O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político / Ibrahim Abu-Rabi
Lançado em 2011 [2] este livro vem completar duas lacunas: A primeira – existente em todo mundo euro-americano – de obras sobre o Islã e mundo árabe escritas por seus próprios interlocutores. É bem conhecida a frase de Karl Marx usada como epígrafe no clássico livro de Edward Said “Eles não podem representar a si mesmos; devem ser representados”; a segunda – a da mesma linhagem de obras publicadas em português – embora o número de obras publicadas no Brasil sobre essa temática tenha crescido desde o fatídico 11 de setembro de 2001 e trabalhos acadêmicos especializados estejam numa crescente, estudos sobre Islã e mundo árabe feitos por árabes e muçulmanos ainda são raros. Basta lembrar que entre os autores mais publicados – no Brasil sobre esta temática temos Albert Hourani e Edward Said com ascendência árabe, mas com carreiras consolidadas no Reino Unido e EUA, respectivamente, e Karen Armstrong e Bernard Lewis, sem ascendência árabe e oriundos dos mesmos países.
Editado originalmente em 2010 no Reino Unido em língua inglesa, o livro conta com a perspicácia de Ibrahim Abu-Rabi na seleção dos textos e também na tradução de vários deles (do árabe para o inglês). Detentor da cadeira de Estudos Islâmicos da Universidade de Alberta, Abu- Rabi agregou um corpo de pensadores muito diverso nesta obra, desde militantes como Xeque Umar Abdel Rahman (1938), egípcio radicado nos EUA; Abdullah Azzam (1941-1989), palestino e um dos fundadores do Hamas; Xeque Ali Sadr al-Din al Bayanuni líder da Irmandade Muçulmana na Síria e exilado nas últimas duas décadas na Inglaterra; Fathi Yakan (1933-2009) , líder da Frente de Ação Islâmica no Líbano, à acadêmicos como Mustafá Abu Sway, professor da Universidade de al-Quds (Jerusalém); Ishaq al-Farhan da Universidade Al-Zarqaa (Jordânia); Muhammad Sa’id Ramadan al-Buti da Universidade de Damasco (Síria) e Jamil Hamami também da Universidade Al-Quds. O livro ainda conta com a contribuição do jurista Abdul Qadir Awdar, do jornalista Yassir Zaatira e de outros intelectuais da Europa ( Yahia Zoubir, Professor da Euromed em Marselha), EUA ( o já falecido Ismail Raji al-Faruqi (1921-1986) ex-professor da Universidade de Temple (Filadélfia) e outros mais do mundo islâmico.
As contribuições dos trinta e cinco autores dividem-se em seis partes: I – Rumo a uma avaliação teórica do islamismo no mundo árabe contemporâneo; II – Islamismo, jihad e martírio; III- Islamismo e a questão de Israel/Palestina; IV- Islamismo contemporâneo: tendências e autocrítica; V – O islamismo, o Ocidente, os Estados Unidos e o 11 de Setembro e VI – O islamismo no mundo árabe contemporâneo.
Lançando-se em temas caros à geopolítica e diplomacia atual, o livro tem o mérito de abrir os olhos do leitor para a multiplicidade e divergência de pensamento dentro do mundo islâmico. Tradicionalmente pintado como atrasado, despótico, monolítico e outras características depreciativas nas mídias ocidentais, surgem destas páginas esclarecimentos religiosos como o Capítulo 17 de Yusuf Al-Qaradawi: Extremismo: a acusação e a realidade no qual o autor defende que o Islã é a religião da moderação. Em suas palavras:
O Islã recomenda a moderação e o equilíbrio em todas as coisas: na crença, no culto, na conduta e na legislação […] Os textos islâmicos convocam os muçulmanos a exercerem a moderação e a rejeitarem e se oporem a todos os tipos de extremismo: ghuluw (excesso), tanattu’ (religiosidade detalhista) e tashdid (severidade, austeridade)[3].
Dentre a multiplicidade de vozes e ideias presente na obra, também merece destaque os relatos – Capítulo 5 – de Abdullah Anas sobre seu ingresso na jihad afegã contra os soviéticos no início da década de 1980 e a sistematização da doutrina jihadista feita por Abdullah Azzam no capítulo seguinte, apresentando quinze ensinamentos deixados pela sua participação na jihad afegã. Azzam esboça o roteiro prático de seu engajamento e do apelo proselitista à militância armada.
