O reconhecimento de escravos e libertos como sujeitos históricos acabou por influenciar os estudos sobre o destino dos escravizados e seus descendentes em antigas sociedades escravistas após a abolição legal da escravidão. No Brasil, se a década de 1980 representou um marco para a historiografia da escravidão, podemos pensar que os anos 2000 foram decisivos para a historiografia sobre as formas, condições e concepções de liberdade no pós-abolição. A produção de livros e documentários, a realização de eventos nacionais e internacionais e a formação de grupos de pesquisa adjetivados pelos termos “pós-emancipação” e “pós-abolição”, de norte a sul do país, atestam a emergência de um destacado campo de investigação, comprometido em reconstituir trajetórias, processos e experiências de liberdade da população negra no Brasil e nas Américas após a proibição legal da escravidão.
Em vistas da amplitude do campo, surgem muitas questões. O que significa pensar o pós-abolição como problema histórico? Quais os significados e limites da revogação legal da escravidão nas antigas sociedades escravistas do Atlântico? É possível construir definições precisas sobre o que seria esse pós-abolição? Quais os significados da abolição formal da escravidão? Pós-abolição e pós-emancipação são sinônimos ou representam formas distintas de enxergar e pesquisar as experiências de liberdade e os significados legais da abolição da escravidão? Quando começa e quando termina o pós-abolição? Qual o lugar das experiências de tornar-se livre e do abolicionismo do século XIX? Como a politização da memória da escravidão e o estudo do tempo presente contribuem para delimitação dos seus limites cronológicos? De que formas o trabalho com diversas concepções, fontes e metodologias do campo questiona a tese clássica de que os negros teriam ficados “abandonados à própria sorte”, trazendo para o centro da discussão debates relacionados aos direitos de cidadania, mundos do trabalho livre, racialização, racismo, mobilidade social, migrações, relações de gênero, gerações, acesso à terra, educação e movimentos sociais negros e indígenas em abordagens locais, transnacionais ou comparativas?
Essas são algumas das indagações sobre as quais se debruçaram autoras e autores dos trabalhos publicados no dossiê temático “Pós-abolição no Mundo Atlântico”, que integra a presente edição da Revista Brasileira de História.
O dossiê se abre com “No ritmo do Vagalume: culturas negras, associativismo dançante e nacionalidade da produção de Francisco Guimarães (1904-1933)”, de Leonardo Affonso de Miranda Pereira. A trajetória e a obra do personagem analisado são utilizadas como fio condutor para uma imersão no universo da cultura popular do período. O autor destaca a valorização da agência negra nas crônicas de Guimarães, o Vagalume, sobre a vida musical e recreativa do Rio de Janeiro. Pereira situa a produção do popular cronista e dramaturgo carioca como parte de um processo de disputa sobre a identidade brasileira que tem entre os seus resultados o estabelecimento do samba como “ritmo capaz de representar a nacionalidade”.
Dois dos artigos revisitam o tema clássico do campesinato negro no pós-abolição nas regiões Sudeste e Sul do Brasil. Em “Revisitando ‘Família e transição’: família, terra e mobilidade social no pós-abolição. Rio de Janeiro (1888-1940)”, Carlos Eduardo Coutinho da Costa analisa mais de seis décadas de registros civis do município de Nova Iguaçu, identificando os impactos econômicos e demográficos da citricultura sobre as famílias negras rurais da província fluminense e suas estratégias de mobilidade social. Em “Sr. Sidão Manoel Inácio e a conquista da cidadania: o campesinato negro do Morro Alto e a República que foi”, Rodrigo de Azevedo Weimer aborda a agência política do campesinato negro do litoral norte do Rio Grande do Sul na luta por direitos cidadãos durante a Primeira República.
Deslocando o foco para a Bahia, Wlamyra Albuquerque também aborda as conexões entre pós-abolição e cidadania em “Teodoro Sampaio e Rui Barbosa no tabuleiro da política: estratégias e alianças de homens de cor (1880-1919)”. Colocando o foco na experiência escrava da família de Teodoro Sampaio, a autora demonstra as conexões, aproximações e distanciamentos das trajetórias contemporâneas de dois destacados atores políticos baianos atuantes no final do Império e no início da República. Oferece ao leitor, desse modo, um olhar inovador sobre o contexto de atuação política de negros e brancos nas décadas que se seguiram à Abolição.
