Algum dia se fará um balanço da influência do historiador francês Nathan Wachtel sobre nossa visão da história da América. Seu primeiro livro, La vision des vaincus, de 1971, embora ainda não traduzido no Brasil, tem sido lido no original e especialmente na edição espanhola Los vencidos.1 Há marcas visíveis desta leitura em manuais de história da América que incorporaram, com maior ou menor profundidade, a proposta de uma ‘História dos vencidos’. Já o artigo ‘A aculturação’, publicado em Faire de 1’Histoire,2 circula mais freqüentemente entre professores e estudantes de história da América nas universidades brasileiras. Nele, Nathan Wachtel prolongava as reflexões de um de seus mestres, Alphonse Dupront, adotando o conceito e a problemática da aculturação para ultrapassar o eurocentrismo na história da América.
Vinte anos depois, Nathan Wachtel reaparece com esta obra monumental. Seu primeiro livro propunha uma história pelo avesso, revirando ao contrário a capa eurocêntrica da história. Agora, apresenta-nos ura novo desafio igualmente surpreendente: História regressiva, tal como o fez Marc Bloch pela primeira vez em 1931 em Les caracteres originaux de Vhistoire rurale française (que só foi publicado em 1955).
Trata-se de, partindo daquilo do passado que ainda vive no presente, buscar reconstituir o processo do devir, com suas repetições, suas latências, lacunas e inovações, mas sem cair na tentação da descoberta das ‘origens’. Fazer história regressiva, neste caso, significa começar pela abordagem etnográfica de uma pequena aldeia no altiplano boliviano, a quatro mil metros de altitude, onde vivem cerca de mil indígenas chipayas. Nathan Wachtel está em contato intermitente com Chipaya e outros vilarejos urus desde 1973. Membro da Escola de Altos Estudos, filiado ao Instituto Francês de Estudos Andinos, ao Instituto de Estudos Avançados de Princeton e ao Centro de Pesquisas sobre o México, América Central e os Andes (Cermaca), apropriou-se da riquíssima experiência de autores como Claude Lévi-Strauss, Alfred Métraux, Ruggiero Romano, John Murra, Tom Zuidema, Enrique Tandeter, Gilles Rivière, Teresa Gisbert, Jan Szeminski, Maria Rostworowski, Frank Salomon, Carmen Bernand, Thierry Saignes, Steve Stern, Alberto Flores Galindo e outros especialistas com quem convive.
Na primeira parte do livro, ‘Múmias viventes’, Nathan Wachtel projeta ao longo de seis densos capítulos um aguçado olhar antropológico sobre a organização social dos chipayas, procurando a lógica invisível que a rege e que está escrita no seu próprio território, no sistema de parentesco, na língua, no calendário, nos deuses e demônios, nos ritos, na memória e nos sonhos de seus membros. Jogos de espelhos que ora se multiplicam, ora se distorcem, a visão chipaya do mundo é quadripartida, isto é, duplamente dualista, e nisto não se diferencia da cultura aymara que a envolve por todos os lados e a penetra em várias formas. Os aymaras os chamam com desprezo Chullpa-puchu (restos dos primeiros homens), e Alfred Métraux foi levado a pensar que os chipayas seriam, efetivamente, algo como um povo fossilizado perpetuando traços arcaicos da organização social. Mas Nathan Wachtel, atento às diferenças de língua e de vestuário, leva a sério uma distinção essencial: os chipayas e outros grupos urus insistem em caracterizar-se como homens dágua, por oposição a todos os outros homens secos.
Tempo a contrapelo’ na qual todas as informações recolhidas e sistematizadas conforme os procedimentos da antropologia estrutural são submetidas ao teste de um paciente e erudito trabalho de pesquisa nos arquivos da Bolívia, Peru, Argentina e Espanha. Se o historiador lê com alguma dificuldade a primeira parte, cada um dos sete novos capítulos é uma caixa de surpresas. Página por página, os horizontes se alargam. Os urus, ‘homens d’água’, vão se revelando como um importante bolsão de pescadores-coletores instalados ao longo do eixo aquático que liga ainda hoje os lagos Titicaca, Poopó e Coipasa, numa extensão de cerca de oitocentos quilômetros entre as duas grandes linhas de cordilheiras. Numa de suas incursões mais apaixonantes ao fundo do poço escuro do passado uru, Nathan Wachtel encontra alguns indícios que apontam para o horizonte cultural de Tiahuanaco, um império desaparecido séculos antes da hegemonia aymara, e depois inca, na região.
