Vários fenômenos deste fim de século contribuíram, e continuam a contribuir, para recolocar o problema da cidadania na ordem do dia, tanto nas novas democracias como nas antigas. A redemocratização de vários países na América Latina e na Europa, sobretudo do Leste, fez com que a preocupação com os direitos políticos e com a maneira de exercê-los voltasse com toda a força. A crise fiscal do Estado, que atinge indiscriminadamente países ricos e pobres, colocou em cheque o Estado de bem-estar e, conseqüentemente, a amplitude e o alcance dos direitos sociais. O processo de globalização econômica, por sua vez, atingiu ao mesmo tempo direitos civis, políticos e sociais. Atingiu negativamente os direitos políticos ao provocar profundas alterações na concepção e na prática do Estado-nação, agora enfraquecido diante do deslocamento de decisões para organismos multinacionais. Atingiu positivamente os direitos civis ao deslocar para a participação social a ênfase antes colocada na participação política. Atingiu um direito social básico, o emprego, ao exacerbar a competividade internacional e o avanço tecnológico, geradores estruturais de desemprego.
Não terminam aí as mudanças. A diversificação da problemática social (etnias, minorias, ecologia), acompanhada (e promovida) por novos movimentos sociais, sobretudo as organizações não governamentais, trouxe à consciência coletiva novos direitos antes não cogitados. Além dos três direitos clássicos sistematizados por Marshall, chamados de primeira e segunda geração, foram propostos, e incorporados a códigos legais, outros como os direitos civis coletivos e os chamados direitos difusos, ligados à preservação do meio ambiente. Pode-se ainda acrescentar o impacto sobre direitos políticos e civis provocado pela sociedade de consumo que transforma cidadãos em consumidores e pela globalização da informação via mídia eletrônica que, se rompe a barreira do controle estatal, também invade a privacidade do indivíduo.
Diante desse quadro, não é de admirar a explosão de estudos, teóricos e empíricos, sobre a problemática da cidadania. Como se viu, não se trata de uma problemática de democracias jovens e imaturas mas de uma questão universal com modulações nacionais. Não deixa de ser um consolo, embora triste consolo, o fato de descobrimos, os latino-americanos, que europeus e americanos do noite estão às voltas com problemas semelhantes, guardadas as especificidades locais. É na verdade uma vantagem o rato de podemos pensar e agir tendo o benefício da informação sobre o que se está passando nos países considerados avançados. Não se trata também de um tema que se possa abranger com o instrumental teórico de uma ou outra disciplina acadêmica apenas. Ele atinge todas as esferas da vida social e exige abordagens diversificadas e inovadoras. Um tratamento compreensivo seria impossível dentro do espaço aqui disponível.
Deu-se ênfase na seleção dos artigos deste número especial de Estudos Históricos ao tema da garantia dos direitos civis, tratando-se secundariamente dos direitos políticos e sociais. A escolha exige justificativa. Como quase todas as análises se referem ao Brasil, país recém-saído de um governo militar e marcado pelas imensas desigualdades sociais, poder-se-ia perguntar se a ênfase não deveria ser posta nos direitos políticos e sociais. Antes de responder, cabe observar que, do ponto de vista da legislação, todos os direitos estão garantidos aos brasileiros. A Constituição de 1988, chamada com razão de cidadã, esmerou-se em incluir todos os avanços atuais na área. Nosso problema se verifica no campo da consciência e da garantia dos direitos. Quanto a isto, não será polêmico dizer que há um conhecimento razoável dos direitos políticos e que seu exercício está razoavelmente garantido pelo sistema eleitoral e partidário. Há, sem dúvida, enormes problemas no gerenciamento do sistema de saúde e previdenciário, mas há igualmente boa noção dos direitos sociais e há uma Justiça do Trabalho a que se tem acesso com celta facilidade. O mesmo não se pode dizer dos direitos civis. O grau de conhecimento desses direitos é mais precário e sua garantia, baseada sobretudo no sistema policial e judiciário, é de longe a mais deficiente.
Além dessa situação desvantajosa dos direitos civis, cabe observar que eles são os direitos fundamentais numa democracia liberal, como é a em que vivemos. Vida, integridade física, propriedade, segurança, liberdade, são direitos básicos que constituem o alicerce de direitos políticos e sociais. São eles que garantem a conquista de outros direitos e sua preservação. Sem segurança pessoal e liberdade de opinião e organização para todos, por exemplo, a participação política será vazia, a política social frágil, a democracia precária.
Dentro do tema da garantia dos direitos civis, salientam-se os estudos sobre o Judiciário. Sinal dos novos tempos, marcados pela perda de influência do Legislativo e até mesmo do Executivo, tendo em vista o enfraquecimento dos Estados nacionais, o Judiciário passa a ver seu papel contestado, redefinido e ampliado. Mais que nunca é colocada em questão a visão rígida da separação dos poderes e se estabelece um processo ainda de contornos indefinidos em que se politiza a Justiça e se judiciariza a política. Ao mesmo tempo, contesta-se a visão positivista do direito e do papel do juiz como mero aplicador da lei, exigindo-se dele a preocupação com a eqüidade social. Esses temas são expostos e discutidos no artigo de Werneck Vianna.
Ainda dentro do tema do Judiciário, Sérgio Adorno demonstra o viés racista da Justiça criminal e o estereótipo que atribui maior tendência à criminalidade entre determinados grupos étnicos. Maria Celina D’Araujo apresenta o que talvez seja a primeira avaliação acadêmica do desempenho dos juizados Especiais. Surgidos como promessa de agilização da Justiça e ampliação de sua acessibilidade, a autora mostra que seu funcionamento está longe de corresponder à promessa inicial. Dois ensaios bibliográficos (Junqueira e Guanabara) avaliam o estado da arte nos estudos sobre o acesso à Justiça e sobre novas visões do direito.
O impacto da globalização sobre o Estado e as identidades nacionais, sobretudo no contexto europeu, é discutido por Guy Hermet. Enquanto na Europa Ocidental o processo de unificação tende a reduzir o peso dos Estados nacionais, a enfraquecer o envolvimento político dos cidadãos e a diluir as identidades nacionais, na Europa Oriental verifica-se o fenômeno oposto. Essas diferenças nacionais no que se refere ao conteúdo da cidadania e às rotas históricas seguidas em sua construção são discutidas por Carvalho, que usa o Brasil do século XIX como exemplo.
Finalmente, o processo social concreto de construção da cidadania é discutido por Sigaud. Usando como exemplo o recurso à justiça do Trabalho por parte de trabalhadores de engenhos de açúcar em Pernambuco, a autora demonstra que a decisão de recorrer ou não às juntas de Conciliação e Julgamento não se explica apenas pelo conhecimento do direito e pela disponibilidade da Justiça. Tem-se que levar em conta também a interveniência de fatores morais.
Papel do judiciário, concepções do direito, acesso à Justiça, estilos históricos e transformações recentes no conteúdo da cidadania, processos sociais de construção do cidadão, são os temas abordados neste número especial. Pequena contribuição à imensa tarefa que se nos apresenta, a um tempo teórica e prática, de construir a comunidade política do século XXI.
José Murilo de Carvalho – Editor convidado.
CARVALHO, José Murilo de. Apresentação. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v.9, n.18, jul. / dez. 1996. Acessar publicação original [DR]
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