Dois outros artigos retomam o debate historiográfico sobre continuidades e rupturas entre a experiência escrava e o movimento operário. André Cicalo, em “Campos do pós-abolição: identidades laborais e experiência ‘negra’ entre os trabalhadores do café no Rio de Janeiro (1931-1964)” revisita o tema no setor portuário carioca, trazendo uma contribuição inovadora no que diz respeito ao estudo da racialização da estrutura ocupacional no cais. O tema da racialização reaparece em “As heranças do Rosário: associativismo operário e o silêncio da identidade étnico-racial no pós-abolição, Laguna (SC)”, de Thiago Juliano Sayão, que analisa o ocultamento da raça ou cor na Sociedade Recreativa União Operária (1903), fundada por afrodescendentes vinculados à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na cidade de Laguna, em Santa Catarina.
A perspectiva comparativa entre as experiências das duas maiores nações que passaram pelo processo emancipacionista no século XIX está presente em dois trabalhos do nosso dossiê: “Os perigos dos Negros Brancos: cultura mulata, classe e beleza eugênica no pós-emancipação (EUA, 1900-1920)”, de Giovana Xavier da Conceição Nascimento, e “O legado das canções escravas nos Estados Unidos e no Brasil: diálogos musicais no pós-abolição”, de Martha Abreu. Nascimento analisa, por meio de textos e imagens publicados em revistas norte-americanas, a emergência, nas primeiras décadas do século XX, de uma “pigmentocracia” decorrente do sistema de segregação intrarracial com base na tonalidade da pele. Já Abreu parte dos trabalhos de Du Bois e Coelho Netto para refletir sobre as similaridades dos legados da canção escrava – ou “som do cativeiro” – nos Estados Unidos e no Brasil.
Uma entrevista inédita realizada por Hebe Mattos e Martha Abreu com Eric Foner, historiador pioneiro no estudo do pós-emancipação nos Estados Unidos complementa o dossiê temático desta edição.
O presente volume traz seis trabalhos avulsos. Dois deles apresentam resultados inéditos de pesquisas sobre o movimento operário brasileiro entre as décadas de 1960 e 1980: “Relações Igreja-Estado em uma cidade operária durante a ditadura militar”, de Alejandra Luisa Magalhães Estevez, e “Uma greve que pôs em risco a Segurança Nacional: o caso do açúcar e a luta dos trabalhadores por melhores condições de vida”, de Felipe Augusto dos Santos Ribeiro. A atuação social e política de intelectuais, religiosos e organizações católicas constitui o campo temático comum de “Os ativos intelectuais católicos no Brasil dos anos 1930”, de Helena Isabel Mueller, e “A Revista A Ordem e o ‘flagelo comunista’: na fronteira entre as esferas política, intelectual e religiosa”, de Marco Antônio Machado Lima Pereira. Em “‘Vivemos identificados com a civilização, dentro da civilização’: autoimagens urbanas nos sertões da Bahia”, Valter Gomes Santos de Oliveira analisa textos memorialísticos, matérias jornalísticas e fotografias produzidos pela pequena intelectualidade sertaneja na Bahia do início do século XX. Já Vitor Marcos Gregório, em “A emancipação negociada: os debates sobre a criação da província do Paraná e o sistema representativo imperial, 1843”, analisa a relação entre a criação de novas unidades administrativas e as alterações no funcionamento do sistema político do país.
O volume se conclui com três resenhas. Em “Trabalho, história ambiental e cana-de-açúcar em Cuba e no Brasil”, originalmente publicada em inglês na revista Social History, a professora Aviva Chomsky analisa quatro livros recentes sobre temáticas similares, dois deles tratando do Brasil (The Deepest Wounds: A Labor and Environmental History of Sugar in Northeast Brazil, de Thomas Rogers, e This Land Is Ours: Social Mobilization and the Meanings of Land in Brazil, de Wendy Wolford), os outros dois sobre Cuba (Blazing Cane: Sugar Communities, Class, and State Formation in Cuba, 1868-1959, de Gillian McGillivray, e From Rainforest to Cane Field in Cuba: An Environmental History since 1492, de Reinaldo Funes Monzote). Por fim, Walkiria Oliveira Silva apresenta ao leitor What is History for? Johann Gustav Droysen and the functions of historiography, de Arthur Alfaix Assis, e Jean Rodrigues Sales comenta a muito aguardada biografia Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos, de Daniel Aarão Reis Filho.
Alexandre Fortes – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Instituto Multidisciplinar. Nova Iguaçu, RJ, Brasil. E-mail: alexfortes@globo.com
Hebe Mattos – Universidade Federal Fluminense (UFF), Centro de Estudos Gerais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Niterói, RJ, Brasil. E-mail: hebe.mattos@gmail.com
FORTES, Alexandre; MATTOS, Hebe. Apresentação. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.35, n.69, jan. / jun., 2015. Acessar publicação original [DR]
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