Os urus ou homens d’água eram cerca de oitenta mil indivíduos, quase 25% da população indígena do altiplano, à época da conquista Nada permite crer na existência de uma identidade uru àquela altura: na verdade, desde a noite dos tempos estavam em ação processos de aculturação entre as populações andinas, dentre os quais o mais conhecido foi a política de colonização adotada pelos incas (mitimas). A heterogeneidade dos urus tem sua principal razão de ser na diversidade de situações produzidas em seus contatos com os homens secos, isto é, com grupos sedentários dedicados à agricultura e ao pastoreio. Existe, portanto, uma longuíssima história de ‘evaporação’ (que em geral é sinônimo de aymarização) de homens d’ágiia, toda pontilhada de resistências, recuos e reestruturações.
Nathan Wachtel reconstitui, recorrendo a fontes de todos os tipos, as grandes conjunturas da história uru a partir da montagem dos dispositivos coloniais na região. Forçados a se sedentarizar e constituir aldeias, submetidos à encomienda, os vencidos dos vencidos, uma vez que seus senhores imediatos eram os caciques aymaras. Na memória uru, estes foram tempos de escravidão e de morte: além do trabalho mais humilde e pior remunerado, sofreram as vagas de epidemias que dizimavam a maioria das populações andinas.
A sorte dos urus oscilou conforme algumas variáveis: épocas de abundância ou de escassez de mão-de-obra nativa, ritmo da produção de prata e mercúrio nas minas, diferença entre os preços na Europa e na América, campanhas de evangelização e de extirpação de idolatrias, ressecamento dos lagos, aquisição de novas técnicas etc.
A grande indagação do livro é a identidade dos chipayas, esse vilarejo uru criado pelo vice-rei Toledo na década de 1570, que o autor visitou pela primeira vez em 1973 e que, nove anos depois, quase não reconheceu. A rapidez das mudanças provocadas pela introdução de novas seitas religiosas na aldeia, quebrando uma estrutura secular que pareceria, aos menos atentos, imemorial, é apenas mais uma grande ruptura. Caso um chipaya adulto de 1600 retornasse à sua terra em 1660, encontraria praticamente a mesma dominação aymara sobre o seu povo, e estranharia apenas a sua cristianização superficial. Voltando novamente em 1720, nosso chipaya ressuscitado desconheceria os nomes de família de seus descendentes, o seu novo sistema de parentesco, o seu sistema sincrético de crenças, e surpreender-se-ia com uma crescente tendência à emancipação da servidão. Sessenta anos mais tarde, em 1780, à época das grandes revoltas de Túpac Amaru e de Túpac Catari e da generalização da condição indígena, nosso fantasma chipaya teria ainda maior surpresa diante da consolidação dos direitos territoriais da aldeia, do funcionamento regular do sistema de cargos articulando a circulação dos bens, da afirmação segura de uma identidade uru.
No início do século XX, uma revolução agrícola, resultante da aplicação exclusiva da lógica indígena à solução do problema do ressecamento progressivo do lago Coipasa, elevou o padrão de vida e estabilizou o sistema social dos chipayas que Nathan Wachtel iria encontrar em 1973. Já em 1982, os deuses estavam proscritos, as festas suprimidas, rivalidades religiosas cindiam perigosamente as quatro metades da aldeia. Porém, numa última noite, Wachtel é convidado para uma cerimônia clandestina de culto aos ancestrais: sinal de que a identidade uru permanece viva em um segmento da comunidade chipaya e de que o futuro permanece em aberto.
A complexidade e profundidade da obra a fazem duplamente importante como antropologia e como historiografia. Esperamos que esta breve resenha estimule a curiosidade por um livro que descortina horizontes até há pouco insondáveis na história da América. História a contrapelo feita com um rigor metodológico e uma erudição pouco comparáveis, Le retour des ancêtres é tão comovente em sua procura de abertura para a enigmática alteridade de um pequeno povo indígena desprezado até pelos outros índios, que muitos leitores acompanharão Nathan Wachtel até as lágrimas em determinadas passagens que só puderam ser escritas como fina literatura — crônica da busca de um tempo perdido que permanece vivo à espera de quem o queira saber ler.
Jaime de Almeida – Universidade de Brasília. Departamento de História.
WACHTEL Nathan. Le retour des ancêtres. Les Indiens Urus de Bolivie, XX* XVf siècle. Essai dfhistoire régressive. Paris: Gallimard, 1990. 690 pp. Resenha de: ALMEIDA, Jaime de. Textos de História, Brasília, v.4, n.1, p.154-158, 1996. Acessar publicação original. [IF]
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