Com seu livro intitulado A Cultura no Mundo Líquido Moderno, no original Culture in a Liquid Modern World, Zygmunt Bauman prossegue em 2013 suas análises sobre a modernidade, fazendo uma síntese das características que tomou a cultura desde a era “sólida” até a era “líquida”, bem como sua relação com o “multiculturalismo” e “globalização”.
No primeiro capítulo Bauman procura demonstrar que na atualidade não se firmam mais as antigas distinções entre a elite cultural e o chamado “grande público”, essa hierarquia cultural deu lugar a uma elite diversificada que aprecia tanto a “grande arte” quanto os programas populares de televisão e, “onivoramente”, consome diversas formas de arte, tanto populares quanto intelectualizadas, porém preocupada demais em celebrar o sucesso e outras formas festejadas ligadas a cultura. Descreve também “as peregrinações históricas do conceito de cultura”, desde o Renascimento, passando pela reviravolta causada por Pierre Bourdieu no século XX, chegando até os dias atuais, quando adentra a era “líquida”. Bauman mostra que o conceito de “cultura”, surgido no âmbito rural para incitar a ação agrícola, o arado e a semeadura, também esteve relacionado ao cultivo de almas (cultura animi), a interação entre protetores e protegidos, educadores e educados, e ainda esteve relacionado aos ideais iluministas e a construção de uma nação, de um Estado e de um Estado-nação, e ainda a aproximação entre as classes altas e o “povo”, ou seja, entre os que estão na base da sociedade e os que estão no topo. A perda de posição do conceito de “cultura” é resultado de uma série de processos de caracterizam a transformação da modernidade de seu estado “sólido” para seu estado “líquido”, o que Bauman denomina de “modernidade líquida”.
No segundo capítulo Bauman discorre sobre a “moda”, fenômeno social, segundo ele, em constante estado de “devir”. Para Bauman a “moda” funciona como uma válvula que se abre antes que se atinja a conformidade, ela multiplica e intensifica as distinções, diferenças, desigualdades, discriminações e diferenças. Um moto perpétuo que torna-se norma no momento em que se encontra no “mundo socializado”, um aniquilador de inércia. Segundo Bauman, “A moda coloca todo estilo de vida em estado de permanente e interminável revolução”, nesse sentido, “A moda é um dos principais motores do ‘progresso’”3. As pessoas, por sua vez, seriam caçadores em busca de uma contínua e ininterrupta variação do próprio self, por meio da mudança de costumes, e essa estrada vem a ser para os caçadores uma forma de utopia, uma vida na utopia.
Em seu terceiro capítulo o livro abarca desde a construção dos Estados-nação, em fase “sólida” na era moderna, até o mundo globalizado da atualidade. Primeiramente Bauman procura evidenciar que os Estados-nação tornaram-se menos inabaláveis a medida que começam a ser coagidos e encorajados a abandonar suas aspirações e esperanças. “A medida de ‘funcionalidade’ […] já não parecia tão inquestionável ou inegavelmente correta”4. O impulso da globalização teve papel preponderante no abandono das aspirações dos Estados-nação, que teve como efeito colateral a emergência da natureza inconsistente das fronteiras do sistema. O livro também chama a atenção para a importância da migração em massa durante o período da modernidade e da modernização, uma migração de pessoas em detrimento da migração de povos como o ocorrido em inícios da Idade Média. Bauman divide estas migrações em três fases: A primeira foi a migração de 60 milhões de pessoas da Europa para as “terras vagas”, onde as populações indígenas podiam ser desprezadas ou vistas como inexistentes ou irrelevantes. A segunda vem no sentido inverso, onde algumas das populações nativas, com variados graus de educação e “sofisticação cultural”, seguiram os colonialistas que retornavam à terra natal. A terceira fase das migrações modernas, em pleno curso, introduz a era das diásporas;
Trata-se de um arquipélago infinito de colônias étnicas, religiosas e linguísticas, sem preocupações com os caminhos assinalados e pavimentados pelo episódio imperial/colonial, mas, em vez disso, conduzido pela lógica da redistribuição global dos recursos vivos e das chances de sobrevivência peculiar ao antigo estágio da globalização5.
Segundo Bauman, a escala dos movimentos populacionais globais, hoje, é ampla e continua a crescer, entretanto, o que tem ocorrido é que os imigrantes tem se tornado “minorias étnicas”, e essas aglomerações “etnicamente estrangeiras” disseminam hábitos das populações locais, causando estranhamento e uma “guetificação” dos “elementos estrangeiros” que, por sua vez, se fecham em círculos próprios. Pari passu Bauman aponta uma nova indiferença a diferença, que mostra-se como uma aprovação do “pluralismo cultural”, segundo ele, “A prática política constituída e apoiada por essa teoria é definida pelo termo ‘multiculturalismo’”6.
