Another Black Like Me: the construction of identities and solidarity in the African diaspora / Nielson R. Bezerra

Another Black Like me, editado por Elaine Rocha e Nielson Bezerra, discute a questão racial, na América Latina e no Caribe, a partir da perspectiva dos negros, sejam estes escravizados ou descendentes de pessoas que passaram pelo cativeiro. Para tanto, os autores ressaltam que é de negros, e não de afrodescendentes, que estão tratando. E o fazem como forma de pontuar e trazer para o debate as complexidades e subjetividades às quais a percepção da negritude esteve submetida, desde o início da diáspora africana até os tempos atuais. Procurando contemplar uma ampla gama de recortes temporais e conceituais, o livro abrange temáticas diversas, que vão, desde o gênero até a resistência, passando por questões ligadas à territorialidade, mobilidade espacial, abolicionismo e identidade.

Esse livro é fruto do esforço de seus dois editores em unir perspectivas e abordagens, das mais diversas, acerca da diáspora africana na América Latina. Oferecendo uma abordagem sólida para tais questões, essa obra consegue agregar artigos que dialogam e fazem sentido quando unidos. Os pesquisadores ora reunidos, apesar de oriundos de diferentes instituições e formações, convergem em uma direção que dá sentido à obra, que é o que toda coletânea precisa (e deveria) ter.

Como é de se esperar em um trabalho feito a muitas mãos, as fontes utilizadas são das mais diversas. Destaco o uso de relatos de viajantes que, nessa obra, servem a diferentes análises. Ygor Rocha Cavalcante os utiliza para identificar os locais de esconderijo dos escravos fugidos bem como para visualizar o cotidiano das localidades por ele analisadas; já Luciana da Cruz Brito acessa tais relatos como forma de analisar a percepção internacional sobre a mítica democracia racial brasileira. Além de tais fontes, o livro ainda apresenta trabalhos que contam com o uso da literatura, história oral, fontes processuais, registros cartoriais, entre outras.

Another Black Llike me nos leva, então, do Brasil à Porto Rico, passando pelo Caribe Britânico e, de volta à África, até Gana. Apesar do livro não possuir nenhuma divisão em partes ou seções, ao lê-lo, consigo identificar dois eixos norteadores do trabalho. Estes correspondem, também, a uma divisão temporal, que pode ser marcada pelo progressivo fim do escravismo nos países da América Latina. Dois momentos, por assim dizer, que se organizaram de diferentes maneiras, nas diferentes sociedades ora abordadas, mas que guardam convergências e similaridades e permitem aproximação em uma única obra.

Dessa forma, esse livro apresenta um primeiro eixo, que corresponde a uma América Latina pós-escravista, que precisa lidar – tanto política, como social e economicamente – com suas questões raciais, suas desigualdades e pertencimentos. E um segundo eixo, que trata dos séculos XVIII e XIX, correspondente ao período escravista da América Latina. Lidando com resistências, construções de identidades e com o abolicionismo, esse segundo eixo trata, principalmente, do Brasil e dos desdobramentos das questões afro-brasileiras.

Analisando o livro nessa chave de leitura, o primeiro eixo que identifico, neste trabalho, compreende os quatro primeiros artigos, de autoria de Elaine Rocha, Ronald Harpelle, Victor C. Simpson e Rhonda Collier. Rocha debate a identificação dos afrodescendentes na América Latina, seja ela imposta ou escolhida. A autora discute questões ligadas à identificação racial, e às formas como essa identificação foi (e tem sido) utilizada, tanto de forma positiva, quanto de forma negativa. Harpelle lida com os grupos de descendentes de africanos na América Central que, na metade do século XX, não sabiam quais eram suas origens, que também não eram conhecidas pelas autoridades britânicas que, no século anterior, controlaram a imigração para muitas das ilhas Caribenhas, de onde a maior parte dos imigrantes saíram para a América Central continental. Simpson delineia a taxonomia racial em Porto Rico e no Caribe Anglófono, buscando, na experiência histórica da diáspora africana e do domínio colonial europeu, as raízes que, depois de séculos de interação, dominação e exclusão, deram origem às designações de cor naquelas localidades. Assim como em grande parte da América Latina, tais denominações não se resumem apenas a negro e branco, possuindo uma enorme gama de outras gradações entre essas duas. Tais divisões não se resumem apenas a tons de pele, sendo influenciadas por questões sociais e econômicas. Collier examina as condições de vida de mulheres cubanas, de ascendência africana, no século XX, enfatizando as dificuldades pelas quais passam, devido à cor de sua pele, e as consequências que os estereótipos por elas enfrentados trazem para suas vidas, como a pobreza e a prostituição. Muitas dessas mulheres são o único sustento de suas famílias, o que as empurra ainda mais fundo para essas condições.

Neste primeiro momento do trabalho, destaco o artigo de Rhonda Collier. Analisando as duras condições sociais às quais uma grande maioria de mulheres cubanas foi submetida, no final do século XX, com a queda da União Soviética e as dificuldades econômicas enfrentadas por Cuba, Collier aponta que a única saída que muitas encontravam, para sobreviver e prover a sobrevivência de suas famílias, era a prostituição. Isso gerou um estereótipo relacionado às mulheres cubanas de ascendência africana, que persiste até os dias de hoje.

A autora explora obras de poetisas cubanas, em fins do século XX, que denunciavam as condições às quais tais mulheres eram expostas, bem como o fato de que a revolução socialista, em Cuba, teria feito com que a pobreza levasse, cada vez mais, mulheres para a prostituição. Em oposição à prostituta, que se havia tornado peça de mercado, no turismo cubano, a figura que deveria emergir em seu lugar seria, então, a da mãe, valorizando o país, enquanto pátria que nutre seus filhos e filhas. A África seria, nessa visão, a mãe, na qual Cuba deveria se espelhar. Collier demonstra, nesse artigo, como a identidade da mulher cubana foi palco de disputas, por representatividade e reconhecimento, bem como por participação social e econômica.