Outros temas polêmicos como o uso do véu são abordados. No Capítulo 4 Muhammad al-Ghazali argumenta que o profeta Maomé nunca ordenou que os rostos das mulheres fossem cobertos e esse hábito nada tem a ver com o culto, mas – em tom de mea culpa – adverte “nós muçulmanos apresentamos uma imagem feia e repulsiva do Islã”[4]. Nesse sentido, defende “É bastante aceitável, a partir de uma perspectiva islâmica, que as mulheres trabalhem fora de casa”[5] e ainda ironiza apontando que a ex primeira-ministra israelense Golda Meir “humilhou um grupo de homens árabes de barbas e bigodes na Guerra dos Seis Dias”[6].
Saindo do lugar comum da belicosidade, animosidade e confrontação, Ahmad Bin Yousuf escreve o capítulo 20 Os islamitas e o Ocidente: do confronto à cooperação, começa por diagnosticar que:
A psique ocidental foi traumatizada pela natureza tumultuosa da política na região islâmica: a questão turbulenta e multidimensional da Palestina; a retórica intransigente adotada pela Revolução Islâmica no Irã; a mística por trás da jihad afegã; e o enorme apelo dos movimentos islâmicos no interior de seus respectivos ambientes sociopolíticos – no Líbano, Egito, Sudão, Magrebe árabe, Cisjordânia e Faixa de Gaza, Malásia, Paquistão, Filipinas e assim por diante. Incapaz de decifrar esses fenômenos contemporâneos a partir de seus critérios de autorreferência, o Ocidente respondeu de modo errático e falacioso, frequentemente invocando imagens de clichês enunciados banais. O mundo islâmico foi visto com desprezo como uma região unidimensional incapaz de exportar ideais produtivos ou de ser receptivo a ideias estrangeiras[7].
Condenando o uso de expressões capciosas como “fundamentalismo” e seletividade jornalística, aponta “Os estudos seletivos imprimem nos leitores o pesadelo alucinatório de reacionários irracionais, em vez de explicar o comportamento muçulmano como uma resposta a injustiças específicas”[8], assim “incidentes individuais realizados por uma minoria frustrada são relatados como o trabalho de uma força fundamentalista destrutiva. Qualquer um que quebra a lei, e ocorre de ser um muçulmano por identidade, é um fundamentalista”[9].
No esteio desse debate vale a menção ao primeiro capítulo. Muhammad al-Buti desfaz a ligação automática entre “salafiyyah” e “wahhabi”. Segundo ele, a primeira é uma “fase histórica abençoada” em que a umma (comunidade muçulmana) era guiada pelos califas rashidum (“bem guiados”). Nunca houve uma escola legal salafista, a confusão começa a partir do século XIX, quando no Egito passou-se a utilizar o termo salafiyyah descolado de seu cunho teológico e erudito limitado como, por exemplo, em nomes de revistas e editoras. Paralelamente, ganhava corpo na Arábia Saudita a doutrina fundada pelo Xeque Muhammed Ibn Abdul Wahab (1703-1792), ambos movimentos visavam combater superstições e inovações, sobretudo dos místicos e desse modo preferiram o termo salafiyyah que remete a primeira comunidade islâmica ao contrário de homenagear a persona de Wahab. Tal operação constitui-se um esforço de legitimação, buscando tornar paradigmática a interpretação wahhabi – concentrada na Arábia Saudita – acerca da doutrina e tradição islâmica.
O esforço organizativo empreendido por Abu-Abi é enunciado logo nas primeiras páginas “Dentro do universalismo islâmico há unidade, mas não uniformidade”[10]. De fato, a obra consegue abarcar a “unidade” e “multiplicidade” do mundo islâmico. Como também mencionado pelo organizador da coletânea, é preciso “conscientizar as audiências ocidentais de que o Islamismo como um discurso político abarca muito mais do que o fundamentalismo dogmático e a violência terrorista que são abundantes na mídia ocidental”[11].