Já no quarto capítulo, o livro inicia com uma discussão em torno da missão das “classes instruídas” (intelectuais avant la lettre, sendo que o conceito de intelectuais só tomou forma no século XX), iniciada ainda no Iluminismo e que consistia em duas tarefas: A primeira delas, tinha como meta “esclarecer” ou “cultivar” o “povo”, transformar as entidades desorientadas, desalentadas e perdidas em membros de uma nação moderna e cidadãos de um Estado Moderno, ou seja, a criação de um “novo homem”. Nesse sentido a “educação” foi a viga mestra desta transformação, “a educação era capaz de tudo” e o papel dos educadores era o da “cultura”, no sentido original de “cultivo”, tomando o termo de empréstimo à agricultura. A segunda tarefa consistia em planejar e construir novas e sólidas estruturas que dariam um novo ritmo de vida a massa momentaneamente “amorfa”, ainda não adaptada ao novo regime, ou seja, introduzir uma “ordem social”, “colocar a sociedade em ordem”. “As duas tarefas dependiam da combinação de todos os poderes do novo Estado-nação, econômicos, políticos e também espirituais, no esforço de remodelar corporal e espiritualmente o homem – o principal objetivo e o principal objeto da transformação em curso”7. A construção do Estado foi um esforço que exigiu o engajamento tanto de administradores quanto de administrados, o que segundo Bauman não ocorre hoje, onde não há mais um engajamento e o modelo pan-óptico de dominação dá lugar à supervisão e ao autocontrole pelos próprios objetos da dominação. “As colunas em marcha dão lugar aos enxames”8. Bauman ainda argumenta que tendo Deus criado o Homem e o feito andar sobre os dois pés, mandou-o achar o seu próprio caminho e segui-lo, dessa forma, “Em nossa época, foi a vez de a sociedade […] concordar que o homem fora equipado com ferramentas pessoais suficientes para enfrentar os desafios da vida e administrá-la sozinho – e logo desistir de impor as escolhas e administrar as ações humanas”9. Bauman também pondera sobre a aceitação e permanência culturais deixando claro que devemos aceitar todas as proposições como válidas e dignas de escolha, evidenciando ainda que se determinada cultura é tida como valiosa deve ser preservada para a posteridade independentemente de uma comunidade cultural ou da maioria de seus membros.
No seu quinto capítulo, o livro procura demonstrar que a globalização tem agido de forma a desfragmentar as identidades nacionais no contexto da União Europeia, quando desintegra seu antigo abrigo, os alicerces da independência territorial. Para Bauman, a União Europeia não somente preserva as identidades dos países que nela se unem, como procura neutralizar as poderosas pressões que a atingem através do ciberespaço. “Dessa maneira a união também salvaguarda as nações dos efeitos potencialmente destrutivos do longo e permanente processo […] de separar a trindade formada por nação, Estado e território, tão inseparáveis nos dois últimos centenários”10. Entretanto, Bauman destaca que a cultura no contexto da união tem sobrevivido mesmo sem o suporte da trindade nação-Estado-território. Não obstante, a construção nacional tinha por meta a concretização de “Um país, uma nação”, o nivelamento das diversidades étnicas dos cidadãos, por sua vez, os processos civilizadores garantiriam que a diversidade de línguas e o mosaico étnico e cultural não perdurassem por muito tempo, nesse sentido, dentro do Estado-nação culturalmente unido e unificado, “Tudo que fosse ‘local’ e ‘tribal’ era considerado ‘atraso’”11. “A prática da construção nacional tinha duas faces: a nacionalista e a liberal”12, a primeira era séria e enérgica, a segunda era amigável e benevolente. “As comunidades não viam diferença entre as faces nacionalista e liberal apresentadas pelos novos Estados-nação. Nacionalismo e liberalismo preferiam estratégias diferentes, mas miravam fins semelhantes”13. Sem dúvida a globalização tem mais proximidade com a face liberal do Estado-nação, pois o vácuo criado pela globalização oferece maior liberdade às iniciativas e às ações individuais, notadamente características do liberalismo.
Em seu sexto e último capítulo, o livro destaca o financiamento das artes por parte do Estado, tendo como precursores os franceses que, por sua vez, tinham na figura de Luis XIV um grande incentivador das artes e da educação dos artistas, fundador, em especial, do teatro real, a Comédie-Française. Bauman ressalta ainda que as primeiras ações, que seriam hoje chamadas de “política cultural”, surgem uns duzentos anos antes da emergência do termo “cultura”. O conceito francês de culture [tradução – do francês = cultura], estava relacionado a elite instruída e poderosa e também a promoção do aprendizado, da suavização das maneiras e do refino do gosto artístico. Durante o século XIX, surgem noções como “desenvolvimento e disseminação da cultura”, e “Também neste período, a tradição já estabelecida de responsabilidade do Estado pela cultura foi posta a serviço da construção nacional”14, o intuito era endossar o patriotismo e a lealdade a República. Segundo Bauman, “A cultura conferiria prestígio e glória, em âmbito mundial, ao país que patrocinasse seu florescimento”15. Através do pensamento de Theodor Adorno, o livro ainda procura estabelecer um paradoxo entre a inata atitude suspeitosa da administração diante da insubordinação e da imprevisibilidade naturais da arte e o desejo dos criadores de cultura de serem ouvidos, vistos e, tanto quanto possível, serem notados, paradoxo esse que para Bauman não tem solução, mas que tem mudado nas últimas décadas, em termos da situação da arte e de seus criadores. Bauman ainda demonstra que este paradoxo esta também relacionado a uma lógica de mercado, que, por sua, vez é uma tentativa de atingir o público, prática comum desde os tempos em que a arte era administrada pelo Estado e que, seguindo os critérios do mercado de consumo, preocupam-se com a iminência do consumo, da satisfação e do lucro.
Notas
3 BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. p.20.
4 Ibidem, p.28.
5 Ibidem, p.29.
6 Ibidem, p.37.
7 Ibidem, p.43.
8 Idem.
9 Ibidem, p.46.
10 Ibidem, p.56.
11 Idem.
12 Idem.
13 Ibidem, p.57.
José Fernando Saroba Monteiro – Mestrando em História do Império Português [e-learning] pela Universidade Nova de Lisboa (UNL). Licenciado em História pela Universidade de Pernambuco (UPE); Especialista em Teorias da Comunicação e da Imagem pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Licenciando em Música pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: jfmonteiro2@hotmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5353852205190949.
BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Resenha de: MONTEIRO, José Fernando Saroba. Em Perspectiva. Fortaleza, v.1, n.1, p.214-218, 2015. Acessar publicação original [IF].
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