O segundo eixo do livro, por sua vez, está articulado em torno das questões ligadas à escravidão, sem perder de vista o foco nas identidades e representações dos negros nas sociedades. Esse segundo momento do trabalho conta com cinco artigos, escritos por Flávio dos Santos Gomes, Ygor Rocha Cavalcante, Nielson Rosa Bezerra, Luciana da Cruz Brito e Marco Aurelio Schaumloeffel. Gomes analisa as experiências de fugas, nas fronteiras do Brasil colonial e da Guiana Francesa, nos séculos XVIII e XIX, atentando para as trocas culturais atlânticas, as experiências coletivas e as formas de resistência delas advindas. O autor enfatiza que as fronteiras coloniais não estabeleciam limites para tais trocas, demonstrando que as ideias circulavam entre os escravos, possibilitando, além das fugas, a migração ou a formação de mocambos, comunidades de escravos fugidos. Cavalcante também trabalha com a questão espacial, ao examinar a resistência escrava na fronteira amazônica do século XIX. Numa região marcada pelo povoamento indígena – nas regiões afastadas das cidades, pela interação entre indígenas e mestiços livres ou vivendo em diversas formas de dependência, e também pelo cultivo e preparo da borracha, atividade que exigia mobilidade – o trabalho escravo se organizava de maneiras diferentes daquelas encontradas no Sul e Sudeste, e até mesmo das regiões açucareiras do Nordeste. Dessa forma, a ação dos escravos e suas experiências acumuladas também se organizam de maneira própria. Bezerra analisa a trajetória de Mohammed Gardo Baquaqua, africano apreendido na África Ocidental e vendido como escravo, no século XIX, que, após uma verdadeira odisseia atlântica, com passagem pelo Brasil, Estados Unidos, Haiti e Canadá, conseguiu a liberdade, estabeleceu-se nos Estados Unidos e lá escreveu suas memórias, em forma de relato autobiográfico. Bezerra examina, então, a mobilidade espacial e a sociabilidade de Baquaqua, bem como seu relato, a fim de demonstrar como as pessoas escravizadas lidavam com os limites impostos pela escravidão. Brito analisa as perspectivas dos abolicionistas, dos Estados Unidos do século XIX, no tocante às relações raciais no Brasil. A autora aponta como o mito da democracia racial afetou a visão que se tinha sobre os direitos e o tratamento dado aos ex-escravos no Brasil, mostrando como tal mito espalhou-se e ganhou força mundo a fora, sendo utilizado como argumento, em querelas referentes aos direitos das pessoas de ascendência africana. Schaumloeffel encerra o livro, analisando a diáspora afro-brasileira, na África, com o caso dos Tabom em Gana. Esse grupo era formado por brasileiros descendentes de africanos que decidiram, espontaneamente, imigrar para a África, bem como por outros que, após se revoltarem, foram banidos para a África Ocidental. O autor toca nas questões relativas à formação de identidade desse grupo, bem como sua organização familiar política.

O artigo de Nielson Bezerra merece destaque, por demonstrar um exercício metodológico bastante interessante, ao preencher as lacunas da vida de Baquaqua com uma perspectiva historiográfica, a fim de entender o contexto brasileiro vivido por aquele africano. É importante notar, que o foco de Bezerra é o período que Baquaqua passou no Brasil, vivendo nas províncias de Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande. Assim, esse artigo não apenas descreve a vida de Baquaqua e o que pode ser encontrado em seu relato autobiográfico, como também analisa as relações escravistas, naquelas províncias, e seu impacto na vida dos africanos escravizados.

O uso de biografias de africanos, como fonte, é algo bastante recorrente na historiografia sobre a escravidão na América do Norte. Para o caso brasileiro, entretanto, o relato de Baquaqua é, até o momento, o único encontrado. Nesse sentido, o artigo de Bezerra pode servir, também, de reflexão, para pensarmos em outras formas de analisar trajetórias de africanos e africanas no Brasil: na ausência de relatos autobiográficos, a historiografia brasileira vem reconstruindo essas histórias, a partir de diversos tipos de fontes, como registros cartoriais, policiais e eclesiásticos. Convergir essa metodologia, com a análise feita por Bezerra, pode ser um exercício metodológico interessante.

Another Black Like Me pode ser lido, então, como um bom exercício de história social. Com sólido embasamento nas fontes, todos os nove artigos apresentam perspectivas que possibilitam compreender as pessoas escravizadas e suas descendentes como sujeitos ativos, ainda que limitados, por suas condições sociais, políticas, econômicas e históricas. Além disso, é um livro que lida com a identidade dos africanos e seus descendentes, entendidos no contexto da diáspora, no interior das formações e transformações de suas identidades, entendidas no contexto da longa história do negro na América Latina.

Daniela Carvalho Cavalheiro – Doutoranda em História Social da Cultura/UNICAMP. Campinas/São Paulo/Brasil. E-mail: daniela.cavalheiro@gmail.com.


BEZERRA, Nielson Rosa; ROCHA, Elaine (Org.). Another Black Like Me: the construction of identities and solidarity in the African diaspora. Newcastle upon Tyne, UK: Cambridge Scholars Publishing, 2015. 230 p. Resenha de: CAVALHEIRO, Daniela Carvalho. Identidades em questão: escravidão, liberdade e pertencimento no mundo atlântico. Outros Tempos, São Luís, v.12, n.19, p.268-272, 2015. Acessar publicação original. [IF].

Itamar Freitas

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