Retomando uma ideia de Edward Said, “precisamos compreender as muitas ‘atualidades políticas’ que o ‘retorno ao Islã’ corporifica” (SAID, 1981 apud ABU-RABI, 2011, p. 12). Vale ainda esclarecermos que normalmente tem se usado as palavras “Islã” e “Islamismo” indistintamente no Brasil e em outros países ocidentais. Para Abu-Rabi, assim como para outros intelectuais importantes como Hamit Bozarslan, “Islã” remete a religião, mas também há o significado sobreposto de “civilização islâmica” – os franceses convencionaram “islã” com minúscula para religião e “Islã” com maiúscula para civilização, distinção que não existe na língua inglesa. Já o “Islamismo” de acordo com Abu-Rabi emerge como movimento político em resposta a alguns fatores: de um lado a falha do movimento pan-islâmico do século XIX e parte do XX em alcançar o “Tanzimat” (uma espécie de “renascimento”) ocorrido no Império Otomano;“O surgimento de uma nova ordem colonial nos antigos territórios do Império Otomano, que coincidiu com a divisão do mundo árabe moderno entre novos senhores imperialistas (principalmente franceses e ingleses)”[12]; O surgimento dos nacionalismos nos diferentes países árabes (incluindo os do Norte da África) no entreguerras e a ascensão dos EUA após a Segunda Guerra Mundial.
“O Islamismo moderno foi principalmente um produto do sistema capitalista moderno, criado por diversas potências ocidentais ao longo dos últimos séculos”[13]. Immanuel Wallerstein aponta no mesmo sentido: o Islamismo
é simplesmente uma variante daquilo tem acontecido em todos os lugares nas zonas periféricas do sistema mundial. A interpretação básica destes eventos tem de girar em torno da ascensão histórica dos movimentos antissistêmicos, seu aparente sucesso e fracasso político, a consequente desilusão, e a busca por estratégias alternativas. (WALLERSTEIN, 1994, apud ABU-RABI (org) p. 13)
O islamismo é também uma resposta a hegemonia europeia. De acordo com Abu-Rabi o sistema mundial capitalista não pode sobreviver sem inimigos externos e assim “o Ocidente” o considera seu principal inimigo. É uma consequência quase natural que as massas muçulmanas afetadas pelas intervenções colonialistas se agrupem sob a bandeira islamita contra um “inimigo comum”. “O Islamismo nasceu nos mundos árabes e muçulmano a partir do ventre do colonialismo” e representa uma ameaça à seus genitores por desejar a quebra do status quo e reivindicar que o Islã seja um “significador mestre”, fator que ampliaria a lacuna conceitual entre a concepção ocidental do mundo e a concepção islâmica.
Notas
2. A tradução do inglês para o português foi realizada por André Oídes. Versão original: ABU-RABI, Ibrahim (org.). The Contemporany Arab Reader on Political Islam. London: Pluto Press, 2010.
3. AL-QARADAWI, Yusuf. Extremismo: a acusação e a realidade. In: ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. São Paulo: Madras, 2011.p.205.
4. ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. Op. cit., p.69.
5. Ibidem, p.70.
6. Ibidem, p.71.
7. YOUSUF, Bin. Os islamitas e o Ocidente: do confronto à cooperação. In: ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. Op. cit., p.237.
8. Ibidem, p.247.
9. Ibidem, p. 240.
10. ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. Op. cit., p. 9.
11. Ibidem, p.9-10.
12. Ibidem, p.12.
13. Ibidem, p.13.
Felipe Yera Barchi – Doutorando em História pela Universidade Estadual de São Paulo (UNESP). E-mail: felipeyerabarchi@gmail.com. Currículo Lates: http://lattes.cnpq.br/9147137881055201.
Resenha de: Em Perspectiva. Fortaleza, .Acessar publicação original [IF].
ABU-RABI, Ibrahim (org.). O Guia árabe contemporâneo sobre o Islã político. São Paulo: Madras, 2011. [1] Resenha de: BARCHI, Felipe Yera. Para entender o Islã Político. Em Perspectiva. Fortaleza, v.1, n.1, p.208-212, 2015. Acessar publicação original [IF].