maneira significativa, dos critérios tradicionais 63.

Portanto, na harmonização de sentido entre normas contrapostas, o intérprete deverá promover a concordância prática 64 entre os bens jurídicos tutelados, preservando o máximo possível de cada um. Em algumas situações, precisará recorrer a categorias como a teoria dos limites imanentes 65: os direitos de uns têm de ser compatíveis com os direitos de outros. E em muitas situações, inexoravelmente, terá de fazer ponderações, com concessões recíprocas e escolhas.

5. Princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade

[…] Trata-se de um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como a medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema.

Em resumo sumário, o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: (i) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); (ii) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação do excesso); (iii) os custos superem os benefícios, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito). O princípio pode operar, também, no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, fazendo assim a justiça do caso concreto.

6. Princípio da efetividade

[…] Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza, portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social 67. O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não autoaplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador. (p.239-243).

Notas

  1. Esta foi a ordenação da matéria proposta em nosso Interpretação e aplicação da Constituição, cuja 1ª edição é de 1995. Autores alemães e portugueses de grande expressão adotam sistematizações diferentes, mas o elenco que será apresentado parece o de maior utilidade, dentro de uma perspectiva brasileira de concretização da Constituição.
  2. V. ACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano: fundamentos do direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 371 e ss.
  3. Trata-se, naturalmente, de presunção iuris tantum , que admite prova em contrário. O ônus de tal demonstração, no entanto, recai sobre quem alega a invalidade ou, no caso, a inconstitucionalidade.
  4. De fato, a atividade legislativa destina-se, em última análise, a assegurar os valores e a promover os fins constitucionais. A atividade administrativa, por sua vez, tanto normativa quanto concretizadora, igualmente se subordina à Constituição e destina-se a efetivá-la. O Poder Judiciário, portanto, não é o único intérprete da Constituição, embora o sistema lhe reserve a primazia de dar a palavra final. Por isso mesmo, deve ter uma atitude de deferência para com a interpretação levada a efeito pelos outros dois ramos do governo, em nome da independência e harmonia dos Poderes.
  5. Consoante jurisprudência firme do STF, a inconstitucionalidade nunca se presume. A violação há de ser manifesta (RTJ 66:631, Rp 881/MG, rel. Min. Djaci Falcão), militando a dúvida em favor da validade da lei.
  6. Figura próxima, mas não equivalente, é a da interpretação conforme a Constituição para declarar que uma norma válida e em vigor não incide sobre determinada situação de fato.
  7. Em primeiro lugar, e acima de tudo, porque inexiste hierarquia entre normas constitucionais, embora se possa cogitar de uma certa hierarquia axiológica. Não é possível afirmar a inconstitucionalidade de disposições fruto da mesma vontade constituinte originária. Por essa razão, uma norma constitucional não pode ser inconstitucional em face de outra. A matéria é pacífica entre nós. V. STF, DJU, 10 maio 1996, ADIn 815-3/DF, rel. Min. Moreira Alves, e, na mesma linha, STF, DJU, 9 fev. 2006, ADInMC 3.300/DF, rel. Min. Celso de Mello. O critério cronológico é de valia apenas parcial. É que, naturalmente, as normas integrantes da Constituição originária são todas promulgadas na mesma data. Logo, em relação a elas, o parâmetro temporal é ineficaz. Restam apenas as hipóteses em que emendas constitucionais revoguem dispositivos suscetíveis de serem reformados, por não estarem protegidos por cláusula pétrea. Também o critério da especialização será insuficiente para resolver a maior parte dos conflitos porque, de ordinário, normas constitucionais contêm proposições gerais e não regras específicas.
  1. Sobre concordância prática, v. HESSE, Konrad. La interpretación constitucional. In: Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983. p. 48; v. tb. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 88.
  2. Sobre a teoria dos direitos imanentes, na literatura nacional, v. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 182 e ss.; e SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais, 2005. p. 168 e ss. Mimeografado.
  1. A ideia de razoabilidade remonta ao sistema jurídico anglo-saxão, tendo especial destaque no direito norte-americano, como desdobramento do conceito de devido processo legal substantivo. O princípio foi desenvolvido, como próprio do sistema do common law, através de precedentes sucessivos, sem maior preocupação com uma formulação doutrinária sistemática. Já a noção de proporcionalidade vem associada ao sistema jurídico alemão, cujas raízes romano-germânicas conduziram a um desenvolvimento dogmático mais analítico e ordenado. De parte isto, deve-se registrar que o princípio, nos Estados Unidos, foi antes de tudo um instrumento de direito constitucional, funcionando como um critério de aferição da constitucionalidade de determinadas leis. Já na Alemanha, o conceito evoluiu a partir do direito administrativo, como mecanismo de controle dos atos do Executivo. Sem embargo da origem e do desenvolvimento diversos, um e outro abrigam os mesmos valores subjacentes: racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição aos atos arbitrários ou caprichosos. Por essa razão, razoabilidade e proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis. No sentido do texto, v., por todos, OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Por uma teoria dos princípios. O princípio constitucional da razoabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 81 e ss. Em sentido diverso, v. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, Cidade, v. 91, n. 798, abr. 2002.
  1. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

Referências

BARROSO, Luís Roberto. A metodologia da Interpretação constitucional tradicional (Excertos). In: CANOTILHO, J. J.; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira (Coord). Comentários à Constituição do Brasil. 2ed. São Paulo: Saraiva; Almedina/ IDP, sd. p.239-243.

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